09 novembro 2009

Berlim

A porta de Brandemburgo, em algum momento antes de 1989


Lembro-me que o lançamento de Asas do Desejo, na Mostra de Cinema de SP (creio que em 1987) foi incrivelmente concorrida. Em uma das apresentações, mesmo chegando cedo na antiga Cinemateca (na Fradique Coutinho) a fila era imensa. Pude ver o filme logo depois, quando entrou em circuito comercial, e saí do cinema profundamente impressionado. Confesso que por dias não pensei em outra coisa senão naqueles anjos, em Peter Falk, na bela Marion... Fui absorvido pela força das personagens, pela beleza do roteiro, pelas cicatrizes da cidade retalhada e sobretudo, pelo complexo universo de situações singelas, que permeiam a narrativa. Malgrado meus esforços em escrever um ensaio sobre o filme de Wenders (em minha opinião, seu ápice cinematográfico) nunca consegui constituir uma abordagem decente, que pudesse dar a dimensão de meu encantamento pela obra.

Menos de dois anos depois, em fins de junho de 1989, desembarquei em Berlim. Solitário, em uma manhã cinzenta, o trem passando por cercas e postos de vigia. Estava um bocado inseguro, afinal adentrava uma cidade cuja universo simbólico era pautado por histórias de suspeições, espionagens, mortes, e adequadamente oculto por um... muro. Eram seis horas da manhã quando deixei minha bagagem na estação. Tateei às cegas pelas redondezas até sentar-me diante das vidraças do Café Haussner, olhando os primeiros movimentos do dia. A chuva caia torrencialmente e nada em Berlim me lembrava o universo simbólico atemorizante, muito menos a magia do filme de Wenders. Sobrepunha-se um sentimento de frustração por estar em uma cidade com tantos atrativos e completamente imobilizado por um componente inesperado, o mau tempo.

Aos poucos, porém, o dia limpou até surgir o sol de verão. Lancei-me pelas ruas da cidade, atravessei o Tiergarten e alcancei a 17 Juni, que compõe o eixo leste-oeste com a Unter dem Linden. Na época, o trajeto era interrompido pelo muro, defronte ao portão de Brandemburg. Contornei o muro até o Reichstag, que então era um museu de história alemã. Cheguei às margens do Spree e daí iniciei o regresso à estação. Estava em um périplo pela Europa e África que duraria quase três meses, e acreditava que poderia tomar um rápido contato com a cidade, para mais tarde realizar uma visita completa.

Embora grotesco, nada naquele momento indicava (aos olhos incautos) que o muro estivesse com os dias contados. Era sem dúvida uma afronta que não se explicava, apenas se impunha, como resultado da imponderável razão humana. Registrei em minhas anotações o sentimento de tristeza e impotência que perpassava os olhares das pessoas que o topavam.
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Retornaria após um ano e meio, já com a cidade sem muros. Era início de primavera, dias frios e encobertos. Desta feita ficaria cinco dias na cidade, circulando livremente por todos seus espaços vazios. Não sobrara nada da outrora importância geopolítica, o mundo tinha se transformado. Foi então que pude, sem dificuldades, recuperar a magia do filme que me marcara.


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