11 dezembro 2009

Pueyrredón


Já havia me esquecido o quão distante localizava-se a Pueyrredón. Claro, isso depende do ponto espacial em que se toma a questão. Falo em relação à praça San Martin, ou da praça de Mayo, ou mesmo do Congresso. No final dos anos oitenta, na companhia dos meus amigos Klaus, Sérgio e Fred, percorríamos sem pestanejar qualquer distância até o San Agustín, nosso hotel na Pueyrredon, após horas desbravando a centralidade portenha. Nem metrô, nem táxi, era a pé mesmo, quinze, vinte quadras, de um lado para o outro, de um café a outro, de uma livraria a outra. À noite tirávamos para descansar, tomando una cerveza em algum lugar agradável, falando das peripécias, rindo de nada, antes de voltarmos ao San Agustín. Na portaria, um senhor bastante avançado na idade aguardava seus hóspedes, com um semblante de disfarçada desconfiança. Gusmán era seu nome, e logo o apelidamos de El viejo, el viejo Gusmán. Com seus movimentos pausados, dava acolhida a forasteiros extemporâneos como nós, sem abandonar o balcão centenário. A entrada do San Agustín era linda, bem preservada, a escadaria que fechava numa portaria ampla e acarpetada, tendo ao fundo um ascensor com capacidade para três ou quatro, de porta sanfonada, cujo fosso em estrutura metálica permitia acompanhar a passagem dos andares. O hotel tinha sido uma descoberta dos alemães Klaus e Fred, em algum manual de viagem alternativo que eles traziam, e caiu ao gosto dos quatro principalmente pela pechincha da diária e pela simpatia do pedaço. O importante era que estávamos num rincão livre de turistas, relativamente sossegado, e se necessário, a apenas três quadras do metrô.

Dois anos mais tarde regressei à cidade e optei novamente por ficar no San Agustín. Lá estava el viejo Gusmán, mais arquejado, com o semblante visivelmente mais enfastiado, o que não impediu que abrisse um belo sorriso de boas vindas. Guardara uma empatia comigo e abriu-se a contar histórias sobre seu passado, que se misturava com o da cidade, a vida noturna, histórias de Gardel e de Perón, da seleção argentina de Rattin, na Copa de 1966 e das lutas de Oscar Bonavena e Carlos Monzón no Luna Park, anos mais tarde. A surpresa foi ele me oferecer o mesmo quarto da estada anterior. Sua jornada de trabalho tinha mudado para o dia, por causa da saúde, de modo que eu fechava as noites no soturno Café La Aurora, com seu ar vetusto e marginal, de iluminação débil e saborosas medialunas. O atendimento era aceitável e a tranquilidade também, de modo que permanecia ali, tomando meu café cortado e escrevendo sobre as caminhadas diárias, acariciado pelas sobras do vento que chegava mansamente do Prata. A região já apresentava certa decadência, sobretudo no quarteirão além da praça Miserere, cujos prédios estavam mais para cenários de terror, escuros, malcuidados, ocupados por migrantes pobres pela absoluta falta de interesse do mercado imobiliário. Foi meu último contato com a Pueyrredón e com o San Agustín, até dias atrás.

Como disse, havia me esquecido o quão distante estava a Pueyrredón e constataria o quão desinteressante tinha ficado. Cruzando a Callao, foram dez quadras percorridas com ansiedade crescente, sob um dia chuvoso, sem graça. Eu tinha perdido todas as referências da região, de modo que andava por um caminho que parecia absolutamente desconhecido. Uma a uma as travessas se sucediam, Ayacucho... Junin... Larrea, por fim Pueyrredón, cruzamento com a Corrientes e fiz o contorno esperado para a esquerda, mais quatro quadras até a praça Miserere. Nada que estimulasse um passeio de recordação, em uma tarde de jornada pesada para tantos mochileiros. A Pueyrredón transformara-se no epicentro de uma região de compras populares, gente como formigas alucinadas, sedentas pelo açúcar, que circulavam pelas calçadas com pressa incomum, carregando sacolas cheias, em carrinhos, nas mãos, a escapar felizes com o butim. Tinham pressa porque desejavam chegar às villas antes do anoitecer. Eu me esquivava, tentando me concentrar no espaço ao redor, bastante deteriorado, e o que é pior, ruidoso como nunca. Como um náufrago, tentava me apegar à presença do velho San Agustín, modificado, retalhado, transformado em pensão popular. O elevador estava inutilizado e o atendente com um cigarrinho no canto da boca não soube me informar de nenhum viejo Gusmán. Em frente, o lugar que me pareceu ser o do Café La Aurora estava bloqueado por tapumes, indicando futura demolição.

A poucos passos, igualmente a Miserere abarrotada, pessoas agitadas, ansiosas, mais carregadas, mais atrasadas... Por mais que não desejasse, eu atrapalhava o caudaloso frenesi: avançava, recuava, desviava de um carrinho para bloquear outro, tropeçava em um e esbarrava em outro, feito um bêbado. Dei-me conta do ruído intenso vindo do interior tapumes, das obras do metrô na praça, no passar dos coletivos, então saltei para a rua e foram os automóveis que começaram a me instigar sem trégua, empurrando-me de volta à calçada, que me regurgitava, transformando-me em incauto visitante, sem eira nem beira... Não só perdera meu reduto alternativo, como era pressionado a sair dali. A mobilidade pós-moderna se instalava e seduzia, imobilizando as pessoas em sua armadilha predileta, a ciranda mercantil com suas quinquilharias descartáveis. Tornara-se um lugar que não acolhia mais recordações, um não-lugar apropriado à circulação de bens e interesses. Avancei desacorçoado, no rumo oposto à Miserere, ao San Agustín e ao La Aurora, a mergulhar no universo de ruas desconhecidas, úmidas, que se esvaziavam progressivamente. Terminei por não me despedir da Pueyrredón, afastando-me com um longo e desventurado suspiro.


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