30 dezembro 2008

Gaza



Ela despertou em meio a um torvelinho de lembranças desconexas, sentando-se na cama, atribulada, com as idéias em falta. A boca pastosa clamava por um gole de água, levantou-se. Diante do espelho, o rosto marcado por um sono pesado, trespassado por menções longínquas. Um pouco agitada, colheu com as mãos em concha um bocado da água que escorria da torneira, molhou o rosto e novamente se olhou no espelho. Mais um pouco de água, agora sorvendo-a com delicadeza. Nem todas as noites o desconsolo despontava como desta feita: fechou os olhos e pronunciou umas poucas palavras, após genuflectir sobre o tapete, com a mão direita sobre o coração.

A dor mais forte ocorreu desacompanhada de lágrimas. Caminhou até a janela do apartamento, já não era mais a chuva torrencial, mas uma garoa ondulada, que se derramava desprendendo um aroma fresco e ao mesmo tempo solene. Pensou em ouvir música, abastecer a alma atormentada com melodias que dariam vida às recordações fugidias. Selecionou o disco e junto com as primeiras notas, sobrevieram imagens distorcidas, rememorações de um passado em fragmentos, a mãe carregando a água nos baldes de madeira, a penúria dos dias quentes em Gaza, as reuniões políticas em casa, envolvendo a comunidade, a porta azul do vestíbulo, o rosto do amor prometido, que a arrebatara para a luta...


Mais uma vez diante da janela, imóvel, submetendo-se ao encanto das frases musicais que transcendiam aquele lugar, enquanto um ou outro automóvel passava, registrando o chiado dos pneus rolando na pista encharcada. Foi ao sofá, recolheu o kaftan até o tornozelo para acocorar-se sobre o estofado. Um frenesi embalado em dolorosa memória inundou-lhe progressivamente o espírito, varrendo a alma como a morte o fizera com sua família. Cobriu o rosto com o hijab, enquanto seus pensamentos transfiguravam-se ao buscar amparo nos versos sagrados cantados por Mohamed Al Hayani.


A inquietação interior a abalou em um pranto prolongado e assim permaneceu, sem desejo de mover-se, envolta em profunda contemplação com as vozes encerradas no coração. Por fim, levantou-se para preparar uma taça de chá de menta. Aos poucos acomodou-se em sintonia com a paz do momento, uma sensação que lhe roubou um sorriso, abrindo passagem para esconjurar uma vez mais o sofrimento... A noite fazia-se agradável com as lufadas de vento que entravam pela janela e enquanto aguardou a água ferver, achou por bem ir até o armário do quarto, pegar o álbum com as fotos de uma vida, repassando-o sem pressa. 


Calçou o par de sapatilhas douradas, costuradas pelo pai e esquecidas no tempo, pois sentia ali uma ocasião mais do que especial, sagrada. Retornou à sala, sob os auspícios das referências longínquas que fluíam até o presente... A alma transmigrou por reminiscências de lugares e de olores onde soube fartar-se em alegria, absorvendo-as com uma paz interior há muito não experimentada. A dor desapareceu, sobrevindo o encanto do reencontro.

Bebericou o primeiro gole do chá; aos poucos sua bela voz preencheu o ambiente em terna melodia. Sua voz e seu coração em comunhão com os versos de Al Hayani, sob as bênçãos de Alá...




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