1. Introdução
Em março de 2017 a Fundação Perseu Abramo divulgou a pesquisa Percepções
e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo[1], que teve como principal objetivo
compreender “os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário
social nas periferias da cidade de São Paulo”. Para tanto, partiu-se de uma
hipótese inicial que abordava um primeiro momento, as novas dinâmicas
socioeconômicas criadas nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016),
baseadas na ampliação dos mercados de trabalho e de consumo, bem como à
distribuição de renda e mobilidade social, e um segundo momento, decorrente da
retração econômica em decorrência da crise do capitalismo mundial, onde as
classes populares passaram “reagir informada por horizontes menos
associativistas e comunitaristas e mais por diretrizes marcadas pelo
individualismo e pela lógica da competição”.
A questão levantada em diversos debates nas mídias e em encontros das
esquerdas foi se, com a expansão dos empregos formais, mobilidade social e mais
consumo, as classes populares de fato “passaram a se identificar mais com a
ideologia liberal que sobrevaloriza o mercado”. Se sim, como se desenvolveu
esse processo? O certo é que as mídias tradicionais e as mais à direita no
espectro político passaram a considerar o fracasso das políticas do PT no
governo, como o caso do famigerado MBL (Movimento Brasil Livre), de orientação
liberal, que em suas páginas na internet decretava que “Pesquisa do PT mostra
que periferia é de direita”. Os debates mais à esquerda fizeram leituras que no
geral rechaçaram essa possível compreensão de um liberalismo ideológico em
gestação nas classes populares. Conforme Ivana Bentes[2], “o que estamos vendo (ao longo da
pesquisa) é o declínio, como modelo subjetivo, da figura do ‘trabalhador’ do
chão de fábrica, uma esquerda fordista que precisa se reinventar
(...)”. As repercussões, vindas dos setores intelectuais e da academia,
assumiram uma postura muitas vezes “hierárquica”, ao conceber as periferias
como um objeto de observação antropológico, desconsiderando a mobilização de seus
anseios, sua Weltanschaaung, a visão de mundo muitas vezes
esclarecedora. Bentes, embora se coloque frontalmente contra a interpretação de
uma periferia liberal em razão dos últimos pleitos eleitorais – eleições gerais
em 2014 e eleições municipais em 2016 – não se furtou em dizer que “o
pragmatismo popular brasileiro não cabe nas polarizações e está em disputa”,
deixando no ar uma delicada sugestão de que a escolha popular não transcorre
necessariamente em função de seus interesses, ainda que fragmentados, individualizados,
mas a partir da disputa das “estruturas superiores”, entre os agentes e as
instâncias políticas de direita e de esquerda.
Já para o sociólogo Gabriel Feltran, da UFSCar[3], a perda de votos das esquerdas nas
periferias ocorreu em decorrência do abandono das práticas políticas
desenvolvidas pelas comunidades de base ligadas à igreja católica e pelos
sindicatos, e pior, “quando (as esquerdas) se tornaram moralmente iguais aos
demais políticos tradicionais”. Na entrevista, Feltran destaca um aspecto
presente na fala de alguns entrevistados por mim, sobre a inexistência do voto
ideológico, tão em relevância nos debates intelectualizados. Segundo o
sociólogo, “é um voto que concebe o mundo a partir da proximidade, da relação
pessoal, da confiança na ética do candidato, um voto próximo e moral”, e não há
como formar interpretações morais de condenação por esse pragmatismo.
Para alguns autores, o equívoco começa ao se considerar a distribuição
de renda e a mobilidade social ocorrida nos anos Lula-Dilma como o surgimento
de uma “nova classe média”. Como afirma Marilena Chauí, os programas sociais do
PT não constituíram uma nova classe média no Brasil, mas a criação de uma nova
classe trabalhadora, e discorre sobre a questão,
Esta nova classe trabalhadora é que absorve a ideologia da classe média:
o individualismo, a competição, o sucesso a qualquer preço, o isolamento e o
consumo. Sendo assim, não é que exista uma nova classe média, mas sim uma nova
classe trabalhadora que é sugada pelos valores da classe média já estabelecida.[4]
Já tínhamos neste depoimento, três anos antes da crise institucional que
depôs Dilma Rousseff, uma percepção da assimilação de valores da classe média
pelas classes populares, ou como a autora denomina, nova classe trabalhadora. O
economista Marcio Pochman compartilha do mesmo ponto de vista, ao realizar um
extenso trabalho sobre o governo Lula, e em trabalho minucioso que avalia as
políticas econômicas e sociais que produziram expansão do emprego formal,
redução da pobreza e consequentemente da desigualdade da renda, além de
programas sociais bem-sucedidos (dentre eles, o Bolsa Família; o Luz para
Todos; Minha Casa, Minha Vida etc) consignando a retomada da mobilidade social.
Para Pochman, ainda que tenha havido mudanças no padrão de consumo e melhoria
na distribuição de renda na base piramidal da sociedade brasileira, tal
como ocorreu anteriormente nos países industrializados europeus que adotaram o
padrão fordista de desenvolvimento (1950-1973, os anos dourados do
capitalismo), não houve a “constituição de uma nova classe social, tampouco permite
que se enquadrem os novos consumidores no segmento da classe média”. (POCHMAN,
2014, p.71)
O sociólogo Jessé Souza vai mais longe em seu argumento questionador
sobre essa hipotética ascensão de uma nova classe média. Em sua análise, o fato
de um professor universitário e um trabalhador industrial qualificado auferirem
renda similar não significa que estilos de vida ou hábitos de consumo
semelhantes, e que também não garantiria um pertencimento de classe, e assim,
haveria “muitas diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida
e os trabalhadores precarizados e superexplorados que estão longe de ser
transpostas”[5]. No mesmo texto, observa um outro ponto
importante, a zona de estratificação social intermediária, que possui uma renda
entre R$ 1.000 e R$ 5.000 impediria análises mais criteriosas, “as denominações
“classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que transmitem a impressão
de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um país em que os remediados
são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual”, e
conclui dizendo que essa sub-gente[6] ou na verdade, mais apropriadamente,
batalhadores da periferia, como camada social é uma incógnita politicamente, e
em sua luta pela autoconfiança, pelo autorrespeito, pela autoconfiança, “não
são como desejam os arrivistas de direita ou os bovaristas de esquerda”.
O
importante dessa explanação é a evidência de que as camadas urbanas mais pobres
da população, concentradas às margens dos bairros com mais infraestrutura de
serviços, não incorporaram de maneira completa as conquistas sociais e os
valores pertencentes às classes médias, como o tempo livre para os filhos como
forma efetiva de acesso escolar ao conhecimento (capital cultural), propiciando
com isso além da formação gradual do espírito crítico, as oportunidades em um
mercado de trabalho competitivo. Tais tipos de herança imaterial da classe
média não são considerados em uma sociedade cada vez mais impregnada por
valores estatísticos, por uma visão economicista reproduzida principalmente
pelos meios de comunicação hegemônicos, e assim “o que vai ser chamado de
“mérito individual” mais tarde e legitimar todo tipo de privilégio não é um
milagre que ‘cai do céu’, mas é produzido por heranças afetivas de ‘culturas de
classe’ distintas, passadas de pais para filhos” (SOUZA, 2009, p.23). As
classes média e alta exploram o corpo dos subcidadãos da ‘ralé’ a baixo preço,
e com isso acumulam o tempo necessário para ser reinvestido em trabalho
produtivo e reconhecido. Como contrapartida, o estigma do fracasso permanece
atado à ralé, como signo de sua hipotética incompetência atávica, compreendida
muitas vezes como preguiça ou falta de vontade de vencer, em um mercado cada
vez mais competitivo.