20 dezembro 2009

Um fato inesperado


Apareceram furtivamente e disseram que me levariam detido. Foram lacônicos, A partir de agora você está à disposição da justiça. Cheguei a ensaiar uma argumentação em minha defesa, mas sucumbi diante da apresentação do meu crime: não consumia nada havia dois dias, o que era contra a lei.
O homem mais baixo até que procurou ser polido em suas poucas palavras, Não se aflija, com um bom advogado e alguma sorte você se safa dessa. Franziu o cenho e acrescentou, Bem, você sabe, vai depender do andamento das coisas... deixando vago o que queria dizer. O mais alto manteve sempre um silêncio intrigante, dando às vezes a nítida impressão de que saboreava a situação. Lembro que vestiam ternos negros e mesmo dentro de casa, prosseguiam portando seus chapéus e os óculos escuros. Apresentaram-se com o mesmo nome, João, o que produzia uma pequena artimanha, pois não havendo como identificá-los, evitavam convocações para o tribunal. Não demonstravam pressa: o grande sentou-se numa poltrona, após ir à cozinha e trazer um copo de água, abriu sua maleta e retirou um computador portátil, onde passou a preencher formulários virtuais, completando informes sobre minha apreensão. Eu quis saber se teria uma cópia daqueles registros, ao que ele apenas se limitou a erguer a mão esquerda, como a dizer Quieto! Começou com as perguntas, o número de cartão de crédito, nomes das lojas de eletrodomésticos que eu freqüentara nos últimos dois meses, o preço de um Atza 366 Ford, modelo convencional, se eu costumava comprar pipocas antes de uma sessão de cinema, quantos tipos de comida para cães eu conhecia... O mais baixo, ao meu lado, acompanhava o interrogatório com um ar enfastiado, mastigando amendoins. `A minha proposta para que se servisse de uma cerveja, disse-me polidamente que não bebia em serviço. Perguntei então se eu poderia me servir de uma latinha, ao que me respondeu, Talvez não seja apropriado, Joseph. Eu sabia que a lei era severa com quem não adquirisse bens de consumo durante um certo tempo, mas dois dias!? Tentei argumentar sobre minha situação financeira e outra vez o grandão levantou a mão, desta vez demonstrando o semblante menos zangado, e prosseguiu a digitação com um único dedo, o indicador da mão direita. Foi um trabalho que levou um quarto de hora. O pequeno levantou-se e me perguntou onde havia uma maleta, queria adiantar as coisas separando umas roupas e acessórios de higiene pessoal. Ao cabo das perguntas, permitiram-me ajustar os terminais domésticos, programando-os para as tarefas diárias: limpeza dos carpetes, degelo do congelador, alimentação dos cães. Nesse meio tempo, o pequeno gravou uma mensagem oficial sobre minha detenção na secretária eletrônica. Quando pareceu tudo pronto, ele amenizou seu papel de policial, dando-me o direito para dois contatos eletrônicos. Pensei um instante e liguei para Helena, dizendo-lhe que me ausentaria por uns tempos. Como não tinha advogado e mais ninguém interessante para falar, abri mão do segundo contato.
Passamos a esperar pelo grandão. Entramos num momento morno, de pouca movimentação e nenhum desejo especial. Fiz um derradeiro esforço assertivo, Rapazes, estou desempregado há dois meses e..., ao que o grandão cortou-me outra vez levantando a mão, Não existe jurisprudência em seu caso!, acrescentou e fechou o seu notebook. Tentei entender essa questão de jurisprudência, enquanto o pequeno deixava escapar um sorrisinho sinistro. Então vamos!, pediu-me o grande, sem interesse em prosseguir no debate. Colocaram-me a argola platinada no pescoço, com a qual me tornei definitivamente um prisioneiro e dirigimo-nos à viatura. Já na calçada, manifestei o desejo de levar o mp3. Esqueça Joseph, acabaram-se as suas prerrogativas!, esgrimiu ainda uma vez o maior deles, em seu saber jurídico dispensável.
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17 dezembro 2009

Mal o vejo


De onde estou, não consigo desvelar as faces dos passantes. Vejo-os caminhando, ora céleres, ora em grupos, vestidos de capotes nos dias frios ou munidos de guarda-chuvas nos dias chuvosos. Mas nenhuma referência de suas expressões, se estão felizes ou desanimados, indiferentes ou tensos. Em minha situação isso ajudaria muito a passar as horas intermináveis, que apenas se diluem para que outras as substituam. E assim aguardo os acontecimentos, voltado para o movimento externo, uma vez que há muito o movimento interno se resume às visitas do enfermeiro que me acompanha, uma logo pela manhã, quando me traz o desjejum e troca o recipiente cujo conteúdo me adentra pelas veias, e à tardezinha, quando me traz o jantar e me ajuda a deixar a janela para recolher-me ao leito. E é isso. Ultimamente, nenhuma palavra. Após a refeição, passo a compartilhar da brancura absoluta de meu quarto e de um ou outro ruído abafado produzido nas dependências do hospital. Por isso, minha ansiedade pela chegada da manhã, onde posso retomar o meu posto na janela e acompanhar o deslizar de pessoas, seis andares abaixo. Vendo-as, também posso imaginar suas vidas. Poderia me interessar pelo entorno, a paisagem bucólica do parque, sua paz e seus meandros verdejantes, seus pequenos animais silvestres, mas nesta reta final só me interessam os humanos. Talvez porque estejam numa distância segura e não façam ideia da minha existência, o importante é que os observo e os imagino. Poderia dizer que me divirto com isso, mas não é verdade. Sobretudo depois que conheci o senhor K., morador de um pequeno conjunto de sobrados, bem à direita do parque. Sei quando sai de casa, quando regressa, que é friorento e que nos fins de semana quentes gosta de passear com seu cãozinho beagle. Imagino que seja um homem amargurado, mas sereno diante das dificuldades, o que me faz pensar que seja a única pessoa com quem gostaria de trocar umas palavras. Hoje pela manhã, acompanhei seus passos regulares até entrada do parque, quando subitamente se deteve. Em circunstâncias normais seguiria pela alameda dos pinheiros, porém ficou ali parado, olhando para o chão, com as mãos nos bolsos. Um gorro cinzento o protegia da garoa fina, e nem o risco de se molhar o afastou daquele ponto. Permaneceu por um largo tempo dando pequenos volteios, desolado em sua indecisão.


16 dezembro 2009

Gostava tanto de você


Lembro-me do almoço de final de ano de 197... todos reunidos como nunca antes, minha tenra idade me permitia acompanhar, deslumbrado, a agilidade verbal de meus tios, felizes, a contagiar toda a casa. Meus primos mais velhos também participavam da animação, e eu guardo essas reminiscências fugidias de uma alegria que era gostosa de se participar...

Um dos primos, com seus vinte anos, se aproximou e perguntou como estava na escola. Quando lhe respondi, encabulado como sempre ficava diante das pessoas mais velhas, ele sorriu, um sorriso aberto e jovial, e me disse 'Continue, você tem todo o futuro pela frente'... e retornou para a conversa dos adultos...

Dois anos mais tarde, a reunião na casa com os mesmos atores se deu por uma circunstância trágica: meu primo morrera de um fulminante ataque do coração, no dia das mães...

Lembro-me de meus tios - seus pais - em uma apatia inconsolável, do lado de fora da casa. Lembro-me do movimento sem esperanças que se derramava no interior da sala, e mais tarde, com tudo terminado, da inscrição na lápide, um trecho da letra de Gostava tanto de você, cantada por Tim Maia...

Muitos, naquela casa, só teriam um passado pela frente...



15 dezembro 2009

Desventura


Faz muitos anos, conheci um homem que viveu um átimo de felicidade, perdeu-se nos descaminhos que a vida proporciona e definhou no opróbrio absoluto. Sua história não difere das histórias dos homens comuns, mas o fato de eu ter acompanhado a parte final de sua existência a transforma em uma tragédia cujos reflexos alcançam-me de um modo especial. Como posso contá-la sem omitir as estesias da juventude, as fragilidades delirantes da alma, as sombras da ausência?
Tudo começou em um lugar a muitos quilômetros daqui, longínquo o suficiente para o tempo correr sem despertar transformações e pequeno o necessário para não difundir a cobiça. As jornadas semanais de labuta apenas significavam a separação de um fim de semana de outro, quando os corações se engalfinhavam e a razão se perdia nas emoções dos footings diante da igreja. Os casais formados gostavam de se encontrar e de bebericar um martini no Ibrahim e, em dois sábados por mês, dançar nos bailes do clube ao som da banda do Gorni. Os jovens da cidadezinha viviam em função desses prazeres. E foi nesse restrito circuito de encontros que conheceu o amor da sua vida e para ela se dedicou de corpo e alma. Paixão dilacerante, que lhe custou os pensamentos de cada jornada e o sono das noites, e mais tarde lhe custaria a própria vida.
Mas o seu amor, o seu amor foi maior do que poderia ser. Jamais soube declará-lo como o sentia, jamais soube vivenciá-lo como o contemplava. Se se comportou de modo injusto ou incoerente, ela por certo o alertou. Seja como for, o rumor dos anos foi mais duro do que o esperado e os amigos se dispersaram, o emprego tornou-se obsoleto, a cidade permaneceu pequena demais para um convívio sem escape, desgastado, um huis-clos mortal. Agora posso afirmar, ele me marcou como um bonachão mimado, confiante demais em seus sonhos e atuante de menos na realidade. Talvez acreditasse que o tempo do mundo não se esgotasse, ou as pessoas ao seu redor não se cansassem da mesmice... De sua mulher, guardo o charme elegante e discreto, mas sobretudo a fina perspicácia, sintonizada com as asperezas do cotidiano. A mudança para a metrópole não trouxe a realização de dias melhores, a mulher partiu com os filhos e a ele restou a amargura. Lembro-me de uma época em que ia buscá-lo para jogar cartas com meu pai e os amigos em comum, em encontros marcados por boas histórias, mas seu entusiasmo já se mostrava declinante e seu olhar, bem, isso era o que mais impressionava, não recendia vida, ao contrário, fechava-se em uma opacidade voltada para o infinito do íntimo, ainda que forjasse uma distraída expressão, adornada de ora em vez por um sorriso mortiço, ou por uma lágrima fugidia...
Passaram-se os anos e numa bela manhã de domingo, meu pai recebeu uma chamada. Convidou-me a acompanhá-lo ao hospital. Na verdade, constatamos que não se tratava exatamente de um hospital, mas de um sanatório decadente, e lá o encontramos em um quarto que mais parecia uma despensa, que exalava o olor pútrido da morte. Estava ali, sem fala, sem dentes, sem forças para se expressar, os cabelos desgrenhados, derribado em um catre qualquer. No tempo em que consegui observá-lo, procurei entender como era possível para um homem se esfacelar em um punhado de anos, envolto na redoma de seus pensamentos. Os demais pacientes perambulavam sem um caminho traçado, vestidos com camisolas alvas, como almas paridas e abandonadas. Ao se aperceber da presença de meu pai, uma luz inundou-lhe o semblante e o esforço de seus gestos apenas expuseram o arremedo dos traços humanos, flamejantes tal qual a chama de um candeeiro em meio à borrasca. Quis se expressar, e emitiu um som gutural longo, inapreensível, para em seguida tornar-se um candeeiro sem vida.
Alijado de suas próprias decisões, restava-lhe a memória de um tempo em que acreditou ser feliz, como também as lembranças dos descaminhos indesejados até prostrar-se naquele grabato repulsivo. No fundo, creio que jamais conseguiu avaliar seu ostracismo terminal, mas foi visível que na presença de meu pai, recuperou por um átimo o discernimento dos fatos, e quem sabe vislumbrou a fagulha de uma nova esperança. Esforcei-me por imaginar o fog dos cigarros em uma noite de drinks no Ibrahim, as voltas em torno da igreja, as belas mulheres de saias rodadas, os casais de mãos dadas, entre sorrisos e expectativas... Imaginei o salão ao som das salsas tocadas pelo Gorni, as danças coladinhas e os beijos roubados nas penumbras mais afastadas, cenário que emanava o aroma da imortalidade.
De volta ao presente, não restou ao meu bom pai senão segurar as mãos débeis do amigo. Sobreviveria uma semana, sepultando consigo um amor imenso, em sua incompletude definitiva.
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11 dezembro 2009

Pueyrredón


Já havia me esquecido o quão distante localizava-se a Pueyrredón. Claro, isso depende do ponto espacial em que se toma a questão. Falo em relação à praça San Martin, ou da praça de Mayo, ou mesmo do Congresso. No final dos anos oitenta, na companhia dos meus amigos Klaus, Sérgio e Fred, percorríamos sem pestanejar qualquer distância até o San Agustín, nosso hotel na Pueyrredon, após horas desbravando a centralidade portenha. Nem metrô, nem táxi, era a pé mesmo, quinze, vinte quadras, de um lado para o outro, de um café a outro, de uma livraria a outra. À noite tirávamos para descansar, tomando una cerveza em algum lugar agradável, falando das peripécias, rindo de nada, antes de voltarmos ao San Agustín. Na portaria, um senhor bastante avançado na idade aguardava seus hóspedes, com um semblante de disfarçada desconfiança. Gusmán era seu nome, e logo o apelidamos de El viejo, el viejo Gusmán. Com seus movimentos pausados, dava acolhida a forasteiros extemporâneos como nós, sem abandonar o balcão centenário. A entrada do San Agustín era linda, bem preservada, a escadaria que fechava numa portaria ampla e acarpetada, tendo ao fundo um ascensor com capacidade para três ou quatro, de porta sanfonada, cujo fosso em estrutura metálica permitia acompanhar a passagem dos andares. O hotel tinha sido uma descoberta dos alemães Klaus e Fred, em algum manual de viagem alternativo que eles traziam, e caiu ao gosto dos quatro principalmente pela pechincha da diária e pela simpatia do pedaço. O importante era que estávamos num rincão livre de turistas, relativamente sossegado, e se necessário, a apenas três quadras do metrô.

Dois anos mais tarde regressei à cidade e optei novamente por ficar no San Agustín. Lá estava el viejo Gusmán, mais arquejado, com o semblante visivelmente mais enfastiado, o que não impediu que abrisse um belo sorriso de boas vindas. Guardara uma empatia comigo e abriu-se a contar histórias sobre seu passado, que se misturava com o da cidade, a vida noturna, histórias de Gardel e de Perón, da seleção argentina de Rattin, na Copa de 1966 e das lutas de Oscar Bonavena e Carlos Monzón no Luna Park, anos mais tarde. A surpresa foi ele me oferecer o mesmo quarto da estada anterior. Sua jornada de trabalho tinha mudado para o dia, por causa da saúde, de modo que eu fechava as noites no soturno Café La Aurora, com seu ar vetusto e marginal, de iluminação débil e saborosas medialunas. O atendimento era aceitável e a tranquilidade também, de modo que permanecia ali, tomando meu café cortado e escrevendo sobre as caminhadas diárias, acariciado pelas sobras do vento que chegava mansamente do Prata. A região já apresentava certa decadência, sobretudo no quarteirão além da praça Miserere, cujos prédios estavam mais para cenários de terror, escuros, malcuidados, ocupados por migrantes pobres pela absoluta falta de interesse do mercado imobiliário. Foi meu último contato com a Pueyrredón e com o San Agustín, até dias atrás.

Como disse, havia me esquecido o quão distante estava a Pueyrredón e constataria o quão desinteressante tinha ficado. Cruzando a Callao, foram dez quadras percorridas com ansiedade crescente, sob um dia chuvoso, sem graça. Eu tinha perdido todas as referências da região, de modo que andava por um caminho que parecia absolutamente desconhecido. Uma a uma as travessas se sucediam, Ayacucho... Junin... Larrea, por fim Pueyrredón, cruzamento com a Corrientes e fiz o contorno esperado para a esquerda, mais quatro quadras até a praça Miserere. Nada que estimulasse um passeio de recordação, em uma tarde de jornada pesada para tantos mochileiros. A Pueyrredón transformara-se no epicentro de uma região de compras populares, gente como formigas alucinadas, sedentas pelo açúcar, que circulavam pelas calçadas com pressa incomum, carregando sacolas cheias, em carrinhos, nas mãos, a escapar felizes com o butim. Tinham pressa porque desejavam chegar às villas antes do anoitecer. Eu me esquivava, tentando me concentrar no espaço ao redor, bastante deteriorado, e o que é pior, ruidoso como nunca. Como um náufrago, tentava me apegar à presença do velho San Agustín, modificado, retalhado, transformado em pensão popular. O elevador estava inutilizado e o atendente com um cigarrinho no canto da boca não soube me informar de nenhum viejo Gusmán. Em frente, o lugar que me pareceu ser o do Café La Aurora estava bloqueado por tapumes, indicando futura demolição.

A poucos passos, igualmente a Miserere abarrotada, pessoas agitadas, ansiosas, mais carregadas, mais atrasadas... Por mais que não desejasse, eu atrapalhava o caudaloso frenesi: avançava, recuava, desviava de um carrinho para bloquear outro, tropeçava em um e esbarrava em outro, feito um bêbado. Dei-me conta do ruído intenso vindo do interior tapumes, das obras do metrô na praça, no passar dos coletivos, então saltei para a rua e foram os automóveis que começaram a me instigar sem trégua, empurrando-me de volta à calçada, que me regurgitava, transformando-me em incauto visitante, sem eira nem beira... Não só perdera meu reduto alternativo, como era pressionado a sair dali. A mobilidade pós-moderna se instalava e seduzia, imobilizando as pessoas em sua armadilha predileta, a ciranda mercantil com suas quinquilharias descartáveis. Tornara-se um lugar que não acolhia mais recordações, um não-lugar apropriado à circulação de bens e interesses. Avancei desacorçoado, no rumo oposto à Miserere, ao San Agustín e ao La Aurora, a mergulhar no universo de ruas desconhecidas, úmidas, que se esvaziavam progressivamente. Terminei por não me despedir da Pueyrredón, afastando-me com um longo e desventurado suspiro.


09 dezembro 2009

Evo Morales

Evo Morales


Claro que Evo Morales e o MAS, Movimiento al Socialismo, fazem bem à Bolívia e aos bolivianos! A votação espetacular obtida nas eleições de domingo teve, antes de mais nada, um caráter plebiscitário à sua gestão, e ficou evidente o apoio massivo às mudanças em curso.

Qualquer historiador medíocre pode levantar a folha corrida da querida e sofrida Bolívia no século XX e perceber o quanto os representantes de uma elite branca descomprometida com os desígnios do país fizeram o país e o povo comum sangrar até quase a inânia. Morales é um desses sopros alentadores, que trazem esperança à proporção que avança em seu projeto social, um projeto que elimina a ambição pessoal e possibilita a distribuição social.

O grande problema é esse maldito conforto paradigmático disseminado pelos veículos da grande mídia, que nos faz crer que o capitalismo é o caminho, a verdade e a vida, e que Evo é sinônimo de Belzebu, atrelado a ideais ultrapassados. Como se não bastasse, há o ranço preconceituoso que atravessa o discurso, algo do tipo Como um índio se atreve a meter-se conosco? Nesse momento, como nunca antes, essa linhagem midiática sai a campo para defender abertamente seus interesses de classe, a semear o brado de uma contrarrevolução ultrapassada...

Apenas digo que o projeto de governo desse 'índio' tem modificado, como ninguém antes, o perfil da Bolívia: eleva um país ridicularizado por golpes seguidos e pela condição miserável a um patamar de respeitabilidade como nunca antes visto. Será o país de maior crescimento na América do Sul neste ano, mais de 3%, crescimento sustentável, distribuído, sem se vender aos ditames de uma política neoliberal punitiva à população e ao meio ambiente.

Evo Morales faz bem à Bolívia, assim como Álvaro Garcia Linera, assim como o MAS, assim como as mudanças estruturais realizadas no âmbito sócio-político-econômico. E sejamos claros (com um olhar para além do conforto paradigmático neoliberal) assim como o governo Hugo Rafael Chávez Frias faz bem à Venezuela. E assim como o governo Rafael Correa faz bem ao Equador e como o governo Cristina Kirchner faz muito bem à Argentina... 

Porque essas equipes de governo relevam a dignidade na ação política e na ação social, em um mundo permeado pelo tanto faz hipócrita, repercutido, à náusea, por quem não tem compromisso com nada e defende (sem mais saber o porquê) a ordem falida de um capitalismo devorador, que faz prevalecer interesses corporativos em detrimento dos interesses maiores da coletividade.

A América do Sul é o lugar mais estimulante do mundo, foi o que disse Noam Chomsky, recentemente. E estou com ele, a ficar com qualquer dos analistas midiáticos que se esforçam para agradar o patrão!... E há que se dizer, porque assim expressa a maioria dos brasileiros e do mundo, o governo Lula faz bem ao Brasil. Quem definitivamente não faz bem ao Brasil - e já há um bom tempo - é o 'nosso' oligopólio midiático, elitista por natureza e golpista por opção, que aos poucos definha em seus envelhecidos despropósitos...


05 dezembro 2009

Um lugar distante




Uma reação murcha, ausente de gestos, demonstrou-me de modo cabal que eu não passava de um forasteiro naquelas paragens. O homem prosseguiu em sua indiferença, abanando-se com o jornal mirrado, sentado bem na entrada de sua barbearia. Antes de pensar em solicitar seus serviços postei-me diante de si, imaginando que me reconheceria. Não me reconheceu e não fez questão, preferindo olhar para o movimento insipiente de pessoas na rua. Dentro, a mesma disposição de antes, as mesmas duas cadeiras de trabalho, as fotos mais recentes do time do Palmeiras, o mesmo torpor que se misturava com a poeira e a escuridão. Perguntei por seu filho, o Bulila, ele murmurou que voltaria mais tarde. Senti-me como um pistoleiro mal afamado, que acabava de regressar ao vilarejo após anos de prisão. Maldita cidade, malditos vermes insepultos, praguejei, desejoso por dar meia volta e retomar a estrada. Dei mais uma chance ao velho e indaguei-lhe onde encontraria dona Neide, minha antiga senhoria, ao que o semblante morno persistiu em sua discreta ausência.
Prossegui pela avenida, sob o sol escaldante do meio-dia. Não reconhecia os passantes e os estabelecimentos estavam modificados em suas fachadas. Não encontrei o açougue, a lanchonete, nem a oficina de contabilidade em que trabalhara. No dia em que deixei o povoado para sempre, desabava uma chuva torrencial, que transformou a única avenida em um charco intransitável. Teria sido mais fácil naquela circunstância abandoná-lo em um cavalo do que da maneira que ocorreu, em um ônibus. Reencontrava agora as ruas decentemente asfaltadas e uma discreta presença comercial indicava que o lugarejo se modificara bastante, tornando-se um sítio menos desafortunado.
Caminhei mais umas quadras para cima, onde acreditava que se localizava a edícula em que, por longos dois anos, eu habitara. Na ocasião, era talvez o único quarto disponível para um estranho se instalar, não havia pensões e o único hotelzinho não garantia a privacidade de seus hóspedes. Nada, subi e desci o quarteirão seguidamente, sem identificar a casa. As mudanças haviam ocorrido de modo mais significativo do que imaginara, fazendo-me confundir os endereços. Um pouco decepcionado, iniciei minha volta para o carro, estacionado diante da praça da matriz, refletindo sobre meu estranhamento. O rincão persistia com seu jeito macilento, as feições permaneciam desconfiadas, as expectativas conservavam-se limitadas. Um pequeno supermercado aqui, uma loja de serviços de telefonia acolá, dinamizava um pouco mais a vida, oferecendo um ar menos sorumbático, mas os destinos prosseguiam sem eira nem beira. Onde estavam as pessoas, o pastor Salviano e seu bombardino, que nos dias de futebol gostava de me perguntar, às escondidas de sua esposa, religiosa fanática, se o nosso Santos tinha vencido?... E o jornaleiro Eliseu, que logo de manhã buscava os jornais na rodoviária e com sua bicicleta, rodava a cidade vendendo as informações do mundo?... E o jovem Renan, o estagiário que me ajudava no serviço e me contava as histórias e os segredos do lugar?... Onde estaria a bela e espevitada Luiza, filha do Torga, o despachante ?... Não recuperava nenhuma dessas figuras, era como se todas tivessem sido devoradas pela vertiginosa passagem do tempo.
Parei defronte ao antigo escritório em que cumpria minhas desalentadas jornadas, agora uma pequena agência de correio. Mais uns passos, entrei no bar que inexistia em minha época e pedi uma cerveja. O calor inclemente me embaralhava o raciocínio, pior, dissolvia as sobras de identidade, sustentada com alguma renitência durante todos esses anos. Os espaços, os equipamentos urbanos, a gente do lugar se apresentavam estranhos, como se esgueirassem de minha busca. O atendente me servia enquanto conversava animadamente com os outros fregueses, todos me parecendo seres transplantados, sem relação com o lugarejo que havia conhecido. Perguntei-lhe há quanto tempo morava ali. Desde sempre..., respondeu seco, em seu jeito rústico, todos meus 22 anos... Atravessou-me a inevitável constatação, Quando parti, ele era um pequerrucho... Imaginei coisas sem importância, quem poderiam ser seus pais, em que casa morava, se era evangélico - e então poderia conhecer o pastor Salviano - ou católico... Quase em frente, a igreja erguia-se em seus tons amarelados, acolhida em meio às árvores copadas, de boa sombra, talvez o único local reconhecível na minha breve excursão memorial.
Em súbito silêncio, me pus a examinar objetos e aparências, sem qualquer adesão. As ideias flutuavam difusas, inseguras diante das conclusões. Meus olhos percorreram o balcão, as prateleiras, as mesas, alcançando as faces lânguidas até chocar-se com a luminosidade intensa do lado externo, perdendo-se na imobilidade da rua e, mais além, da praça. Pois então era isso, minha sensação de estranhamento era inevitável, jamais fizera parte de fato daquele lugar e não seria naquela visita que recuperaria alguma reciprocidade. Minhas relações tinham sido por demais efêmeras, pautadas por um distanciamento seguro, típico da prepotência da metrópole, e mesmo tendo ali vivido por longos dois anos, nenhum vínculo fora cultivado. Não me envolvi com nenhuma garota, não joguei cartas, não ouvi os mais velhos nem bebi com os amigos no Dois Camelos, o boteco mais badalado do meu tempo, pela simples razão de que não tinha o menor interesse em fincar raízes naquele fim de mundo. Enquanto exilado naquele recanto sonolento e empoeirado, acalentei unicamente cair fora e quando tive a oportunidade, me safei sem despedidas. Ao longo dos anos, passei a acreditar que precisava um dia voltar, para recolocar as coisas nos devidos lugares... talvez uma remissão pela soberba não admitida. Numa palavra, eu havia me dissociado daquele lugar e daquelas pessoas antes mesmo de abandoná-lo. A falta desse regresso significaria um vazio intolerável na memória, mas minha volta não recuperaria o passado, nem me ofereceria um futuro. Meu lamento por não reencontrar o Bulila, dona Neide, Salviano, Renan, Eliseu ou a outrora espevitada Luiza era de uma pretensão ingênua. Por mais que aquele fosse um 'recanto sonolento e empoeirado', sua gente não tinha a obrigação de se apresentar como vassala de minhas emoções, que em relação a ela nunca existiram.
Paguei a cerveja e me despedi do jovem atendente. Diante de meu carro, lancei um derradeiro olhar para a igreja, lugar de acolhimento nos momentos mais tormentosos da solidão, ainda que pela razão jamais alcançasse a fé.


29 novembro 2009

De outra parte...



... temos o reverso desse vento de esperança, que nos anima com suas transformações. Refiro-me ao que se convencionou denominar de eleições hondurenhas, um ato gerado nas entranhas da truculência e promovido à força, por um governo que usurpou o poder.

Entre as eleições previstas democraticamente e sua realização deformada, houve um golpe de estado. Ao longo de cinco meses, instaurou-se um aparato viciado, mantido pela alta burguesia, pelos militares e... bem vemos agora, pela anuência do departamento de estado estadunidense. Essa fórmula, tão maléfica em nossa América Latina desde a derrubada de Jacobo Arbenz, acreditava-se encerrada, em nome da democracia e da autodeterminação dos seus povos. Lêdo (e Ivo) engano, como podemos notar: as tenazes estadunidenses, ainda que fraquejadas, ressurgem para salvaguardar uma ineludível política de interesses econômicos. Movimentação igualmente inquietante ocorre no caso das (sete!) bases colombianas.

Seja como for, o mais grosseiro destas eleições hondurenhas está na cobertura do oligopólio midiático brasileiro, que, como uma extensão dos tais interesses estadunidenses, afunda em analises que mais parecem compactuar com a ficção do que com a realidade. Os movimentos de resistência ao golpe; o desrespeito contínuo aos direitos humanos, como consequência da forte presença policial e militar nas ruas; os candidatos (mais de 100) que abandonaram a disputa para não respaldar o processo eleitoral sob o golpe; os elevados gastos do governo de facto com lobistas, para atuarem junto ao Congresso estadunidense, tudo isso e sabe-se lá quanto mais, foi jogado debaixo do tapete, tratado como informação sem relevância. Um pouco foi dito em torno do fechamento de uma rádio e um jornal de oposição hondurenhos, sem que se avaliasse a essência brutal do regime. E ponto.

Assim, uma página deplorável da história de Honduras (mais uma) é virada, em nome do que se vende como democracia. Os acordos San José-Tegucigalpa também foram jogados debaixo do tapete e em mais alguns dias, o tal Micheletti retorna para 'a normalização do estado de direito'. Zelaya seguirá cerceado na embaixada brasileira, fato que continuará sendo explorado pela massa informe e descartável de boa parte da crítica jornalística.

É de se acreditar que, ao final de tudo, ela deixe inscrito nos anais do oligopólio midiático, como legado de sua pena submissa, que tudo não passou de 'um lamentável episódio hondurenho, decorrente da desastrada política externa do inepto governo Lula'...



Pepe Mujica

Pepe Mujica nos anos do MLN

Falta pouco para se confirmar a vitória eleitoral que permitirá o prosseguimento das importantes conquistas sociais já processadas no Uruguai. Trata-se da vitória de José Pepe Mujica e da Frente Ampla, conduzidos sob o frescor dos ventos que renovam a política na América do Sul desde há alguns anos. Segundo todos os institutos que organizaram pesquisas de intenção de voto, a chapa Mujica-Astori tem entre 6 e 8 por cento de vantagem sobre Lacalle-Larrañaga, do Partido Nacional.

Sinto-me especialmente feliz que esta vitória ocorra com Mujica, um homem simples e de passado íntegro, e da Frente Ampla, que mantém-se no poder por mais um mandato, dando continuidade ao projeto de governo iniciado por Tabaré Vasquez.



25 novembro 2009

Sobre a permanência


Foi a última vez que estive com Julie, aquela tarde encoberta, úmida, distante. Recordo-me da longa caminhada desde sua casa até a estação. Não nos falamos, cada um com seus motivos, e por um momento fugidio, voltei-me para o rosto suave, marcado pela dor de tantas certezas. Quis compreender que lhe parecia difícil dar andamento ao percurso, porque era a sensação que me invadia naquele instante, e que nos deixava impotentes. Aqueles parcos quinhentos metros, ao cabo dos quais eu tomaria o trem e não mais nos veríamos. Uma vida merecia despedida assim definitiva?, pensei com meus botões, e logo me aprumei, mirando o asfalto molhado que se estendia pela frente.

Recordo-me com nitidez da serenidade a nos envolver, que retinia os ecos do último diálogo, um conjunto de breves monólogos. Nos sentamos no banco da praça e ali ficamos, lado a lado, dando alento a uma espera infrutífera, enquanto acariciava-lhe uma das mãos. Vestia um cachecol listrado, que dava duas voltas em seu pescoço e escondia-se parcialmente por baixo do casaco verde. Uma perna dobrada sobre a outra, a calça de veludo marrom que revelava graciosamente as meias de lã colorida, e por fim os sapatos de camurça que lhe presenteara no natal anterior. Falou do viço das árvores em dias chuvosos, do sono de seu gato sobre o tapete, da demora das noites de inverno... Na verdade, não queria falar, mas precisava de alguma forma ocultar o silêncio.

Recordo-me também de aproximá-la de mim, e sua cabeça acomodar-se em meu ombro. Pude, enfim, abraçá-la, sentir ainda uma vez o cheiro característico de seu perfume, reter um pouco mais comigo o corpo e a alma que tão bem conhecia, a despeito do vento e da garoa diáfana, que aos poucos nos cobriu com seu orvalho indelicado. Permanecemos, quietos, invencíveis, como se aquele banco de concreto oferecesse nossa última chance. Os pensamentos se acumularam, tornaram-se nebulosos como o dia, e vagos, e dolorosos, conduzindo-nos cada qual para o complemento da jornada.

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23 novembro 2009

Prelude to a kiss



Preciso tirar esta mulher da cabeça, de uma vez por todas... O modo brusco com que Lee Oswald se cobrava tal decisão ia bem de acordo com seu caráter, tímido até certo ponto, mas sobretudo prático com as questões mais prementes de sua vida. Da janela da sala, no sexto andar do edifício onde se encontrava, prosseguia observando as pessoas se aglomerarem lá embaixo, numa mistura de festividade e expectativa. A rua diante de si mantinha-se com a pista livre, à espera do cortejo presidencial, porém suas cercanias, as ruas adjacentes, as janelas dos outros prédios - e assim numa extensão de quilômetros desde o aeroporto - mostravam-se repletas de cidadãos. A população local unia-se às famílias vindas dos mais remotos pontos do Estado. Homens e mulheres radiantes, com suas crianças agitando bandeirinhas, retratavam o ufanismo imperante naqueles dias que prenunciavam história. Tempos marcados pela Guerra Fria, pela mal superada crise dos mísseis russos em Cuba, que mantinha o mundo envolto numa espécie de vigilância permanente, imobilizado sob uma pressão mais angustiante do que ameaçadora... Um caldo de instabilidade que ajudava a promover a unidade da nação, fazendo despontar a figura do jovem e carismático presidente, que em minutos estaria desfilando pelas ruas de Dallas.

Como amar, como sofrer, em horas como essas?, continuava Oswald em meio a suas divagações. Estático em seu lugar, tinha uma visão privilegiada do palco cujo espetáculo viria a acontecer. Continuava com um ar distante, olhando todas as pessoas espremidas, tensas, felizes, detendo-se nos detalhes que pudesse identificar: o policiamento irregular e frouxo; as roupas coloridas do povo; o céu pontilhado por cirros suaves; o clima paradoxal de agitação e suspense que ele captava com especial sensibilidade, decerto por saber o que estava planejado e decidido para breve. Um calor outonal fazia as pessoas transpirarem, estivessem onde estivessem, ali na rua, nos parques, em casa, nos ambientes públicos, alegria e suspeição. O espectro ameaçador confundia-se com a descontração. Era a primeira vez que o presidente chegava à cidade, havendo uma preocupação das autoridades em recebê-lo sem problemas. Tinha-se difundido pelas rádios da cidade uma campanha, através dos meios de comunicação, para se proporcionar uma acolhida simpática ao presidente, que sua visita fosse vista com orgulho, que o evento festivo desarmasse os espíritos recalcitrantes... Mas algo de anormal desprendia-se em meio desses esforços e insistia em pairar pesadamente no ar.

Oswald, obviamente, não se preocupava com estas questões, apenas via o espetáculo, ou a sua armação. Seu raciocínio teimava em prender-se, inopinadamente, ao seu delicado conflito pessoal. Antes de acertar os últimos detalhes com o pessoal do M., avistara no recinto enfumaçado, por entre as mesas de carteado, a loira de outras ocasiões. R. não se preocupava com as aparências, ou não ligava para isso, uma vez que sua silhueta contrastava com o lugar, mais para gângsteres, do que para beldades com pernas maravilhosas. Possuía um olhar todo especial, que evidenciava um jeito meigo, fútil e ao mesmo tempo triste. Essa mulher terminou por arrancar Oswald de seu frágil equilíbrio, atirando-o junto ao torvelinho de uma paixão desvairada. Deixou-se arrastar pelo sentimento: seriam meros dois meses desde sua titubeante aproximação até os encontros nada furtivos. De início, Oswald esforçou-se para controlar o caso, mas ao final, o envolvimento transbordou para o conhecimento do grupo. Passou-lhe pela cabeça o quanto estaria sendo injusto com sua Marina, a companheira inseparável de tantas situações difíceis, porém afastava-se dela e dos infortúnios vividos no passado com a mesma velocidade que se voltava para R.. Esboçava um novo salto no escuro em sua curta e não menos tumultuada vida, mas já não se impunha qualquer restrição. E R., para J. Roconi não passava de uma mulher qualquer, portanto inteiramente desconhecida. Contanto que não surgissem problemas nos planos, não via motivos para maiores preocupações. Já Spelmann, além de confirmar que era apenas mais uma mulher, preferiu acrescentar para Oswald, um tanto irritado, que seria melhor esquecê-la. Talvez por algum ciúme, talvez preocupado com um possível comprometimento do complô... Todavia sabemos o quanto esse tipo de conselho é inútil em uma situação dessas. No caso de Oswald, a coisa mostrava-se tão irremediável quanto irreversível: era um jovem agitado, de cabeça confusa e agora, envolvido emocionalmente. Queria viver o momento, sem atentar para as advertências da vida, tão claras e tão explícitas.

Por mais que se constatasse alguma coisa entre ambos, não se podia falar com convicção do sentimento de R. para com Oswald. Um dia antes da visita do presidente a Dallas, um contato do pessoal de M. procurou Oswald e asseverou-lhe de que meter-se com essa mulher podia lhe custar caro... Um recado pessoal e explícito de algum chefão tipo Spelmann? O comportamento de Oswald começava a incomodar a paciência de muita gente, ameaçando o bom andamento dos negócios? Um cubano ligado a J. Roconi, Gustavo F., dizia abertamente, para quem quisesse ouvir, que Oswald desviava a atenção para questões menores e inoportunas, o que era intolerável naquela altura dos acontecimentos. Oswald foi chamado às falas, em reuniões quase diárias, e dentro de seus modos inconsequentes, prometeu dedicação total em seu trabalho, o que aparentemente tranqüilizou M., mas não os rapazes. É forçoso entender, por conta desses episódios, que a participação de Oswald na operação em curso esteve por um fio, só não ocorrendo a sua eliminação por absoluta falta de tempo em preparar outro laranja.

Assim, voltemos à janela do sexto andar do Depósito de Livros, na manhã festiva onde a população de Dallas aguardava ansiosamente a comitiva presidencial. Oswald havia recolhido parcialmente as persianas, buscando ter seu campo de visão desimpedido. Não sentia tremor ou qualquer reação fisiológica comprometedora, apenas a cabeça continuava perturbada pela mulher. Deixava transparecer os sintomas da paixão na hora errada. Até que ponto esse sentimento, que chegara abruptamente, tinha alguma chance? O que ele passaria a significar a partir deste dia? Oswald não tinha tempo ou condições para saber ao certo o que se passava na cabecinha da bela jovem. Aliás, onde estaria R. neste instante? Sim, era jovem, divorciada, havia tido alguns amantes, uns de peso, como Spelmann, Rosales... Aspectos que se confundiam com resquícios de podridão e com uma ou outra informação concreta, nada mais. O resto, era fruto da imaginação, e imaginação não faltava a Lee Oswald. Olhou para o relógio de pulso, 12:25, ato contínuo, um alarido mais forte, proveniente da sua esquerda, ao longo do percurso previsto para o presidente e seu séqüito. Significava que ele se aproximava, mais uns dois minutos, ou menos. Oswald esticou o braço direito, pegou sua arma, segurando-a firme com as duas mãos. Voltou a passar os olhos no público, que começava a rejubilar-se animadamente. Distinguiu, do outro lado da rua, sentado nos ombros do pai, um pequerrucho bastante animado, com a bandeira da pátria em uma das mãos. Resolveu observá-lo por uns segundos, sem um motivo especial. Pobre garoto, de nada sabia, de alguma coisa saberia no futuro, talvez o suficiente para odiar a ele, Oswald, pelos fatos ocorridos naquela tarde. Exasperou-se e, sem saber a razão, tentou esquadrinhar R. com a mira da arma, no meio da multidão. Como seria bom tê-la aqui, comigo, minha querida... Não podia mais perder tempo, ele escoava célere. Eu te adoro... não a deixarei por nada!, exclamou para si mais, ansioso, o homem de aparência fria, ao localizar por sua mira telescópica uma jovem muito parecida com R., aplaudindo saltitante o presidente. Oswald voltou a si, esticou o pescoço, percebendo os primeiros carros contornarem a esquina. Devagar, a caravana foi se aprumando pela rua, entre os batedores. O público se manifestava; Oswald levantou seu instrumento e o assestou na direção do homem sentado no banco de trás do Lincoln presidencial. Enquadrou o alvo, a nuca do presidente. Num átimo, suas convicções foram postas em jogo, turbilhonando os ideais mais ou menos claros com o desejo lancinante pela bela R. Sacudiu então bruscamente a cabeça, como a afastar os pensamentos e assim poder se concentrar no serviço. Fez mira, sentindo o suor escorrer incomodamente pelo corpo, um, dois, três, apertou o gatilho, imaginou ter acertado o alvo. Ao preparar a arma para o segundo golpe, outros estampidos ecoaram pela rua. Oswald tentou entender o que acontecia, a cabeça do presidente sendo jogada para trás, alguém mais estava participando do ataque, alguém do pessoal do M. Sentiu o corpo estremecer nos parcos segundos em que perdeu a noção das coisas. Aquilo não estava nos planos, por que não o avisaram que haveria mais gente...? Não tinha M. confiado nele para o serviço? Dúvida que poderia desfazer mais tarde, no encontro que teriam para acertar as contas. Mas ir a este encontro não seria temerário, agora que lhe assaltava essa possível armação? Talvez fosse melhor cair fora. E R.? Não podia abandoná-la, nessa altura dos acontecimentos. Teria de ir ao cinema para encontrá-la, se é que ela estaria à sua espera. Um tanto atarantado pelos acontecimentos, sem saber exatamente o que fazer, Oswald abandonou a arma ao lado da janela e saiu às pressas da sala do sexto andar do Depósito de Livros.

O homem, que teve o filhote sendo observado havia pouco por Lee Oswald, percebeu o movimento ligeiro na janela do sexto andar do edifício no canto da praça Dealey. Na rua, a confusão era total: os carros aceleravam, as pessoas iam tomando consciência do ocorrido, reagiam como podiam, gritavam, choravam, corriam ou se agachavam, assustadas e transtornadas. Policiais começaram a vasculhar a área, procurando adivinhar de onde partiram os tiros. Houve quem acreditasse que se tratasse de explosões do escapamento de uma das motos que comboiavam o presidente. Sendo assim, no meio dessa confusão generalizada, ninguém daria crédito a esse pai que presenciara tudo, ou quase tudo e que, com o filho nos ombros, insistia em apontar para a janela suspeita, sem forças para pronunciar palavra. Abaixou o braço, olhando para as persianas semicerradas e o fundo escuro. Trouxe o filho ao chão, sem perder de vista a janela. Se pudesse uma aproximação, com uma hipotética objetiva, deslocando-se no sentido do objeto - um desejo que lhe tomou a mente graças a seus impulsos de cineasta amador - teria a janela cada vez mais próxima. Cortaria, então, para um plano com ela a umas cinco jardas, permitindo que a tensão criada fosse sendo substituída pela curiosidade instigadora. Daí, o 'travelling' em grua prosseguiria até adentrar a sala. Uma panorâmica lenta perscrutaria seu interior, desvelando os utensílios da cena: um pequeno espaço em primeiro plano, duas mesas com papéis esparramados no chão, uma espingarda Manlicher-Carcano com mira telescópica abandonada, uma cadeira contendo um toca-discos em funcionamento, estantes recheadas de pacotes, mais ao fundo uma porta entreaberta. Faria um 'close' destacando o toca-discos, a agulha sobre o disco em movimento, um 'zoom in' vagaroso, o ruído da rua substituído pelo som tocado no aparelho, depois um corte para um plano sobre o toca-discos, fazendo a aproximação gradual até um plano fechado do selo. O estalo surdo, a agulha escorregando ao final do disco e seu retorno automático ao repouso. Por fim, a imagem em 'close-up' do selo destacando o título da música: "Prelude to a kiss".

(Conto que integra o livro A paixão inútil, Ed. Patuá, São Paulo, 2019)



18 novembro 2009

O destino de Brooks


Após quarenta anos encarcerado, o senhor Brooks conseguiu a liberdade. As condições em que a obteve, bem como seu crime não importam tanto quanto a análise de seu breve retorno à vida como um cidadão livre.

Brooks desde o momento em que sabe que estará livre se sente incomodado. Dentro do ônibus que o conduz para fora da prisão, tem a expressão desconfortável, de quem não aprova o desdobramento dos fatos.

Mas Brooks acede e de algum modo tenta se adaptar às circunstâncias. Dia após dia, experimenta o ritmo imponderável de uma realidade imponderável. Seu emprego como empacotador em um supermercado confirma as enormes dificuldades de assimilar o significado da liberdade.

Brooks não tem mais idade para novas adaptações na vida, e o pior, sente que o seu mundo ficou para trás. O mundo em que sabia lidar com as solicitações rudes, sem desafios, cujo único objetivo era manter-se vivo.

Nas ruas, perturba-se com desafios inesperados, deixa-se envolver em profunda incerteza. Compra uma corda bem resistente e antes de pendurar-se pelo pescoço, escreve na viga da pequena água furtada, Brooks esteve aqui.

Seu amigo Red Redding, que mais tarde passará pela mesma aflição (sem, porém, amargar o trágico final), é quem desvela o ato do amigo: ele institucionalizou-se.

O tempo o corroeu por dentro e o transformou num ataúde, à espera do próprio corpo. Tolerou ao longo dos anos a mesmice cotidiana, aceitando-a tal como um peixe acomoda-se ao aquário, satisfeito com a ração diária e com o cenário garantido.

Com o passar do tempo deixou de sonhar e, uma vez acordado, deixou de acalentar. Em uma palavra, Brooks institucionalizou-se à esperança comezinha, e dela não conseguiu sair vivo.


09 novembro 2009

Berlim

A porta de Brandemburgo, em algum momento antes de 1989


Lembro-me que o lançamento de Asas do Desejo, na Mostra de Cinema de SP (creio que em 1987) foi incrivelmente concorrida. Em uma das apresentações, mesmo chegando cedo na antiga Cinemateca (na Fradique Coutinho) a fila era imensa. Pude ver o filme logo depois, quando entrou em circuito comercial, e saí do cinema profundamente impressionado. Confesso que por dias não pensei em outra coisa senão naqueles anjos, em Peter Falk, na bela Marion... Fui absorvido pela força das personagens, pela beleza do roteiro, pelas cicatrizes da cidade retalhada e sobretudo, pelo complexo universo de situações singelas, que permeiam a narrativa. Malgrado meus esforços em escrever um ensaio sobre o filme de Wenders (em minha opinião, seu ápice cinematográfico) nunca consegui constituir uma abordagem decente, que pudesse dar a dimensão de meu encantamento pela obra.

Menos de dois anos depois, em fins de junho de 1989, desembarquei em Berlim. Solitário, em uma manhã cinzenta, o trem passando por cercas e postos de vigia. Estava um bocado inseguro, afinal adentrava uma cidade cuja universo simbólico era pautado por histórias de suspeições, espionagens, mortes, e adequadamente oculto por um... muro. Eram seis horas da manhã quando deixei minha bagagem na estação. Tateei às cegas pelas redondezas até sentar-me diante das vidraças do Café Haussner, olhando os primeiros movimentos do dia. A chuva caia torrencialmente e nada em Berlim me lembrava o universo simbólico atemorizante, muito menos a magia do filme de Wenders. Sobrepunha-se um sentimento de frustração por estar em uma cidade com tantos atrativos e completamente imobilizado por um componente inesperado, o mau tempo.

Aos poucos, porém, o dia limpou até surgir o sol de verão. Lancei-me pelas ruas da cidade, atravessei o Tiergarten e alcancei a 17 Juni, que compõe o eixo leste-oeste com a Unter dem Linden. Na época, o trajeto era interrompido pelo muro, defronte ao portão de Brandemburg. Contornei o muro até o Reichstag, que então era um museu de história alemã. Cheguei às margens do Spree e daí iniciei o regresso à estação. Estava em um périplo pela Europa e África que duraria quase três meses, e acreditava que poderia tomar um rápido contato com a cidade, para mais tarde realizar uma visita completa.

Embora grotesco, nada naquele momento indicava (aos olhos incautos) que o muro estivesse com os dias contados. Era sem dúvida uma afronta que não se explicava, apenas se impunha, como resultado da imponderável razão humana. Registrei em minhas anotações o sentimento de tristeza e impotência que perpassava os olhares das pessoas que o topavam.
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Retornaria após um ano e meio, já com a cidade sem muros. Era início de primavera, dias frios e encobertos. Desta feita ficaria cinco dias na cidade, circulando livremente por todos seus espaços vazios. Não sobrara nada da outrora importância geopolítica, o mundo tinha se transformado. Foi então que pude, sem dificuldades, recuperar a magia do filme que me marcara.


08 novembro 2009

Momentos de puro deleite




Holley Martins salta da carona de Calloway e se posiciona na alameda silenciosa, salpicada de folhas. Precisa trocar umas palavras com Anna Schmidt, esta mulher que lhe atrai de modo especial. As árvores com seus galhos arreganhados enfileram-se pelo caminho, aprofundando o cinza da paisagem invernal. Ao espectador, resta a progressiva aproximação de Anna, que se move ao longe, no centro da tela. Para Martins, será a derradeira chance de uma conversa e para isso aguarda a chegada da mulher, recostado em um carrinho carregado de galhos de árvores, à margem da aléia.

O som extradiegético é da cítara de Anton Karas, a preparar o desenlace do plano sequência, transe mágico de pouco mais de um minuto, e a animar, em conjunção com o movimento decidido de Anna, a composição da cena. Nas palavras de Graham Greene, "tive receio de que poucas pessoas continuassem sentadas durante a longa caminhada da garota (...) e que saíssem do cinema com a impressão de que o fim era tão convencional como o meu". Na verdade, o final do filme de Carol Reed difere do livro de Greene em uma sutil e, segundo ele, "brilhante descoberta".

Os passos de Anna por fim alcançam Martins e, prosseguindo no sentido da câmera, abandona o quadro. A paisagem torna-se definitivamente desolada. Martins parece não se surpreender com a indiferença de Anna, move-se o suficiente para acender um cigarro.