30 dezembro 2008

Gaza



Ela despertou em meio a um torvelinho de lembranças desconexas, sentando-se na cama, atribulada, com as idéias em falta. A boca pastosa clamava por um gole de água, levantou-se. Diante do espelho, o rosto marcado por um sono pesado, trespassado por menções longínquas. Um pouco agitada, colheu com as mãos em concha um bocado da água que escorria da torneira, molhou o rosto e novamente se olhou no espelho. Mais um pouco de água, agora sorvendo-a com delicadeza. Nem todas as noites o desconsolo despontava como desta feita: fechou os olhos e pronunciou umas poucas palavras, após genuflectir sobre o tapete, com a mão direita sobre o coração.

A dor mais forte ocorreu desacompanhada de lágrimas. Caminhou até a janela do apartamento, já não era mais a chuva torrencial, mas uma garoa ondulada, que se derramava desprendendo um aroma fresco e ao mesmo tempo solene. Pensou em ouvir música, abastecer a alma atormentada com melodias que dariam vida às recordações fugidias. Selecionou o disco e junto com as primeiras notas, sobrevieram imagens distorcidas, rememorações de um passado em fragmentos, a mãe carregando a água nos baldes de madeira, a penúria dos dias quentes em Gaza, as reuniões políticas em casa, envolvendo a comunidade, a porta azul do vestíbulo, o rosto do amor prometido, que a arrebatara para a luta...


Mais uma vez diante da janela, imóvel, submetendo-se ao encanto das frases musicais que transcendiam aquele lugar, enquanto um ou outro automóvel passava, registrando o chiado dos pneus rolando na pista encharcada. Foi ao sofá, recolheu o kaftan até o tornozelo para acocorar-se sobre o estofado. Um frenesi embalado em dolorosa memória inundou-lhe progressivamente o espírito, varrendo a alma como a morte o fizera com sua família. Cobriu o rosto com o hijab, enquanto seus pensamentos transfiguravam-se ao buscar amparo nos versos sagrados cantados por Mohamed Al Hayani.


A inquietação interior a abalou em um pranto prolongado e assim permaneceu, sem desejo de mover-se, envolta em profunda contemplação com as vozes encerradas no coração. Por fim, levantou-se para preparar uma taça de chá de menta. Aos poucos acomodou-se em sintonia com a paz do momento, uma sensação que lhe roubou um sorriso, abrindo passagem para esconjurar uma vez mais o sofrimento... A noite fazia-se agradável com as lufadas de vento que entravam pela janela e enquanto aguardou a água ferver, achou por bem ir até o armário do quarto, pegar o álbum com as fotos de uma vida, repassando-o sem pressa. 


Calçou o par de sapatilhas douradas, costuradas pelo pai e esquecidas no tempo, pois sentia ali uma ocasião mais do que especial, sagrada. Retornou à sala, sob os auspícios das referências longínquas que fluíam até o presente... A alma transmigrou por reminiscências de lugares e de olores onde soube fartar-se em alegria, absorvendo-as com uma paz interior há muito não experimentada. A dor desapareceu, sobrevindo o encanto do reencontro.

Bebericou o primeiro gole do chá; aos poucos sua bela voz preencheu o ambiente em terna melodia. Sua voz e seu coração em comunhão com os versos de Al Hayani, sob as bênçãos de Alá...




28 dezembro 2008

Ghassan Kanafani



Resultado de imagem para ghassan kanafani
Gassan Kanafani (1936-1972) 

Caminhei pelas ruas que o sol ainda banhava. Fiquei sabendo que Nadia havia perdido a perna ao tentar proteger os irmãos quando sua casa se incendiou durante o bombardeio. Ela poderia ter fugido e escapado ilesa. Mas não fez isso. Você sabe por quê?


Não, Mustafá. Eu não vou mais à Califórnia. Não lamento isso. Não vou poder ir até o fim dos sonhos que tivemos juntos desde a infância. É preciso que deixemos crescer este estranho sentimento, que você certamente teve, como uma ferida, ao deixar Gaza. Temos de fazer com que ele supere todos os outros. Procure dentro de você mesmo até encontrar. Mas acho que você não pode reencontrá-lo a não ser aqui, no meio das ruínas de nossa tragédia.


Eu não vou mais partir. Você é quem deve voltar. Voltar para aprender, diante da perna amputada de Nadia, o que vale a vida, nossa vida.


Volte. Nós todos esperamos por você
.



(Trecho do livro Contos da Palestina, Editora Brasiliense, Cantadas Literárias, 1986).



27 dezembro 2008

Sobre a Palestina (2)




"Pero el recuerdo que más insistía en volver era el de la anciana que viajaba en el asiento contiguo. Su mano arrugada, temblorosa, que sacudía en el aire el documento azul de identidad. Era apenas un gesto, pero estaba cargado de significado. Me hablaba de lo cruel y humillante que es toda ocupación, me mostraba la dimensión humana del experimento de ingeniería social que habían puesto en marcha los israelíes para encerrar a los palestinos en sus pueblos y ciudades, para evitar que se pudieran mover com libertad, mientras seguían expandiendo su dominio en aquellas tierras que, según la legalidad internacional, no les pertenecían. Un concepto imposible de aceptar en los albores del siglo XXI, basado en la segregación por la raza, en lugar de origen y la religión, que resonabla, salvando las distancias y las diferencias históricas, a los bantustanes en que los afrikáners encerraban a los negros durante el apartheid".

(Trecho do livro Llueve sobre Gaza vida y muerte en tierra sitiada, Hernán Zin)



Sobre a Palestina (1)




"No acepto el chantaje al que recurren muchos fanáticos de llamar ‘antisemita’ a quien denuncia los abusos y crímenes que comete el Gobierno de Israel".

Mario Vargas Llosa




24 dezembro 2008

Os cães de Santiago




Ali, bem na esquina, a uns dez metros, um cão negro deitado, abandonado. Passo ao largo e continuo à deriva, em outra noite fria e silenciosa. Disponho de alguns dias e pretendo usufruí-los com toda a liberdade. Mais uma quadra, três cães farejando os cantos, o de focinho comprido manquitola. Rosnam entre si, numa brincadeira sem graça e se retiram. Para onde vão?

Nesta noite não quero programa, nem o aconchego de meu quarto de hotel. Estou feliz por caminhar sem destino, passeio Ahumada, avenida O’ Higgins, o Cerro de Santa Lucia, pouco movimento nas calçadas, o comércio com as portas cerradas, mesmo as enamoradas que gostam de freqüentar os bancos públicos parecem afugentadas para os interiores, bem as vejo sussurrando ou divertindo-se nas mesas, através das vidraças. Desprendo-me, permito-me flanar saltando de recordação em recordação, à espera da próxima surpresa, quem sabe na próxima esquina. Nada mais saudável do que andar sem critérios e observar o cenário em sombras, as mãos nos bolsos do casaco forrado, o ar gélido a penetrar pelas narinas. Quando penso em Muriel, a atenção volta-se para outro grupo de cães. Passo bem perto, o suficiente para tornar-me ameaçador e com isso afugentá-los. Ao mesmo tempo que dóceis, são esquivos e não se permitem aos humanos. O problema poderia ser comigo, um forasteiro que não sabe de suas artimanhas, mas não, tenho-os observado o suficiente para saber que evitam a todos os humanos. Por quê?

A caminhada me estimula as divagações. Penso nas duas brasileiras que encontrei no dia anterior, nas proximidades do cerro San Cristóbal. Entrei numa casa de artesanato e ali estavam elas, avaliando peças de cobre, bolsas, pequenas esculturas. Conversavam com o sotaque típico gaúcho, uma morando ao norte, em Huechuraba, outra de passagem por uns dias, felizes pelo reencontro depois de anos. Perguntei se tinham algum programa para a noite, não tinham, de modo que pudemos beber e falar das nossas expectativas. Lucia regressaria em breve para o Brasil, Renata ficaria por mais um tempo, concluindo o doutorado sobre o governo Allende. Eu não estava preocupado com elucubrações políticas, queria apenas a companhia delas. Mais de uma vez dei-me por satisfeito em presenciar os debates acalorados entre as amigas, sobre algum ponto visceral da sociedade chilena ou brasileira. Gostava de ver o movimento labial de Lucia quando se empolgava na conversa e foi esse detalhe que me fez escolhê-la para que me acompanhasse pelo restante da noite. Mas não, foram embora juntas, sem me permitir nada além de um beijo en las melillas. Partiram e não fiquei só, um pouco mais adiante, um bando desgarrado de cães apareceu para me ciceronear por umas quadras, com seus movimentos dispersos e olhares atentos.

Lucia, Renata... não estou interessado em aventuras. Prezo este sossego momentâneo para sair e chegar a qualquer hora, de vagar por qualquer parte da cidade, de pensar que disponho de tempo. Talvez mais adiante, quem sabe conhecer uma chilena mapuche como tantas que despontam com sua graça pelas ruas e aí sim, quem sabe, ouvir um pouco de política, de saber das histórias de um povo, emocionar-me com os relatos de uma cultura ignorada... Antes, porém, quero sentir essa liberdade de poder ficar à toa, ouvir outras vozes, sentir o rumor do vento noturno, sorver mais bebidas. As madrugadas são convidativas para esses passeios sem destino, escoltado por cães perdidos. Nada mais bizarro. Ali vão eles, mais uma turma, enfurnam-se pela vegetação da praça e logo retornam, sempre juntos. Desta vez se aproximam, como se fosse uma comitiva representando os cães de Santiago. No fim da fila o de focinho comprido, o mesmo de algumas horas atrás. Lembro-me de Atma, o velho cão de meu avô, em comum a cor marrom e mais nada. Este Atma é sem raça definida, tem o pelo espetado pela sujeira do abandono e é ágil, embora... embora seja perceptível algum problema com uma patinha, o jeito como se apóia com certo incômodo. Eles chegam e me circundam numa órbita elíptica, ora próximos, ora distantes, agrada-me observá-los em seu ritual grupal e a certa distância se detêm para uma derradeira conferência silenciosa, onde Atma é escolhido o interlocutor. Cão de rua é arisco, pouco dado a interlocuções. Atma não é diferente, aproxima-se com cuidado, mais pela obrigação de expressar o que sente, ou o que foi incumbido de expressar. Aguardo pacientemente, observo a aproximação tímida, incerta, verifico a desilusão estampada no par de olhos. Agora, tão próximo que posso acariciar levemente sua cabeça, ergue sua pata machucada, seguro-a, nada posso fazer porque não identifico o problema. Ele retira a pata de minhas mãos, porém não se afasta, é como se me desse mais uma chance.

Levanta pela derradeira vez seus olhos, informando-me que o tempo se esgota, que eles precisam ir. Quer que eu os acompanhe. Passo a segui-los, enveredando por caminhos ao sabor das estrelas, a noite mais fria a cada beco e viela ultrapassados e prosseguimos, determinados a alcançar um fim. Quando o negrume da noite se impõe, chegamos a um destino marcado pelo desconsolo. Os cães, como a cumprirem sua missão, se aconchegam aos corpos que os acolhem com movimentos macilentos, remexendo o lixo que os protege. Gestos débeis, de exígua duração: logo todos sossegam e adormecem. Talvez fosse apenas isso, os cães atraindo o homem ao limite extremo da caminhada, para os monturos da sua própria civilização.


23 dezembro 2008

Antonio Machado




Morir... ¿Caer como gota de mar
en el mar inmenso?
¿O ser lo que nunca he sido:
uno, sin sombra y sin sueño,
un solitario que avanza
sin camino y sin espejo?


Proverbios y Cantares - XLV




21 dezembro 2008

Futebol S/A



Só posso dizer que os domingos ficaram um pouco mais suportáveis sem o futebol. Nada contra o esporte, mas sim contra o negócio. A diversão proporcionada pelo prazer da prática do esporte bretão foi grosseiramente absorvida pelo mercado, transformada em um amontoado de interesses que se conectam e que proporcionam um produto rentável. Com isso, vendem-nos - por seus arautos da mediocridade, os locutores esportivos - uma emoção embotada, artificial em sua montagem, nefasta em sua finalidade, que nos esvazia a cada final de tarde.


Por isso, talvez, o alívio desta época, por não termos esses mediadores desesperados a nos dizer como devemos nos emocionar, como devemos reagir, como não devemos pensar.


Sem o futebol-negócio, as tardes ficam mais sossegadas, as famílias ficam com o tempo para si, as ruas se enchem. As torcidas uniformizadas não medem forças, os repórteres esportivos não fazem as mesmas perguntas babacas, os jogadores não dão as mesmas respostas. Não há mesas-redondas repercutindo lances polêmicos, nem cartolas querendo vender sua falta de imaginação.


Pois o futebol como mercado nada mais é do que o espetáculo que se deseja vender e extrair dividendos. Não interessa como ou de que maneira. Só nos damos conta da fragilidade da alma diante de tanta expropriação ao percebermos essa trégua momentânea... Então recuperamos o desejo efêmero de pensar o futebol como ele é, nas rodas de amigos, restabelecendo o prazer e a diversão...


Até que a engrenagem volte a girar massacrando a todos, porque tornou-se essencial capturar e adestrar a emoção.



###

Vale muito a pena a leitura do artigo do professor Luiz Gonzaga Belluzzo, Pirâmides e Miragens, publicado na revista Carta Capital desta semana. Destaco um pequeno trecho:

"Mesmo diante das provas contundentes a respeito da promiscuidade entre desregulamentação e práticas fraudulentas, os gênios da 'nova economia' estão na mídia dispostos a utilizar quaisquer argumentos para desqualificar as críticas aos métodos e procedimentos utilizados no ciclo financeiro recente. (...) Os últimos acontecimentos protagonizados pelos mercados mostram que é preciso conter a mula-sem-cabeça da finança desregulada. Sob pena de as economias nacionais e seus cidadãos serem atormentados periodicamente pelas tropelias da mão invisível. (...)"


19 dezembro 2008

Edward Said



"É escandaloso e ofensivo se comparar sofrimentos. Dizer que 'o que estão fazendo com os palestinos é o mesmo que fizeram aos judeus' não é verdade de forma alguma. O que os judeus passaram é horrível e realmente sem precedentes. Mas, por outro lado, isso não pode ser usado como forma de diminuir a terrível punição que os palestinos têm sofrido nas mãos dos israelenses. Não é uma questão de comparações. É uma questão de se dizer que ambos são inaceitáveis".

in Cultura e resistência


Sentimentos caseiros



Passei a noite na casa de meus tios, no quarto que um dia dividi com meu irmão. Está diferente, hoje transformou-se em reduto de hóspedes, com uma cama de casal ladeada por uma estante baixa, de madeira, que ainda contém objetos da nossa infância. Uma longa noite, em que mal preguei os olhos; a maior parte do tempo foi passada entre pensamentos voltados para esse tempo longinquo, que se esfumou aos bocados, deixando um registro vago. A luz do abajur projetava uma luz diáfana, oferecendo uma profusão de imagens pregadas à parede. Sorrisos sem apêgo, delícias sem sabor, sonhos sem horizonte. Envolviam o mais amplo arco de pessoas próximas, pais, tios, avós, irmãos, amigos, todos bem dispostos, saudáveis, expectantes com o futuro, sem fragilidades aparentes. A maioria ficou no passado e isso propiciou sentimentos ambíguos de saudade e indiferença, de dor e prazer, de coisas concluídas mescladas com coisas por fazer, de compartilhamento e distanciamento. Das sutilezas bucólicas a jornadas insensatas, formigava um turbilhão sucessivo que me atirava para uma ou outra situação vivida, flashes irrequietos de momentos em sua maioria descartáveis. Faltavam as imagens sujas, de desgosto, angústia, impotência, que propiciaram as rupturas transformadoras... Não, não estavam ali registradas, e isso incomodava no silêncio com odor de naftalina. Despregava um quê de Borges, de Funes, o memorioso, em que as lembranças acorrem ao personagem de modo múltiplo e infinito...Levantei-me e fui à cozinha beber água, atravessando a escuridão ordenada da sala, descendo as escadas atapetadas, com o único desejo de fazer fluir o tempo, colocando um fim às lembranças. Estava à beira de me arrepender da idéia de passar uma noite naquela casa, lamentando o presente petrificado ao meu redor, por demais previsível, em que tudo – as fotos, os objetos, a casa, as pessoas remanescentes – estavam condenados a um solene conformismo, com direito a um longo processo linear, sem quebras ou surpresas... Voltei para o quarto, sob a efluência das imagens mentais de Mercedes, que me excitava pela formosura do corpo e pela conversa instigante, mulher próxima e carinhosa... Mulher proibida, com o destino traçado para outra vida, com outro homem e uma família... Devaneios insensatos, imponderáveis, que redimiam meu desconsolo... A manhã custou a despontar sob o canto dos pássaros, emoldurada pelo cansaço de fundo, que me apaziguou... Um sonho tremeluzente, em que era conduzido pelas mãos de Mercedes, seus cabelos esparramados sobre a cama, vorazes, o beijo longo e abrasador, sedução posta nos braços envolventes, em gestos altercados... Não durou. Ouvi ruídos na cozinha e retomei por algum tempo a realidade nostálgica de meu quarto. Levantei-me, fui ao encontro de meus tios, tomei com eles o desjejum, satisfeito por vê-los bem dispostos em seu frescor embotado. Abandonei os pensamentos ondulosos e a breve conversa tornou-me a conectar com alguma vida...


18 dezembro 2008

Sentimentos à beira-mar



Eu e minhas lembranças. Não há esforço visível que possa desprender e que me faça libertar desta consciência tão indelével. Posso estar no melhor de meus dias, caminhando pela praça, lendo meu livro, conversando com um cliente, não importa, haverá um instante, um mísero instante em que perderei contato com a realidade para remeter-me à princesa dos meus sonhos, desejos em dolorosa volúpia. Entrego-me ao sabor das emoções, a mulher que me conduz pelos meandros de uma imaginação pecaminosa, sedução que persiste em seus laivos lancinantes...

Remeto-me ao princípio dos tempos, que por mais distantes, remontam com o frescor da primavera. As imagens ganham em nitidez à medida que desvelo recordações enturvadas, há muito abandonadas, que de súbito me trazem a sobrevida, robustecem a alma solene, expondo suas faces brilhantes, e a roda da fortuna restabelecendo o jogo que me eleva a renovados diálogos imaginários...

A princesa perdida, a mais enigmática e a mais desejável. O tempo escoa e aprofunda meu devaneio, aparta-me delicadamente do presente e entrega-me aos caprichos infinitos da memória. Situações que despontam e que me arrastam, promovidas por desejos obscuros, inconclusos, ativados por distrações mal percebidas como os pedestres que cruzam lateralmente meu campo visual, ou por este aroma de jasmim, tão inesperado quanto arrebatador. Breves regurgitações que me devoram a alma...

Abdico da realidade para retomar um mundo desvanecido, que me revolve tal qual as palavras introspectivas de um belo poema. Permaneço em minha solidão intrínseca, sem pressa em abandonar esse movimento à deriva, o olhar imóvel nas ondas crispadas, que rebentam suavemente. Satisfaço-me em aventar os encantos dispersos, sem tormentos, plenos de conjecturas...

Avanço pela areia quente e fofa e alcanço a brandura das águas. O frescor da tarde estimula a serenidade do imaginário, sob os grunhidos das gaivotas que voluteiam ao longe. Sua presença, princesa amada, desponta imperturbável no horizonte, acima do azul do mar; seu sorriso esparrama-se com a brisa que afaga meu rosto, desliza com o último ardor do sol, e a boca novamente sôfrega oferece-me o sabor dissipado, esconjurado, enquanto sem perda de tempo (mas... existe um tempo que flui nessas quimeras reflexivas?) me solicita a resposta crucial, eliminando os temores de um novo adeus.


16 dezembro 2008

Uma circunstância lamentável


Sei do senhor Martinez desde a tenra idade. Eu morava três quadras da sua loja, que ficava na avenida Santo Amaro, de sorte que era comum vê-lo sentado em sua cadeira, folgazão, à espera de seus clientes. Minhas primeiras recordações me remetem a um homem solitário, de feições graves e pouco tolerantes (do meu ponto de vista de criança, claro). Era comum me perder nas várzeas ainda existentes no Brooklin, jogando bola ou participando de uma cruenta guerra de mamonas com os amiguinhos. Na volta dessas brincadeiras, por alguma razão, não gostava de desperdiçar nenhuma oportunidade para observá-lo escorado cada vez mais pesadamente em sua cadeira, de frente para a rua. Ao lado de sua indiferença, eu conseguia ver no volume de seu corpanzil uma nobreza próxima do sagrado, acreditando que mais cedo ou mais tarde, por uma razão que até hoje desconheço, ele se tornaria mais do que uma referência simbólica, um tio-amigo que eu não tive. Por isso, talvez, o esforço obsedante em vê-lo. 

E foi dentro dessa expectativa silenciosa que passei a sonhar com o senhor Martinez, a criar em meu imaginário conversas com ele e mesmo a criar umas lendas sobre ele. Uma delas era que, devido ao seu comportamento previsível e solitário, ele fosse um homem sem família, nascido já daquele tamanho enorme e que seu primeiro presente fora uma cadeira. Bem mais tarde, já de uma perspectiva mais madura, fui saber que ele era casado, tinha filhos, gostava do Palmeiras... um homem com desejos e problemas comuns. Jamais tive a oportunidade de conhecer alguém da sua família, o que me faz crer que ele gostava mesmo era de ficar sossegado, em seu infindável e onipotente silêncio.

Uma só vez arrisquei entrar em seu estabelecimento, já devia ter uns treze anos. Aproximei-me, peguei um gibi e quis pagar. O senhor Martinez abanava-se, fazia muito calor naquele dia. Os seus olhos estavam mais ou menos na mesma altura dos meus e, enquanto ele apalpava o nada com seu olhar entorpecido, reparei em suas rugas, sulcos por onde escorria o suor, suas bochechas moles, seu barrigão de velho desleixado, quase fazendo explodir os últimos botões da camisa, as pernas entrecruzadas, soltas e inúteis. Após um breve impasse abandonou seu transe, movimentou o braço em minha direção e a mão gorda capturou as moedas com um lânguido desinteresse. Balbuciou o obrigado mais distante e desanimado que eu já tinha ouvido.


Saí às pressas e não mais regressei à loja, todavia isso não me impediu de continuar crescendo e olhando, por uma estranha compulsão, para dentro dela, inevitavelmente localizando o senhor Martinez no mesmo lugar, ora se abanando, ora com os olhos voltados para o seu infinito, ora se protegendo do frio com uma manta pesada, enfim, uma verdadeira montanha desolada, eternamente à espera do próximo freguês.


A velhice passou a imobilizá-lo ainda mais à época que eu cursava a faculdade, pois em minhas passagens esporádicas diante da loja, constatava seu espaço mais abandonado, acompanhando de certo modo a decadência do nosso próprio bairro. As transformações urbanas foram severas, a avenida Santo Amaro transformou-se em um corredor com tráfego perigoso, sem calçadas, e as várzeas e os terrenos baldios renderam-se à especulação imobiliária. A verticalização das construções expulsou moradores e trouxe a canalização de ventos, que vieram a circular com intensidade e desconforto. Minha primeira namorada não entendia quando eu insistia em esticar o caminho, só para cruzar com a loja do senhor Martinez e verificar, no breve segundo que a velocidade do ônibus permitia, aquele que, para ela, não passava de um velho gordo inútil e decrépito.


Certa vez, logo após terminar a faculdade, estacionei meu carro e subi até o mezanino de um edifício comercial bem em frente de sua loja e, munido de um binóculo adquirido num shopping, vasculhei seu ambiente. Patético. O vento contínuo bramia em rajadas sibilantes contra a cabeça do senhor Martinez, enquanto insetos, uma infinidade deles, circulavam a vontade ao seu redor e sobre as montanhas de jornais e revistas imprestáveis, dentro dos potes de guloseimas que nunca arrisquei experimentar. Por que não conseguia tomar uma atitude para livrar o senhor Martinez de sua tumba? O mundo ao seu redor tomava conta de si, como a querer envolvê-lo e efetivá-lo como um elemento a mais da paisagem embrutecida.


Até que um dia, ao subir no mesmo edifício, vi o senhor Martinez imóvel, mais imóvel do que de costume. Como se estivesse morto, ou inteiramente entregue ao desconsolo. No meio de tanta devastação, também os ratos infestavam o lugar. Brotavam de todos os cantos e pareciam conjurar entre eles sobre a melhor forma de dar o golpe de misericórdia no senhor Martinez e assumirem de vez a loja. Jornais, revistas e doces eram detalhes sem importância, transformados em meros aconchegos para os bichos. A cena me impressionou de tal maneira que, um dia, ao passar com um de meus filhos diante da loja, decidi não mais rever aquela paisagem lúgubre, tampouco o velho gordo e decrépito.


Mudei para outro bairro, nunca mais soube do senhor Martinez e imagino que tenha sucumbido sem ter se livrado do estado lamentável em que se reduziu sua loja. Devo concluir, acrescentando que não guardo qualquer espécie de decepção pelo senhor Martinez, quiçá um pouco de compaixão e tristeza pelas coisas terem tomado o rumo que tomaram. Sua presença me acompanhou por muitos anos da minha vida e penso que isso significou demais para mim. Hoje estou velho, próximo do fim, e minha única preocupação atualmente é não permanecer sentado por muito tempo no mesmo lugar.



14 dezembro 2008

A crise...


I.

... ora a crise, continua comendo solta. Você vai aos centros comerciais - dos mais populares como a 25 de março aos mais sofisticados como os shoppings - e as vendas se superam a cada final de semana. Já que natal virou tempo de avaliar o desempenho da economia, então prossigamos: os feirões de automóveis novos e usados seguem vendendo, tomando carona nas medidas do governo, de redução de impostos. É provavel que os jornalões, revistas e noticiários globais achem uma brecha para inserir o pânico da crise, bem-vinda crise, adorável crise, que detona o mundo. Há que se disseminar o desespero, a insegurança, já que o mercado das notícias explora o clima de temor e terror para faturar. Sobrepõe-se a indagação: os interesses das corporações (quaisquer que sejam, da midiática à automobilística) em enfrentar a tal crise coincidem com os interesses da população em geral? Trocando em miúdos, a preocupação veiculada reflete de fato os temores cotidianos da massa sem voz?...


II.

Estive na rua Oscar Freire, o deslumbrante shopping a céu aberto da Paulicéia, frequentado por 9 entre 10 aristocratas paulistanos com rolex, e nada consegui levantar sobre o tema, pois os problemas foram postergados para depois do ano novo (Crisis, what crisis?). O que tem contado é a voracidade pelas compras...
Aliás (o que seria um interessante tema para uma reportagem natalina), tem-se observado nesta região dos Jardins a presença crescente de indigentes igualmente vorazes, só que por um prato de comida. Estes sim, poderiam falar sobre crise.


12 dezembro 2008

O senhor Gouveia



Encontrei o senhor Gouveia adentrando o recinto, após tomar uma intensa chuvarada, e o acompanhei até o escritório. Sua figura alta e esguia mostrava-se impiedosamente encharcada e como era de costume, mostrava-se conformado pela situação desconfortável, pouco antes de tomar assento diante de sua mesa, para o início de sua jornada de trabalho. Mais uma vez perguntei-lhe sobre o guarda-chuva, e mais uma vez ele me respondeu, indiferente, Não tenho guarda-chuva... Era a quarta ou quinta ocasião em que o via naquele estado e indaguei-lhe em tom de broma se os deuses o haviam castigado de modo especial, ao que ele respondeu pacientemente, Eles estão aperfeiçoando o método... e prosseguiu, de modo mais incisivo, enquanto enxugava os óculos, Desta vez esperaram que eu chegasse no meio da esplanada, para que eu não pudesse escapar... 


11 dezembro 2008

Cooperifa




Fiz mais uma visita a esta assembléia de poetas das periferias, não só por ela ser tema de minha investigação de pós-graduação, mas sobretudo pelo prazer em apreciar as performances de pessoas tão simples quanto vencedoras.

A viagem de hoje - há que se entender assim o deslocamento dos bairros centrais até este rincão longínquo - foi o mais difícil dentre tantos que realizei, porque me desloquei até lá no horário do rush, e porque desabou uma tormenta diluviana por uma hora, que paralisou o já caótico trânsito de São Paulo. Foram duas horas e meia, quando normalmente se leva uma hora e meia. Ao meu redor, gente esfalfada pela desgastante jornada de trabalho, mas sem perder o bom humor nas conversas, ou o que é mais incrível, sem uma palavra de revolta diante da situação.

Conversei com meia dúzia de pessoas, que não faziam idéia de onde ficava o Batidão, o bar que faz as vezes de centro cultural e hospeda esses saraus. Na verdade, não viam a hora de chegar em casa, fazer a janta, ver alguma coisa na TV e se desligar até a madrugada seguinte, quando retomariam o duro ritual rumo ao trabalho. Tudo sem nenhuma graça. São percursos reais, vivenciados por milhões de paulistanos em busca de um lugar ao sol, e que são ignorados cotidianamente pelos meios de comunicação. De apenas uma boca, em meio a dezenas de viajantes no ônibus, ouvi uma fugaz referência sobre 'estes tempos de crise', e pude sentir que ele apenas reproduzia o que ouvia insistentemente das bocas midiáticas. Logo mudou de assunto, pelo dar de ombros de seus interlocutores, como se respondessem 'ora, quando foi que a gente da perifa não estivemos em uma crise?'...

Mas não há dor ou ressentimento nos olhares dessa gente sofrida e esquecida. Simplesmente mergulham num cotidiano áspero, sem novidades, que começa e termina em um ônibus, ao menos três horas por dia. Não têm forças para ler, apenas para uma conversa ligeira, quando o cansaço os derrubam en route. Acho uma pena que não conheçam os saraus da Cooperifa, pois os dois ou três que de cada ônibus deste conhecem e vão até lá, estes saem verdadeiramente transformados, convertidos para as letras. Porque não irão apenas uma vez, nem duas, mas com regularidade, e o que é 'pior', começarão a ler e fazer poemas!

A resultante disso é construção de uma consciência crítica poderosa, imune a qualquer crise, ou a qualquer hipocrisia. E os poetas tecem a rede da cidadania pelas periferias, levando a palavra para quem quer partilhar as leituras, e disseminando o conhecimento pela quebrada. É tão belo quanto difícil, mas aí está o verdadeiro caminho (ôpa!) trilhado por cada um, em comunhão com a coletividade!


10 dezembro 2008

Como não fazer jornalismo


O casal sorridente anuncia, dentre outras notícias, o crescimento trimestral recorde da economia, mas (ultimamente tem sempre um mas...) declara na sequência que a crise, bendita crise, amada crise, colocará a perder os ganhos conquistados...

O casal sorridente (há tantos motivos para estarem sorridentes...) comenta a crise... ou melhor, o crescimento do 3. semestre em todos os setores produtivos, acrescentando que isso faz parte do passado e, portanto, deixa entrever que não adiantou nada.

Entra o repórter, que com sua mobilidade, bom texto e edição eficiente, confirma (corroborado por entrevistas) que a realidade deste e dos trimestres vindouros serão bem diferentes (mergulhados em crise, ora bolas!)...

O homem do casal retoma o noticiário e diz que a reunião do banco central de hoje será importante, deixando entrever que será de bom tom que o governo abaixe os juros, não para acabar com a crise, mas para... para...

A notícia sobre o crescimento abalroado pela crise, bendita crise, querida crise, se encerra, deixando a impressão de que as coisas boas são agora ruins, e continuarão ruins (até as próximas eleições presidenciais...).

O sorriso perverso do casal prossegue...


07 dezembro 2008

Expulsos do paraíso


Eles estão por toda parte, como os pioneiros de uma invasão prometida. Perambulam sem direção definida, ou mofam ocupando os cantos da avenida, nem sempre silenciosos. Quando falam, dão voz à alucinação do momento, doce companheira de um infortúnio sem fim. Assim, é possível vê-los declamando, blasfemando, ou apenas em meio a um solilóquio libertador. Quando cessam, retomam o olhar sem porto, compenetrados no silêncio inescrutável.

A espacialidade da invasão é o centro financeiro mais importante deste país, a avenida Paulista. Lugar em que se realizam as mais importantes negociações, onde circulam milhares de executivos e empresários bem-sucedidos, onde as marcas do sucesso se apresentam na imponência dos edifícios, na pujança dos automóveis importados, na disseminação de produtos globais. Este, o mundo invisível dos fluxos financeiros que decidem o equilíbrio econômico de uma nação, e porque não dizer, também o desequilíbrio de milhões de cidadãos, que aos poucos mergulham na invisibilidade social.


Não se trata de uma manifestação anunciada; por falta de onde caírem mortos, esses invasores surgem para a última cartada, tentando se amparar nas migalhas onde há intensa circulação de capital. Não interpelam aos transeuntes porque perderam a iniciativa do diálogo, ou porque intuitivamente saibam que o mundo os perdeu. Sair do recanto concedido para abordar as pessoas sempre apressadas lhes parece menos atraente do que prosseguir no ritual de lançar palavras ao vento. Nada do mundo ao redor lhes parece ao alcance, não há como se converter ao ritmo incontrolável, o que os convence de que estão de fato perdidos para o mundo.


Alguém poderia dizer que, como humanos, estão sendo expulsos pela segunda vez do paraíso. Eu diria que não foram expulsos, mas que optaram por sair dessa ilusão de um mundo de oportunidades. Um mundo cada vez mais exclusivo e descartável não pode, definitivamente, arrogar-se como um paraíso a ser almejado.


04 dezembro 2008

Sobre o despudor



Domingo passado, no horário nobre (?!), em um programa da C5N (Argentina) conduzido por Muriel Balbi, acompanhei três especialistas argentinos em relações internacionais comentarem acerca da exuberância da economia brasileira, da sua bem conduzida política exterior na América do Sul e no final, uma sóbria comparação entre os números da economia brasileira e argentina (renda per capita, reservas em dólares, crescimento econômico, valores exportados etc), descrevendo a robustez dos indicadores do estado brasileiro. Muita isenção e bom senso (não gosto desta expressão, mas, vá lá...) nas intervenções dos analistas, que agora lamento não ter anotado os nomes. 

De todo modo, duas coisas me chamaram a atenção: um, a qualidade das análises feitas, fartamente ilustradas e apresentadas ao melhor estilo do jornalismo crítico; e dois, nunca presenciei semelhante exposição por parte de nossos colonistas (ainda há os desejosos pelo colonialismo!...), ao longo do governo Lula.

É doloroso ter de admitir, mas as melhores informações que pude obter a respeito da economia e da política externa deste governo, as tive a partir de um programa estrangeiro!... Isso confirma minha profunda desconfiança acerca do discurso ideológico que compromete o jornalismo produzido pelos grandes veículos de comunicação deste país, ressalvando umas poucas honrosas exceções. Costumo dizer aos meus alunos que, houvesse esse espírito de camaradagem na deformação da verdade, e não teria sido aplicada a censura no período militar.

Insisto para que construam o espírito crítico a partir da leitura dos mais diversos veículos informativos, principalmente do exterior, pois só assim para escapar da armadilha silenciosa por aqui montada, a respeito da omissão/deformação dos fatos. Degrada-se com isso a função do jornalismo, que desde sempre se norteou pelo esclarecimento e (por que não?!) formação do indivíduo. De modo corporativo, especializa-se em divulgar rebotalhos de notícias, no mais das vezes tendenciosas, com a preocupação essencial de ampliar audiência e negócios.

Esta é uma oportunidade propícia para dizer que, como cidadão (e não apenas consumidor), sinto-me no dever de questionar essa pasteurização da informação, que avança sem comprometimento com a ética. Faço a minha parte, não compro jornais ou revistas, nem acompanho a programas televisivos ou sites da internet que comunguem com esse tipo de vilania informativa.



02 dezembro 2008

Juan Gelman




Jugos del cielo mojan la madrugada de la ciudad violenta. 
Ella respira por nosotros.
Somos los que encendimos el amor para que dure,

para que sobreviva a toda soledad.
Hemos quemado el miedo, hemos mirado frente a frente al dolor
antes de merecer esta esperanza.
Hemos abierto las ventanas para darle mil rostros


Madrugada, in Velorio del solo