23 novembro 2009

Prelude to a kiss



Preciso tirar esta mulher da cabeça, de uma vez por todas... O modo brusco com que Lee Oswald se cobrava tal decisão ia bem de acordo com seu caráter, tímido até certo ponto, mas sobretudo prático com as questões mais prementes de sua vida. Da janela da sala, no sexto andar do edifício onde se encontrava, prosseguia observando as pessoas se aglomerarem lá embaixo, numa mistura de festividade e expectativa. A rua diante de si mantinha-se com a pista livre, à espera do cortejo presidencial, porém suas cercanias, as ruas adjacentes, as janelas dos outros prédios - e assim numa extensão de quilômetros desde o aeroporto - mostravam-se repletas de cidadãos. A população local unia-se às famílias vindas dos mais remotos pontos do Estado. Homens e mulheres radiantes, com suas crianças agitando bandeirinhas, retratavam o ufanismo imperante naqueles dias que prenunciavam história. Tempos marcados pela Guerra Fria, pela mal superada crise dos mísseis russos em Cuba, que mantinha o mundo envolto numa espécie de vigilância permanente, imobilizado sob uma pressão mais angustiante do que ameaçadora... Um caldo de instabilidade que ajudava a promover a unidade da nação, fazendo despontar a figura do jovem e carismático presidente, que em minutos estaria desfilando pelas ruas de Dallas.

Como amar, como sofrer, em horas como essas?, continuava Oswald em meio a suas divagações. Estático em seu lugar, tinha uma visão privilegiada do palco cujo espetáculo viria a acontecer. Continuava com um ar distante, olhando todas as pessoas espremidas, tensas, felizes, detendo-se nos detalhes que pudesse identificar: o policiamento irregular e frouxo; as roupas coloridas do povo; o céu pontilhado por cirros suaves; o clima paradoxal de agitação e suspense que ele captava com especial sensibilidade, decerto por saber o que estava planejado e decidido para breve. Um calor outonal fazia as pessoas transpirarem, estivessem onde estivessem, ali na rua, nos parques, em casa, nos ambientes públicos, alegria e suspeição. O espectro ameaçador confundia-se com a descontração. Era a primeira vez que o presidente chegava à cidade, havendo uma preocupação das autoridades em recebê-lo sem problemas. Tinha-se difundido pelas rádios da cidade uma campanha, através dos meios de comunicação, para se proporcionar uma acolhida simpática ao presidente, que sua visita fosse vista com orgulho, que o evento festivo desarmasse os espíritos recalcitrantes... Mas algo de anormal desprendia-se em meio desses esforços e insistia em pairar pesadamente no ar.

Oswald, obviamente, não se preocupava com estas questões, apenas via o espetáculo, ou a sua armação. Seu raciocínio teimava em prender-se, inopinadamente, ao seu delicado conflito pessoal. Antes de acertar os últimos detalhes com o pessoal do M., avistara no recinto enfumaçado, por entre as mesas de carteado, a loira de outras ocasiões. R. não se preocupava com as aparências, ou não ligava para isso, uma vez que sua silhueta contrastava com o lugar, mais para gângsteres, do que para beldades com pernas maravilhosas. Possuía um olhar todo especial, que evidenciava um jeito meigo, fútil e ao mesmo tempo triste. Essa mulher terminou por arrancar Oswald de seu frágil equilíbrio, atirando-o junto ao torvelinho de uma paixão desvairada. Deixou-se arrastar pelo sentimento: seriam meros dois meses desde sua titubeante aproximação até os encontros nada furtivos. De início, Oswald esforçou-se para controlar o caso, mas ao final, o envolvimento transbordou para o conhecimento do grupo. Passou-lhe pela cabeça o quanto estaria sendo injusto com sua Marina, a companheira inseparável de tantas situações difíceis, porém afastava-se dela e dos infortúnios vividos no passado com a mesma velocidade que se voltava para R.. Esboçava um novo salto no escuro em sua curta e não menos tumultuada vida, mas já não se impunha qualquer restrição. E R., para J. Roconi não passava de uma mulher qualquer, portanto inteiramente desconhecida. Contanto que não surgissem problemas nos planos, não via motivos para maiores preocupações. Já Spelmann, além de confirmar que era apenas mais uma mulher, preferiu acrescentar para Oswald, um tanto irritado, que seria melhor esquecê-la. Talvez por algum ciúme, talvez preocupado com um possível comprometimento do complô... Todavia sabemos o quanto esse tipo de conselho é inútil em uma situação dessas. No caso de Oswald, a coisa mostrava-se tão irremediável quanto irreversível: era um jovem agitado, de cabeça confusa e agora, envolvido emocionalmente. Queria viver o momento, sem atentar para as advertências da vida, tão claras e tão explícitas.

Por mais que se constatasse alguma coisa entre ambos, não se podia falar com convicção do sentimento de R. para com Oswald. Um dia antes da visita do presidente a Dallas, um contato do pessoal de M. procurou Oswald e asseverou-lhe de que meter-se com essa mulher podia lhe custar caro... Um recado pessoal e explícito de algum chefão tipo Spelmann? O comportamento de Oswald começava a incomodar a paciência de muita gente, ameaçando o bom andamento dos negócios? Um cubano ligado a J. Roconi, Gustavo F., dizia abertamente, para quem quisesse ouvir, que Oswald desviava a atenção para questões menores e inoportunas, o que era intolerável naquela altura dos acontecimentos. Oswald foi chamado às falas, em reuniões quase diárias, e dentro de seus modos inconsequentes, prometeu dedicação total em seu trabalho, o que aparentemente tranqüilizou M., mas não os rapazes. É forçoso entender, por conta desses episódios, que a participação de Oswald na operação em curso esteve por um fio, só não ocorrendo a sua eliminação por absoluta falta de tempo em preparar outro laranja.

Assim, voltemos à janela do sexto andar do Depósito de Livros, na manhã festiva onde a população de Dallas aguardava ansiosamente a comitiva presidencial. Oswald havia recolhido parcialmente as persianas, buscando ter seu campo de visão desimpedido. Não sentia tremor ou qualquer reação fisiológica comprometedora, apenas a cabeça continuava perturbada pela mulher. Deixava transparecer os sintomas da paixão na hora errada. Até que ponto esse sentimento, que chegara abruptamente, tinha alguma chance? O que ele passaria a significar a partir deste dia? Oswald não tinha tempo ou condições para saber ao certo o que se passava na cabecinha da bela jovem. Aliás, onde estaria R. neste instante? Sim, era jovem, divorciada, havia tido alguns amantes, uns de peso, como Spelmann, Rosales... Aspectos que se confundiam com resquícios de podridão e com uma ou outra informação concreta, nada mais. O resto, era fruto da imaginação, e imaginação não faltava a Lee Oswald. Olhou para o relógio de pulso, 12:25, ato contínuo, um alarido mais forte, proveniente da sua esquerda, ao longo do percurso previsto para o presidente e seu séqüito. Significava que ele se aproximava, mais uns dois minutos, ou menos. Oswald esticou o braço direito, pegou sua arma, segurando-a firme com as duas mãos. Voltou a passar os olhos no público, que começava a rejubilar-se animadamente. Distinguiu, do outro lado da rua, sentado nos ombros do pai, um pequerrucho bastante animado, com a bandeira da pátria em uma das mãos. Resolveu observá-lo por uns segundos, sem um motivo especial. Pobre garoto, de nada sabia, de alguma coisa saberia no futuro, talvez o suficiente para odiar a ele, Oswald, pelos fatos ocorridos naquela tarde. Exasperou-se e, sem saber a razão, tentou esquadrinhar R. com a mira da arma, no meio da multidão. Como seria bom tê-la aqui, comigo, minha querida... Não podia mais perder tempo, ele escoava célere. Eu te adoro... não a deixarei por nada!, exclamou para si mais, ansioso, o homem de aparência fria, ao localizar por sua mira telescópica uma jovem muito parecida com R., aplaudindo saltitante o presidente. Oswald voltou a si, esticou o pescoço, percebendo os primeiros carros contornarem a esquina. Devagar, a caravana foi se aprumando pela rua, entre os batedores. O público se manifestava; Oswald levantou seu instrumento e o assestou na direção do homem sentado no banco de trás do Lincoln presidencial. Enquadrou o alvo, a nuca do presidente. Num átimo, suas convicções foram postas em jogo, turbilhonando os ideais mais ou menos claros com o desejo lancinante pela bela R. Sacudiu então bruscamente a cabeça, como a afastar os pensamentos e assim poder se concentrar no serviço. Fez mira, sentindo o suor escorrer incomodamente pelo corpo, um, dois, três, apertou o gatilho, imaginou ter acertado o alvo. Ao preparar a arma para o segundo golpe, outros estampidos ecoaram pela rua. Oswald tentou entender o que acontecia, a cabeça do presidente sendo jogada para trás, alguém mais estava participando do ataque, alguém do pessoal do M. Sentiu o corpo estremecer nos parcos segundos em que perdeu a noção das coisas. Aquilo não estava nos planos, por que não o avisaram que haveria mais gente...? Não tinha M. confiado nele para o serviço? Dúvida que poderia desfazer mais tarde, no encontro que teriam para acertar as contas. Mas ir a este encontro não seria temerário, agora que lhe assaltava essa possível armação? Talvez fosse melhor cair fora. E R.? Não podia abandoná-la, nessa altura dos acontecimentos. Teria de ir ao cinema para encontrá-la, se é que ela estaria à sua espera. Um tanto atarantado pelos acontecimentos, sem saber exatamente o que fazer, Oswald abandonou a arma ao lado da janela e saiu às pressas da sala do sexto andar do Depósito de Livros.

O homem, que teve o filhote sendo observado havia pouco por Lee Oswald, percebeu o movimento ligeiro na janela do sexto andar do edifício no canto da praça Dealey. Na rua, a confusão era total: os carros aceleravam, as pessoas iam tomando consciência do ocorrido, reagiam como podiam, gritavam, choravam, corriam ou se agachavam, assustadas e transtornadas. Policiais começaram a vasculhar a área, procurando adivinhar de onde partiram os tiros. Houve quem acreditasse que se tratasse de explosões do escapamento de uma das motos que comboiavam o presidente. Sendo assim, no meio dessa confusão generalizada, ninguém daria crédito a esse pai que presenciara tudo, ou quase tudo e que, com o filho nos ombros, insistia em apontar para a janela suspeita, sem forças para pronunciar palavra. Abaixou o braço, olhando para as persianas semicerradas e o fundo escuro. Trouxe o filho ao chão, sem perder de vista a janela. Se pudesse uma aproximação, com uma hipotética objetiva, deslocando-se no sentido do objeto - um desejo que lhe tomou a mente graças a seus impulsos de cineasta amador - teria a janela cada vez mais próxima. Cortaria, então, para um plano com ela a umas cinco jardas, permitindo que a tensão criada fosse sendo substituída pela curiosidade instigadora. Daí, o 'travelling' em grua prosseguiria até adentrar a sala. Uma panorâmica lenta perscrutaria seu interior, desvelando os utensílios da cena: um pequeno espaço em primeiro plano, duas mesas com papéis esparramados no chão, uma espingarda Manlicher-Carcano com mira telescópica abandonada, uma cadeira contendo um toca-discos em funcionamento, estantes recheadas de pacotes, mais ao fundo uma porta entreaberta. Faria um 'close' destacando o toca-discos, a agulha sobre o disco em movimento, um 'zoom in' vagaroso, o ruído da rua substituído pelo som tocado no aparelho, depois um corte para um plano sobre o toca-discos, fazendo a aproximação gradual até um plano fechado do selo. O estalo surdo, a agulha escorregando ao final do disco e seu retorno automático ao repouso. Por fim, a imagem em 'close-up' do selo destacando o título da música: "Prelude to a kiss".

(Conto que integra o livro A paixão inútil, Ed. Patuá, São Paulo, 2019)



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