24 dezembro 2008

Os cães de Santiago




Ali, bem na esquina, a uns dez metros, um cão negro deitado, abandonado. Passo ao largo e continuo à deriva, em outra noite fria e silenciosa. Disponho de alguns dias e pretendo usufruí-los com toda a liberdade. Mais uma quadra, três cães farejando os cantos, o de focinho comprido manquitola. Rosnam entre si, numa brincadeira sem graça e se retiram. Para onde vão?

Nesta noite não quero programa, nem o aconchego de meu quarto de hotel. Estou feliz por caminhar sem destino, passeio Ahumada, avenida O’ Higgins, o Cerro de Santa Lucia, pouco movimento nas calçadas, o comércio com as portas cerradas, mesmo as enamoradas que gostam de freqüentar os bancos públicos parecem afugentadas para os interiores, bem as vejo sussurrando ou divertindo-se nas mesas, através das vidraças. Desprendo-me, permito-me flanar saltando de recordação em recordação, à espera da próxima surpresa, quem sabe na próxima esquina. Nada mais saudável do que andar sem critérios e observar o cenário em sombras, as mãos nos bolsos do casaco forrado, o ar gélido a penetrar pelas narinas. Quando penso em Muriel, a atenção volta-se para outro grupo de cães. Passo bem perto, o suficiente para tornar-me ameaçador e com isso afugentá-los. Ao mesmo tempo que dóceis, são esquivos e não se permitem aos humanos. O problema poderia ser comigo, um forasteiro que não sabe de suas artimanhas, mas não, tenho-os observado o suficiente para saber que evitam a todos os humanos. Por quê?

A caminhada me estimula as divagações. Penso nas duas brasileiras que encontrei no dia anterior, nas proximidades do cerro San Cristóbal. Entrei numa casa de artesanato e ali estavam elas, avaliando peças de cobre, bolsas, pequenas esculturas. Conversavam com o sotaque típico gaúcho, uma morando ao norte, em Huechuraba, outra de passagem por uns dias, felizes pelo reencontro depois de anos. Perguntei se tinham algum programa para a noite, não tinham, de modo que pudemos beber e falar das nossas expectativas. Lucia regressaria em breve para o Brasil, Renata ficaria por mais um tempo, concluindo o doutorado sobre o governo Allende. Eu não estava preocupado com elucubrações políticas, queria apenas a companhia delas. Mais de uma vez dei-me por satisfeito em presenciar os debates acalorados entre as amigas, sobre algum ponto visceral da sociedade chilena ou brasileira. Gostava de ver o movimento labial de Lucia quando se empolgava na conversa e foi esse detalhe que me fez escolhê-la para que me acompanhasse pelo restante da noite. Mas não, foram embora juntas, sem me permitir nada além de um beijo en las melillas. Partiram e não fiquei só, um pouco mais adiante, um bando desgarrado de cães apareceu para me ciceronear por umas quadras, com seus movimentos dispersos e olhares atentos.

Lucia, Renata... não estou interessado em aventuras. Prezo este sossego momentâneo para sair e chegar a qualquer hora, de vagar por qualquer parte da cidade, de pensar que disponho de tempo. Talvez mais adiante, quem sabe conhecer uma chilena mapuche como tantas que despontam com sua graça pelas ruas e aí sim, quem sabe, ouvir um pouco de política, de saber das histórias de um povo, emocionar-me com os relatos de uma cultura ignorada... Antes, porém, quero sentir essa liberdade de poder ficar à toa, ouvir outras vozes, sentir o rumor do vento noturno, sorver mais bebidas. As madrugadas são convidativas para esses passeios sem destino, escoltado por cães perdidos. Nada mais bizarro. Ali vão eles, mais uma turma, enfurnam-se pela vegetação da praça e logo retornam, sempre juntos. Desta vez se aproximam, como se fosse uma comitiva representando os cães de Santiago. No fim da fila o de focinho comprido, o mesmo de algumas horas atrás. Lembro-me de Atma, o velho cão de meu avô, em comum a cor marrom e mais nada. Este Atma é sem raça definida, tem o pelo espetado pela sujeira do abandono e é ágil, embora... embora seja perceptível algum problema com uma patinha, o jeito como se apóia com certo incômodo. Eles chegam e me circundam numa órbita elíptica, ora próximos, ora distantes, agrada-me observá-los em seu ritual grupal e a certa distância se detêm para uma derradeira conferência silenciosa, onde Atma é escolhido o interlocutor. Cão de rua é arisco, pouco dado a interlocuções. Atma não é diferente, aproxima-se com cuidado, mais pela obrigação de expressar o que sente, ou o que foi incumbido de expressar. Aguardo pacientemente, observo a aproximação tímida, incerta, verifico a desilusão estampada no par de olhos. Agora, tão próximo que posso acariciar levemente sua cabeça, ergue sua pata machucada, seguro-a, nada posso fazer porque não identifico o problema. Ele retira a pata de minhas mãos, porém não se afasta, é como se me desse mais uma chance.

Levanta pela derradeira vez seus olhos, informando-me que o tempo se esgota, que eles precisam ir. Quer que eu os acompanhe. Passo a segui-los, enveredando por caminhos ao sabor das estrelas, a noite mais fria a cada beco e viela ultrapassados e prosseguimos, determinados a alcançar um fim. Quando o negrume da noite se impõe, chegamos a um destino marcado pelo desconsolo. Os cães, como a cumprirem sua missão, se aconchegam aos corpos que os acolhem com movimentos macilentos, remexendo o lixo que os protege. Gestos débeis, de exígua duração: logo todos sossegam e adormecem. Talvez fosse apenas isso, os cães atraindo o homem ao limite extremo da caminhada, para os monturos da sua própria civilização.


2 comentários:

Claudia disse...

Tomara que você tenha um ano novo sensacional. Abraços

Marco Antônio Bin disse...

Obrigado, Claudia.
Um ótimo ano novo para você também.
Um abraço.