04 outubro 2010

Frustração




A manhã de um cinza frio e distante, o caminhar pelas ruas, por entre as pessoas que passam e projetam expectativa... O ônibus grave, imerso em silêncio, olhares que desviam-se, inapreensíveis, que aguardam o destino, que voltam-se para si, como se pudessem antever o amargo desfecho do dia...

... enfileiram-se como em todos os dias, os vidros embaçados, embora seja domingo de eleição, a chance de purificar as blasfêmias disseminadas... a chance do protagonismo sem cabresto, sem família com deus pela liberdade... e lembro de Alberto Caeiro, Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora/E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse/Que nunca é o que se vê quando se abre a janela...

... o bairro burguês, em silêncio desenxabido, agora úmido... a escola, o vai-e-vem para as salas de votação, a conversa desgastada de três sujeitos bem vestidos, em frente, na fila, a presença do ódio misturado com desprezo, o voto para qualquer oposição... e logo as piadas sem graça... a presença desse ódio que abstrai a alma, o ruído da máquina indicando o voto, nada de fiscais, nada a registrar a cidadania, senão lábios que se calam... gestos suspensos...

... o nada que antecipa... o nada que promove todo e qualquer juízo negativo... novamente as ruas desencorpadas, a casa da família, amigos também reunidos e o desafio lançado em forma de provocação, mais uma, que saco!... apresento a resistência dos fatos para combater os preconceitos realimentados, para minimizar a presunção política... Nas palavras de Manoel Bomfim, Não compreendem que um povo não faz revoluções senão quando uma causa profunda, orgânica, o impele a isto... míopes, reduzidos de vista, eles não conseguem ver os fenômenos, os efeitos todos, por junto, e menos ainda determinar as relações fatais entre uns e outros...

... o almoço tormentoso, a sobremesa indigesta, frases que não se contemplam... mais tarde o ônibus de volta, a centralidade congestionada pelos automóveis que mal se movem... o metrô, mais rápido, as pessoas que acolhem o cinza da tarde, o frio da garôa... a padaria para um café, o velho que se interpõe, buliçoso, com um sorriso enfadonho e frases comedidas, que não desgruda, que fala dos primeiros resultados, e se diverte com a intriga gratuita... só pode, a inesperada encarnação do tinhoso... os fiapos de cabelo branco eriçados, saltitando de uma perninha para outra, sabe-se lá o quanto se diverte... Rumpelstiltskin... só me falta pedir que adivinhe seu nome em três dias, Hoje eu frito, amanhã eu cozinho! Depois de amanhã será meu o resultado da eleição! Coisa boa é ninguém saber Que meu nome é Rumpelstiltskin!...

... mas é diante da tevê que sinto o baque, que acompanho o desenrolar do anticlímax... que sinto o luto me cingir em dolorosa impotência... a tevê em sua torrente de imagens, mostrando o avanço dos números... e reflito no belo texto de Mônica Nunes, ... Estranho modo de a promessa de velocidade tornar-se imobilidade e extensão dos corpos, marcadores biográficos, estendidos no silencioso fragor dos destroços...

... sensação de sonho mal resolvido, a percepção desnecessária de sucessivos Mervais Pereiras, que, como o Rumpelstiltskin da padaria, se expressam com satisfação incontida sobre o aturdimento alheio...

... qual alternativa senão encarar os fatos, levantar e sacudir não a poeira, mas a bandeira, e dar a volta por cima...? Agora, mais do que nunca, incorporar a luta e desafiar as adversidades, que, espera-se, se origine do real desafio político...

... em vez de surgir da propagação da farsa e da intolerância... desse rumor falso que, nas palavras de Amin Maalouf, alguém promove com más intenções... desencadeia as hostilidades, e quando nos inteiramos da verdade, já é demasiado tarde, com as ruas cobertas de cadáveres...



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