16 dezembro 2010

Memórias de ontem e de sempre


Albergue da juventude, Amsterdã, 2001

Por uma dessas razões insondáveis do ser, tenho me voltado para o silêncio das memórias, tomadas aqui e ali, vivenciadas em um átimo, ao saboroso acaso. Passagens como registros que anunciaram mudanças, expressão de movimentos sensíveis, que se desdobraram em delicadas intervenções... A russa que, sem falar uma língua cognoscível, o impediu de perder-se nas mãos de um farsante, em uma fronteira esquecida no mundo... A linda adolescente, subindo de costas a acentuada ladeira, para não perder o belo desenho do casario e, ao fundo, o mar azul... O publicitário pressionado, que exausto, cochilava no trem, a caminho de casa, e sonhava com uma cidadezinha bucólica chamada Willoughby... A criança com a cabeça apoiada no colo, ouvindo-lhe as histórias do mundo...

Ou o último minuto do avô, ainda jovem, na casa dos pais... sua saída pé ante pé, do quarto com seus seis irmãos em sono profundo. O instante imóvel à porta e voltando-se para apreciar um por um os irmãos, dar uma olhada geral e partir para nunca mais voltar. Um último olhar, o fim de um tempo, o começo de outro, novos ares, incertos e desafiadores...

Momentos de singeleza, suspensos em um tempo que foi e que, naturalmente, ressurgem no presente.

***

Nenhuma despedida é fácil, nem parecida com outra. Cada uma guarda sua dor, seus mistérios. Nenhuma parece durar além do tempo necessário, me refiro à despedida trágica, aquela que parece nos despir um pouco mais para a morte, que desponta como um rasgo na vida, rompendo com uma maneira de ver o mundo, para sobrepor algo mais dramático... A professora de português do ginásio, odiada ao longo do curso por suas exigências de leituras, mas que, naquele último encontro, fez resplandecer seu brilho de educadora à saída da sala de aula, o bondoso sorriso que havia guardado para uma ocasião especial, e logo retirando-se pelo caminho dos deuses...

Ou o olhar da última visita... o difícil foi saber, desde o princípio, que tratava-se da derradeira visita. Ao chegar, os olhos da avó perscrutaram detidamente o ambiente, as pequenas coisas, sem se preocupar com a conversação dos presentes. O sorriso derramava-se por todo o espaço, todo o tempo, apresando-lhe as palavras... Por fim levantou-se, beijou o neto e caminhou até a porta. Avançou mais um pouco e, como é tão comum à espécie humana, voltou-se ainda uma vez, desejando quem sabe apreender o inapreensível, e o fitou como jamais o fizera antes...

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Abandonar um parêntesis da vida, uma breve ficção da existência. A manhã despontando através dos janelões, a quietude do salão antes do burburinho do café da manhã, o olhar atento perdido na paisagem gelada do lado de fora, os pensamentos fomentados incessantemente, o desejo de ficar, em conflito com a necessidade de reassumir a realidade da vida cotidiana, e assim os minutos contados antes do inevitável regresso...

Ou o oposto, os últimos passos na cidadezinha não amada, mas que o recebera por um longo período. O passeio final, para ver o que até então não tinha visto, as pessoas com suas faces altaneiras, as ruas com sua mansa sonoridade, os recantos não mais odiados, o sol, bendito sol, que sempre estivera ali e que irrompia em sua poderosa energia... Era seu tempo de juventude, e sabia que naquele momento reencontrava a liberdade. A despedida significando o abandono de um imobilismo, mais do que prematuro, opressor...

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O registro memorial do particular, aqueles notáveis, de significativos desdobramentos, como também os impressos nas esferas do universal, de serena manifestação... O sujeito perdido em um cruzamento, abordado pela velha que lhe expõe a beleza de cada destino... A criança com os pés descalços, sentindo a areia quente e fofa do caminho... O homem velho, que se aconselha com a mãe, há muito não mais presente no mundo... O olhar marejado da mulher, a compartilhar a desventura do amado... O rapaz indeciso na plataforma, que resolve tomar o primeiro trem, redimensionando seu destino... A garota no banco da praça, detida nas minúcias da leitura, deixando-se levar pelo encanto da narrativa e pelo passo do tempo...

Múltiplas e surpreendentes lembranças, cuja simples retomada me renova, neste momento de expectativa...



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