17 dezembro 2009

Mal o vejo


De onde estou, não consigo desvelar as faces dos passantes. Vejo-os caminhando, ora céleres, ora em grupos, vestidos de capotes nos dias frios ou munidos de guarda-chuvas nos dias chuvosos. Mas nenhuma referência de suas expressões, se estão felizes ou desanimados, indiferentes ou tensos. Em minha situação isso ajudaria muito a passar as horas intermináveis, que apenas se diluem para que outras as substituam. E assim aguardo os acontecimentos, voltado para o movimento externo, uma vez que há muito o movimento interno se resume às visitas do enfermeiro que me acompanha, uma logo pela manhã, quando me traz o desjejum e troca o recipiente cujo conteúdo me adentra pelas veias, e à tardezinha, quando me traz o jantar e me ajuda a deixar a janela para recolher-me ao leito. E é isso. Ultimamente, nenhuma palavra. Após a refeição, passo a compartilhar da brancura absoluta de meu quarto e de um ou outro ruído abafado produzido nas dependências do hospital. Por isso, minha ansiedade pela chegada da manhã, onde posso retomar o meu posto na janela e acompanhar o deslizar de pessoas, seis andares abaixo. Vendo-as, também posso imaginar suas vidas. Poderia me interessar pelo entorno, a paisagem bucólica do parque, sua paz e seus meandros verdejantes, seus pequenos animais silvestres, mas nesta reta final só me interessam os humanos. Talvez porque estejam numa distância segura e não façam ideia da minha existência, o importante é que os observo e os imagino. Poderia dizer que me divirto com isso, mas não é verdade. Sobretudo depois que conheci o senhor K., morador de um pequeno conjunto de sobrados, bem à direita do parque. Sei quando sai de casa, quando regressa, que é friorento e que nos fins de semana quentes gosta de passear com seu cãozinho beagle. Imagino que seja um homem amargurado, mas sereno diante das dificuldades, o que me faz pensar que seja a única pessoa com quem gostaria de trocar umas palavras. Hoje pela manhã, acompanhei seus passos regulares até entrada do parque, quando subitamente se deteve. Em circunstâncias normais seguiria pela alameda dos pinheiros, porém ficou ali parado, olhando para o chão, com as mãos nos bolsos. Um gorro cinzento o protegia da garoa fina, e nem o risco de se molhar o afastou daquele ponto. Permaneceu por um largo tempo dando pequenos volteios, desolado em sua indecisão.


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