20 dezembro 2009

Um fato inesperado


Apareceram furtivamente e disseram que me levariam detido. Foram lacônicos, A partir de agora você está à disposição da justiça. Cheguei a ensaiar uma argumentação em minha defesa, mas sucumbi diante da apresentação do meu crime: não consumia nada havia dois dias, o que era contra a lei.
O homem mais baixo até que procurou ser polido em suas poucas palavras, Não se aflija, com um bom advogado e alguma sorte você se safa dessa. Franziu o cenho e acrescentou, Bem, você sabe, vai depender do andamento das coisas... deixando vago o que queria dizer. O mais alto manteve sempre um silêncio intrigante, dando às vezes a nítida impressão de que saboreava a situação. Lembro que vestiam ternos negros e mesmo dentro de casa, prosseguiam portando seus chapéus e os óculos escuros. Apresentaram-se com o mesmo nome, João, o que produzia uma pequena artimanha, pois não havendo como identificá-los, evitavam convocações para o tribunal. Não demonstravam pressa: o grande sentou-se numa poltrona, após ir à cozinha e trazer um copo de água, abriu sua maleta e retirou um computador portátil, onde passou a preencher formulários virtuais, completando informes sobre minha apreensão. Eu quis saber se teria uma cópia daqueles registros, ao que ele apenas se limitou a erguer a mão esquerda, como a dizer Quieto! Começou com as perguntas, o número de cartão de crédito, nomes das lojas de eletrodomésticos que eu freqüentara nos últimos dois meses, o preço de um Atza 366 Ford, modelo convencional, se eu costumava comprar pipocas antes de uma sessão de cinema, quantos tipos de comida para cães eu conhecia... O mais baixo, ao meu lado, acompanhava o interrogatório com um ar enfastiado, mastigando amendoins. `A minha proposta para que se servisse de uma cerveja, disse-me polidamente que não bebia em serviço. Perguntei então se eu poderia me servir de uma latinha, ao que me respondeu, Talvez não seja apropriado, Joseph. Eu sabia que a lei era severa com quem não adquirisse bens de consumo durante um certo tempo, mas dois dias!? Tentei argumentar sobre minha situação financeira e outra vez o grandão levantou a mão, desta vez demonstrando o semblante menos zangado, e prosseguiu a digitação com um único dedo, o indicador da mão direita. Foi um trabalho que levou um quarto de hora. O pequeno levantou-se e me perguntou onde havia uma maleta, queria adiantar as coisas separando umas roupas e acessórios de higiene pessoal. Ao cabo das perguntas, permitiram-me ajustar os terminais domésticos, programando-os para as tarefas diárias: limpeza dos carpetes, degelo do congelador, alimentação dos cães. Nesse meio tempo, o pequeno gravou uma mensagem oficial sobre minha detenção na secretária eletrônica. Quando pareceu tudo pronto, ele amenizou seu papel de policial, dando-me o direito para dois contatos eletrônicos. Pensei um instante e liguei para Helena, dizendo-lhe que me ausentaria por uns tempos. Como não tinha advogado e mais ninguém interessante para falar, abri mão do segundo contato.
Passamos a esperar pelo grandão. Entramos num momento morno, de pouca movimentação e nenhum desejo especial. Fiz um derradeiro esforço assertivo, Rapazes, estou desempregado há dois meses e..., ao que o grandão cortou-me outra vez levantando a mão, Não existe jurisprudência em seu caso!, acrescentou e fechou o seu notebook. Tentei entender essa questão de jurisprudência, enquanto o pequeno deixava escapar um sorrisinho sinistro. Então vamos!, pediu-me o grande, sem interesse em prosseguir no debate. Colocaram-me a argola platinada no pescoço, com a qual me tornei definitivamente um prisioneiro e dirigimo-nos à viatura. Já na calçada, manifestei o desejo de levar o mp3. Esqueça Joseph, acabaram-se as suas prerrogativas!, esgrimiu ainda uma vez o maior deles, em seu saber jurídico dispensável.
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