15 dezembro 2009

Desventura


Faz muitos anos, conheci um homem que viveu um átimo de felicidade, perdeu-se nos descaminhos que a vida proporciona e definhou no opróbrio absoluto. Sua história não difere das histórias dos homens comuns, mas o fato de eu ter acompanhado a parte final de sua existência a transforma em uma tragédia cujos reflexos alcançam-me de um modo especial. Como posso contá-la sem omitir as estesias da juventude, as fragilidades delirantes da alma, as sombras da ausência?
Tudo começou em um lugar a muitos quilômetros daqui, longínquo o suficiente para o tempo correr sem despertar transformações e pequeno o necessário para não difundir a cobiça. As jornadas semanais de labuta apenas significavam a separação de um fim de semana de outro, quando os corações se engalfinhavam e a razão se perdia nas emoções dos footings diante da igreja. Os casais formados gostavam de se encontrar e de bebericar um martini no Ibrahim e, em dois sábados por mês, dançar nos bailes do clube ao som da banda do Gorni. Os jovens da cidadezinha viviam em função desses prazeres. E foi nesse restrito circuito de encontros que conheceu o amor da sua vida e para ela se dedicou de corpo e alma. Paixão dilacerante, que lhe custou os pensamentos de cada jornada e o sono das noites, e mais tarde lhe custaria a própria vida.
Mas o seu amor, o seu amor foi maior do que poderia ser. Jamais soube declará-lo como o sentia, jamais soube vivenciá-lo como o contemplava. Se se comportou de modo injusto ou incoerente, ela por certo o alertou. Seja como for, o rumor dos anos foi mais duro do que o esperado e os amigos se dispersaram, o emprego tornou-se obsoleto, a cidade permaneceu pequena demais para um convívio sem escape, desgastado, um huis-clos mortal. Agora posso afirmar, ele me marcou como um bonachão mimado, confiante demais em seus sonhos e atuante de menos na realidade. Talvez acreditasse que o tempo do mundo não se esgotasse, ou as pessoas ao seu redor não se cansassem da mesmice... De sua mulher, guardo o charme elegante e discreto, mas sobretudo a fina perspicácia, sintonizada com as asperezas do cotidiano. A mudança para a metrópole não trouxe a realização de dias melhores, a mulher partiu com os filhos e a ele restou a amargura. Lembro-me de uma época em que ia buscá-lo para jogar cartas com meu pai e os amigos em comum, em encontros marcados por boas histórias, mas seu entusiasmo já se mostrava declinante e seu olhar, bem, isso era o que mais impressionava, não recendia vida, ao contrário, fechava-se em uma opacidade voltada para o infinito do íntimo, ainda que forjasse uma distraída expressão, adornada de ora em vez por um sorriso mortiço, ou por uma lágrima fugidia...
Passaram-se os anos e numa bela manhã de domingo, meu pai recebeu uma chamada. Convidou-me a acompanhá-lo ao hospital. Na verdade, constatamos que não se tratava exatamente de um hospital, mas de um sanatório decadente, e lá o encontramos em um quarto que mais parecia uma despensa, que exalava o olor pútrido da morte. Estava ali, sem fala, sem dentes, sem forças para se expressar, os cabelos desgrenhados, derribado em um catre qualquer. No tempo em que consegui observá-lo, procurei entender como era possível para um homem se esfacelar em um punhado de anos, envolto na redoma de seus pensamentos. Os demais pacientes perambulavam sem um caminho traçado, vestidos com camisolas alvas, como almas paridas e abandonadas. Ao se aperceber da presença de meu pai, uma luz inundou-lhe o semblante e o esforço de seus gestos apenas expuseram o arremedo dos traços humanos, flamejantes tal qual a chama de um candeeiro em meio à borrasca. Quis se expressar, e emitiu um som gutural longo, inapreensível, para em seguida tornar-se um candeeiro sem vida.
Alijado de suas próprias decisões, restava-lhe a memória de um tempo em que acreditou ser feliz, como também as lembranças dos descaminhos indesejados até prostrar-se naquele grabato repulsivo. No fundo, creio que jamais conseguiu avaliar seu ostracismo terminal, mas foi visível que na presença de meu pai, recuperou por um átimo o discernimento dos fatos, e quem sabe vislumbrou a fagulha de uma nova esperança. Esforcei-me por imaginar o fog dos cigarros em uma noite de drinks no Ibrahim, as voltas em torno da igreja, as belas mulheres de saias rodadas, os casais de mãos dadas, entre sorrisos e expectativas... Imaginei o salão ao som das salsas tocadas pelo Gorni, as danças coladinhas e os beijos roubados nas penumbras mais afastadas, cenário que emanava o aroma da imortalidade.
De volta ao presente, não restou ao meu bom pai senão segurar as mãos débeis do amigo. Sobreviveria uma semana, sepultando consigo um amor imenso, em sua incompletude definitiva.
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