17 julho 2017

Política nas Periferias



Publico abaixo a parte inicial de meu mais recente estudo, com base na pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre a percepção política nas periferias paulistanas, publicada no início de 2017. Tomo como referencial para a pesquisa autores que me são caros sobre os aspectos socio-políticos e econômicos do Brasil, tais como Darcy Ribeiro, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Milton Santos, dentre outros. 

Também me utilizo das análises de alguns dos inúmeros artigos que vieram a lume em decorrência da pesquisa da FPA. A metodologia se complementa com a etnografia realizada junto a moradores dos bairros periféricos que trabalham ou circulam na região da avenida Paulista, e que contribuíram de modo decisivo na reflexão teórica. 

A produção deste artigo tem como objetivo sua apresentação e discussão nas XII Jornadas de Sociologia, que se realizarão na Faculdade de Ciências Sociais da UBA, Buenos Aires, entre 22 e 25 de agosto deste ano. O título: "Os descompassos de uma modernidade desigual:  a política nas periferias de São Paulo"

1. Introdução

Em março de 2017 a Fundação Perseu Abramo divulgou a pesquisa Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo[1], que teve como principal objetivo compreender “os elementos que têm formado a visão de mundo e o imaginário social nas periferias da cidade de São Paulo”. Para tanto, partiu-se de uma hipótese inicial que abordava um primeiro momento, as novas dinâmicas socioeconômicas criadas nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), baseadas na ampliação dos mercados de trabalho e de consumo, bem como à distribuição de renda e mobilidade social, e um segundo momento, decorrente da retração econômica em decorrência da crise do capitalismo mundial, onde as classes populares passaram “reagir informada por horizontes menos associativistas e comunitaristas e mais por diretrizes marcadas pelo individualismo e pela lógica da competição”.

A questão levantada em diversos debates nas mídias e em encontros das esquerdas foi se, com a expansão dos empregos formais, mobilidade social e mais consumo, as classes populares de fato “passaram a se identificar mais com a ideologia liberal que sobrevaloriza o mercado”. Se sim, como se desenvolveu esse processo? O certo é que as mídias tradicionais e as mais à direita no espectro político passaram a considerar o fracasso das políticas do PT no governo, como o caso do famigerado MBL (Movimento Brasil Livre), de orientação liberal, que em suas páginas na internet decretava que “Pesquisa do PT mostra que periferia é de direita”. Os debates mais à esquerda fizeram leituras que no geral rechaçaram essa possível compreensão de um liberalismo ideológico em gestação nas classes populares. Conforme Ivana Bentes[2], “o que estamos vendo (ao longo da pesquisa) é o declínio, como modelo subjetivo, da figura do ‘trabalhador’ do chão de fábrica, uma esquerda fordista que precisa se reinventar (...)”. As repercussões, vindas dos setores intelectuais e da academia, assumiram uma postura muitas vezes “hierárquica”, ao conceber as periferias como um objeto de observação antropológico, desconsiderando a mobilização de seus anseios, sua Weltanschaaung, a visão de mundo muitas vezes esclarecedora. Bentes, embora se coloque frontalmente contra a interpretação de uma periferia liberal em razão dos últimos pleitos eleitorais – eleições gerais em 2014 e eleições municipais em 2016 – não se furtou em dizer que “o pragmatismo popular brasileiro não cabe nas polarizações e está em disputa”, deixando no ar uma delicada sugestão de que a escolha popular não transcorre necessariamente em função de seus interesses, ainda que fragmentados, individualizados, mas a partir da disputa das “estruturas superiores”, entre os agentes e as instâncias políticas de direita e de esquerda.

Já para o sociólogo Gabriel Feltran, da UFSCar[3], a perda de votos das esquerdas nas periferias ocorreu em decorrência do abandono das práticas políticas desenvolvidas pelas comunidades de base ligadas à igreja católica e pelos sindicatos, e pior, “quando (as esquerdas) se tornaram moralmente iguais aos demais políticos tradicionais”. Na entrevista, Feltran destaca um aspecto presente na fala de alguns entrevistados por mim, sobre a inexistência do voto ideológico, tão em relevância nos debates intelectualizados. Segundo o sociólogo, “é um voto que concebe o mundo a partir da proximidade, da relação pessoal, da confiança na ética do candidato, um voto próximo e moral”, e não há como formar interpretações morais de condenação por esse pragmatismo.

Para alguns autores, o equívoco começa ao se considerar a distribuição de renda e a mobilidade social ocorrida nos anos Lula-Dilma como o surgimento de uma “nova classe média”. Como afirma Marilena Chauí, os programas sociais do PT não constituíram uma nova classe média no Brasil, mas a criação de uma nova classe trabalhadora, e discorre sobre a questão,

Esta nova classe trabalhadora é que absorve a ideologia da classe média: o individualismo, a competição, o sucesso a qualquer preço, o isolamento e o consumo. Sendo assim, não é que exista uma nova classe média, mas sim uma nova classe trabalhadora que é sugada pelos valores da classe média já estabelecida.[4]

 Já tínhamos neste depoimento, três anos antes da crise institucional que depôs Dilma Rousseff, uma percepção da assimilação de valores da classe média pelas classes populares, ou como a autora denomina, nova classe trabalhadora. O economista Marcio Pochman compartilha do mesmo ponto de vista, ao realizar um extenso trabalho sobre o governo Lula, e em trabalho minucioso que avalia as políticas econômicas e sociais que produziram expansão do emprego formal, redução da pobreza e consequentemente da desigualdade da renda, além de programas sociais bem-sucedidos (dentre eles, o Bolsa Família; o Luz para Todos; Minha Casa, Minha Vida etc) consignando a retomada da mobilidade social. Para Pochman, ainda que tenha havido mudanças no padrão de consumo e melhoria na distribuição de renda na base piramidal da sociedade brasileira, tal como ocorreu anteriormente nos países industrializados europeus que adotaram o padrão fordista de desenvolvimento (1950-1973, os anos dourados do capitalismo), não houve a “constituição de uma nova classe social, tampouco permite que se enquadrem os novos consumidores no segmento da classe média”. (POCHMAN, 2014, p.71)

O sociólogo Jessé Souza vai mais longe em seu argumento questionador sobre essa hipotética ascensão de uma nova classe média. Em sua análise, o fato de um professor universitário e um trabalhador industrial qualificado auferirem renda similar não significa que estilos de vida ou hábitos de consumo semelhantes, e que também não garantiria um pertencimento de classe, e assim, haveria “muitas diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida e os trabalhadores precarizados e superexplorados que estão longe de ser transpostas”[5]. No mesmo texto, observa um outro ponto importante, a zona de estratificação social intermediária, que possui uma renda entre R$ 1.000 e R$ 5.000 impediria análises mais criteriosas, “as denominações “classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um país em que os remediados são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual”, e conclui dizendo que essa sub-gente[6] ou na verdade, mais apropriadamente, batalhadores da periferia, como camada social é uma incógnita politicamente, e em sua luta pela autoconfiança, pelo autorrespeito, pela autoconfiança, “não são como desejam os arrivistas de direita ou os bovaristas de esquerda”.

O importante dessa explanação é a evidência de que as camadas urbanas mais pobres da população, concentradas às margens dos bairros com mais infraestrutura de serviços, não incorporaram de maneira completa as conquistas sociais e os valores pertencentes às classes médias, como o tempo livre para os filhos como forma efetiva de acesso escolar ao conhecimento (capital cultural), propiciando com isso além da formação gradual do espírito crítico, as oportunidades em um mercado de trabalho competitivo. Tais tipos de herança imaterial da classe média não são considerados em uma sociedade cada vez mais impregnada por valores estatísticos, por uma visão economicista reproduzida principalmente pelos meios de comunicação hegemônicos, e assim “o que vai ser chamado de “mérito individual” mais tarde e legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que ‘cai do céu’, mas é produzido por heranças afetivas de ‘culturas de classe’ distintas, passadas de pais para filhos” (SOUZA, 2009, p.23). As classes média e alta exploram o corpo dos subcidadãos da ‘ralé’ a baixo preço, e com isso acumulam o tempo necessário para ser reinvestido em trabalho produtivo e reconhecido. Como contrapartida, o estigma do fracasso permanece atado à ralé, como signo de sua hipotética incompetência atávica, compreendida muitas vezes como preguiça ou falta de vontade de vencer, em um mercado cada vez mais competitivo.  

 



[2] Artigo "A Periferia não é binária", disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/a-periferia-nao-binaria/, acesso 01.07.2017.
[5] Artigo "O Brazil não conhece o Brasil", disponível em: https://fpabramo.org.br/2017/04/20/o-brazil-nao-conhece-o-brasil/, acesso 01.07.2017.
[6] Em seu livro “Ralé Brasileira – quem é e como vive”, Jessé Souza define essa camada como “uma classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural ou econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação”. (SOUZA, 2009, p.21)



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