Passei a noite na casa de meus tios, no quarto que um dia dividi com meu irmão. Está diferente, hoje transformou-se em reduto de hóspedes, com uma cama de casal ladeada por uma estante baixa, de madeira, que ainda contém objetos da nossa infância. Uma longa noite, em que mal preguei os olhos; a maior parte do tempo foi passada entre pensamentos voltados para esse tempo longinquo, que se esfumou aos bocados, deixando um registro vago. A luz do abajur projetava uma luz diáfana, oferecendo uma profusão de imagens pregadas à parede. Sorrisos sem apêgo, delícias sem sabor, sonhos sem horizonte. Envolviam o mais amplo arco de pessoas próximas, pais, tios, avós, irmãos, amigos, todos bem dispostos, saudáveis, expectantes com o futuro, sem fragilidades aparentes. A maioria ficou no passado e isso propiciou sentimentos ambíguos de saudade e indiferença, de dor e prazer, de coisas concluídas mescladas com coisas por fazer, de compartilhamento e distanciamento. Das sutilezas bucólicas a jornadas insensatas, formigava um turbilhão sucessivo que me atirava para uma ou outra situação vivida, flashes irrequietos de momentos em sua maioria descartáveis. Faltavam as imagens sujas, de desgosto, angústia, impotência, que propiciaram as rupturas transformadoras... Não, não estavam ali registradas, e isso incomodava no silêncio com odor de naftalina. Despregava um quê de Borges, de Funes, o memorioso, em que as lembranças acorrem ao personagem de modo múltiplo e infinito...Levantei-me e fui à cozinha beber água, atravessando a escuridão ordenada da sala, descendo as escadas atapetadas, com o único desejo de fazer fluir o tempo, colocando um fim às lembranças. Estava à beira de me arrepender da idéia de passar uma noite naquela casa, lamentando o presente petrificado ao meu redor, por demais previsível, em que tudo – as fotos, os objetos, a casa, as pessoas remanescentes – estavam condenados a um solene conformismo, com direito a um longo processo linear, sem quebras ou surpresas... Voltei para o quarto, sob a efluência das imagens mentais de Mercedes, que me excitava pela formosura do corpo e pela conversa instigante, mulher próxima e carinhosa... Mulher proibida, com o destino traçado para outra vida, com outro homem e uma família... Devaneios insensatos, imponderáveis, que redimiam meu desconsolo... A manhã custou a despontar sob o canto dos pássaros, emoldurada pelo cansaço de fundo, que me apaziguou... Um sonho tremeluzente, em que era conduzido pelas mãos de Mercedes, seus cabelos esparramados sobre a cama, vorazes, o beijo longo e abrasador, sedução posta nos braços envolventes, em gestos altercados... Não durou. Ouvi ruídos na cozinha e retomei por algum tempo a realidade nostálgica de meu quarto. Levantei-me, fui ao encontro de meus tios, tomei com eles o desjejum, satisfeito por vê-los bem dispostos em seu frescor embotado. Abandonei os pensamentos ondulosos e a breve conversa tornou-me a conectar com alguma vida...
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