Uma reação murcha, ausente de gestos, demonstrou-me de modo cabal que eu não passava de um forasteiro naquelas paragens. O homem prosseguiu em sua indiferença, abanando-se com o jornal mirrado, sentado bem na entrada de sua barbearia. Antes de pensar em solicitar seus serviços postei-me diante de si, imaginando que me reconheceria. Não me reconheceu e não fez questão, preferindo olhar para o movimento insipiente de pessoas na rua. Dentro, a mesma disposição de antes, as mesmas duas cadeiras de trabalho, as fotos mais recentes do time do Palmeiras, o mesmo torpor que se misturava com a poeira e a escuridão. Perguntei por seu filho, o Bulila, ele murmurou que voltaria mais tarde. Senti-me como um pistoleiro mal afamado, que acabava de regressar ao vilarejo após anos de prisão. Maldita cidade, malditos vermes insepultos, praguejei, desejoso por dar meia volta e retomar a estrada. Dei mais uma chance ao velho e indaguei-lhe onde encontraria dona Neide, minha antiga senhoria, ao que o semblante morno persistiu em sua discreta ausência.
Prossegui pela avenida, sob o sol escaldante do meio-dia. Não reconhecia os passantes e os estabelecimentos estavam modificados em suas fachadas. Não encontrei o açougue, a lanchonete, nem a oficina de contabilidade em que trabalhara. No dia em que deixei o povoado para sempre, desabava uma chuva torrencial, que transformou a única avenida em um charco intransitável. Teria sido mais fácil naquela circunstância abandoná-lo em um cavalo do que da maneira que ocorreu, em um ônibus. Reencontrava agora as ruas decentemente asfaltadas e uma discreta presença comercial indicava que o lugarejo se modificara bastante, tornando-se um sítio menos desafortunado.
Caminhei mais umas quadras para cima, onde acreditava que se localizava a edícula em que, por longos dois anos, eu habitara. Na ocasião, era talvez o único quarto disponível para um estranho se instalar, não havia pensões e o único hotelzinho não garantia a privacidade de seus hóspedes. Nada, subi e desci o quarteirão seguidamente, sem identificar a casa. As mudanças haviam ocorrido de modo mais significativo do que imaginara, fazendo-me confundir os endereços. Um pouco decepcionado, iniciei minha volta para o carro, estacionado diante da praça da matriz, refletindo sobre meu estranhamento. O rincão persistia com seu jeito macilento, as feições permaneciam desconfiadas, as expectativas conservavam-se limitadas. Um pequeno supermercado aqui, uma loja de serviços de telefonia acolá, dinamizava um pouco mais a vida, oferecendo um ar menos sorumbático, mas os destinos prosseguiam sem eira nem beira. Onde estavam as pessoas, o pastor Salviano e seu bombardino, que nos dias de futebol gostava de me perguntar, às escondidas de sua esposa, religiosa fanática, se o nosso Santos tinha vencido?... E o jornaleiro Eliseu, que logo de manhã buscava os jornais na rodoviária e com sua bicicleta, rodava a cidade vendendo as informações do mundo?... E o jovem Renan, o estagiário que me ajudava no serviço e me contava as histórias e os segredos do lugar?... Onde estaria a bela e espevitada Luiza, filha do Torga, o despachante ?... Não recuperava nenhuma dessas figuras, era como se todas tivessem sido devoradas pela vertiginosa passagem do tempo.
Parei defronte ao antigo escritório em que cumpria minhas desalentadas jornadas, agora uma pequena agência de correio. Mais uns passos, entrei no bar que inexistia em minha época e pedi uma cerveja. O calor inclemente me embaralhava o raciocínio, pior, dissolvia as sobras de identidade, sustentada com alguma renitência durante todos esses anos. Os espaços, os equipamentos urbanos, a gente do lugar se apresentavam estranhos, como se esgueirassem de minha busca. O atendente me servia enquanto conversava animadamente com os outros fregueses, todos me parecendo seres transplantados, sem relação com o lugarejo que havia conhecido. Perguntei-lhe há quanto tempo morava ali. Desde sempre..., respondeu seco, em seu jeito rústico, todos meus 22 anos... Atravessou-me a inevitável constatação, Quando parti, ele era um pequerrucho... Imaginei coisas sem importância, quem poderiam ser seus pais, em que casa morava, se era evangélico - e então poderia conhecer o pastor Salviano - ou católico... Quase em frente, a igreja erguia-se em seus tons amarelados, acolhida em meio às árvores copadas, de boa sombra, talvez o único local reconhecível na minha breve excursão memorial.
Em súbito silêncio, me pus a examinar objetos e aparências, sem qualquer adesão. As ideias flutuavam difusas, inseguras diante das conclusões. Meus olhos percorreram o balcão, as prateleiras, as mesas, alcançando as faces lânguidas até chocar-se com a luminosidade intensa do lado externo, perdendo-se na imobilidade da rua e, mais além, da praça. Pois então era isso, minha sensação de estranhamento era inevitável, jamais fizera parte de fato daquele lugar e não seria naquela visita que recuperaria alguma reciprocidade. Minhas relações tinham sido por demais efêmeras, pautadas por um distanciamento seguro, típico da prepotência da metrópole, e mesmo tendo ali vivido por longos dois anos, nenhum vínculo fora cultivado. Não me envolvi com nenhuma garota, não joguei cartas, não ouvi os mais velhos nem bebi com os amigos no Dois Camelos, o boteco mais badalado do meu tempo, pela simples razão de que não tinha o menor interesse em fincar raízes naquele fim de mundo. Enquanto exilado naquele recanto sonolento e empoeirado, acalentei unicamente cair fora e quando tive a oportunidade, me safei sem despedidas. Ao longo dos anos, passei a acreditar que precisava um dia voltar, para recolocar as coisas nos devidos lugares... talvez uma remissão pela soberba não admitida. Numa palavra, eu havia me dissociado daquele lugar e daquelas pessoas antes mesmo de abandoná-lo. A falta desse regresso significaria um vazio intolerável na memória, mas minha volta não recuperaria o passado, nem me ofereceria um futuro. Meu lamento por não reencontrar o Bulila, dona Neide, Salviano, Renan, Eliseu ou a outrora espevitada Luiza era de uma pretensão ingênua. Por mais que aquele fosse um 'recanto sonolento e empoeirado', sua gente não tinha a obrigação de se apresentar como vassala de minhas emoções, que em relação a ela nunca existiram.
Paguei a cerveja e me despedi do jovem atendente. Diante de meu carro, lancei um derradeiro olhar para a igreja, lugar de acolhimento nos momentos mais tormentosos da solidão, ainda que pela razão jamais alcançasse a fé.
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