30 dezembro 2022

Pelé


Como narrava Walter Abrão, "Ele"

São palavras breves, que tentam fazer justiça ao que ele representou ao longo da minha vida. Nos últimos anos, esteve muito ausente de meus pensamentos, no alto de um panteão esquecido e pouco frequentado. Creio que ele mesmo optou pelo silêncio, pelo distanciamento da mídia, de modo que sua vejo-o realizando serenamente uma passagem, de um lugar para outro, com a discrição que sempre o marcou. Minha lembrança, digo melhor, minha homenagem, se remete aos anos 1960, não ao início de sua carreira ou ao final, mas os anos intermediários, quando meu pai, apreciador do bom futebol, gostava de me levar aos estádios para ver não apenas o seu São Paulo, mas um bom clássico. 

Foi desse modo que conheci e visitei por muitas vezes o Morumbi, o Pacaembu, o Parque Antártica, para ver um jogo do Santos contra algum outro grande. Meu pai fazia parte do ritual que se reproduzia a cada fim de semana. Havia aí uma conjunção maravilhosa: ir em sua companhia e desvelar por minha conta os segredos do uniforme branco que recobria aqueles artistas, mas principalmente os magos negros como o carvão, Coutinho, Dorval, ele, Lima, Mengálvio, Edu... A uns pude ver mais que a outros, a agilidade inata com a bola, as manobras exuberantes em campo, os gols maravilhosos eram a pedra de toque para minhas narrativas do dia seguinte, na escola.  

Mas tudo acontecia de modo simultâneo: na época do tabu contra o Corinthians, acompanhei muitos jogos pelo radinho de pilha, imaginando os lances narrados por Fiori Gigliotti. Recordo-me de uma noite em especial, quando seu gol decisivo impediu a derrota, e aquilo me bastou, adormeci como uma criança feliz, tocada pela façanha do ídolo. Nos domingos, normalmente a cobertura esportiva acompanhava os grandes times da capital, mas durante as transmissões, era comum o locutor destacado para a Vila Belmiro abrir seu microfone repentinamente, tendo ao fundo o alarido da torcida e os rojões explodindo. Era magnífico, já sabíamos que tinha sido um gol do time alvinegro. Em seguida, vinha a descrição do gol, ainda sob o júbilo do público, muitos deles feitos pelo genial número 10. 

Submetia-me por igual à sucessão de registros dos vídeo-tapes, onde se capturava para a posteridade a elegância de sua magia ao driblar os adversários. Foram estas cenas, ouvidas pelo rádio ou assistidas ao vivo ou pela TV, que iluminaram minha infância e adolescência. Havia uma tal grandeza naquelas camisas brancas de pele negra, que os corpos mortais tornavam-se sagrados, transformados em super-heróis, capazes de encantar o meu imaginário com jogadas ainda mais espetaculares, concedendo-me a partilha do néctar de cada conquista, ou mesmo do fel de cada derrota. 

Antes de Disney, de Julio Verne ou do Nacional Kid, foi ele (com os demais magos do time) quem me inebriou com seus movimentos e me fez descobrir da forma mais prazerosa o quão era, para um garoto, deixar-se levar pelo magnetismo da criatividade sem fim. Ao testemunhar sua exuberância com a bola, eu alcançava uma espécie de felicidade juvenil que em sua duração, era capaz de camuflar as tristezas do cotidiano. Essa alegria ambígua do espírito me permitiu aos poucos compreender e distinguir o mundo como um lugar complexo, erigido entre as quimeras da imaginação e os desenganos da realidade cotidiana.

(atualizado em 30.12.2022)



28 dezembro 2022

O longo pesadelo que se encerra


La navidad de Juanito Laguna,
por Antonio Berni (1962)

O final do ano se aproxima a passos miúdos. Três dias nos separam da retomada da democracia, da restituição dos direitos dos povos originários, da recuperação da floresta amazônica, de mais investimentos na cultura, saúde, educação... Como é difícil desgarrarmos dessa tragédia que nos afligiu e nos prostrou por longos quatro anos! A violência que se manifesta nestes dias, nas ruas de Brasília, nada mais é do que a confirmação da derrota pelos derrotados, um estrebuchar sem pé nem cabeça, que se desvanecerá com a restituição da democracia. Corrijo meus textos sem pressa e bebo um saboroso cálice de bom vinho português. Espanto o mau-agouro para bem longe e permito minha alma festejar!

Faltam meros três dias para que o infortúnio bolsonarista deixe o poder para se tornar página virada da história - algo que o povo brasileiro não tem como evitar. Haverá de desaparecer, e não tinha sequer ter começado. Tenho um sonho, que os novos ventos o varram para bem longe, para nunca mais! Como não acredito em justiça plena, nesses casos de desgovernos que caem, não creio que a parte robusta da canalha, responsável por tantas mazelas ao povo brasileiro, seja devidamente responsabilizada e punida pela lei. De algum modo saberá ludibriá-la, com o apoio de uma governabilidade que se restabelece para o bem comum. Faltam três dias para quebrarmos o feitiço.

Um Viva ao nosso Brasil, ao nosso povo que bem ou mal soube recuperar as rédeas, malgrado todas as dificuldades, todos os artifícios viciados, não impediram que o longo pesadelo se acabasse. Um Viva a todos nós!!



12 dezembro 2022

Sobre o novo romance


Pintura sobre paisagem da place du Tertre

Enviei à editora o meu romance, Um longo dia na vida de Ângelo Domani, inteiramente revisado. Conforme o cronograma da Caminhos Literários, devemos avançar na edição da capa e da diagramação interna e começar a divulgação da pré-venda. Se tudo sair como imagino, em janeiro fazemos o lançamento. O trabalho foi cuidadoso (não considero aqui os mais de vinte anos de preparação) e repassei cada capítulo do texto, culminando com muitos detalhes e algumas incongruências narrativas corrigidas. Os detalhes, como sempre, de ordem semântica e sintática. As incongruências, elas diziam respeito à sincronia do movimento da Domani, bem como a eliminação de pequenas falhas estruturais. 

Por exemplo, em dado momento, o sol escaldante da jornada é substituído por uma chuva que vai e vem. Essa evolução não estava bem definida cronologicamente, o personagem acusava a presença da chuva e mais adiante, repetia as reflexões sobre a chuva. Também no início do romance, o tempo de espera na rodoviária e, mais adiante, a descrição da paisagem matinal, foram reorganizados, no primeiro caso, ajustando o encontro entre o velho de chapéu e Domani, logo no desembarque de ambos, e no segundo caso, alinhando a reflexão subjetiva com a percepção da cidade e o surgimento dos trabalhadores.

No capítulo 21 pequenos acertos na descrição dos personagens na doceria. A derradeira correção mais séria foi eliminar a ambiguidade do evento que ocorreria à noite. No texto original, seria um show de uma dupla sertaneja. Isso tinha sido parcialmente corrigido, com a eliminação da dupla, o que deu à montagem do palanque um certo ar de mistério. O problema é que ainda havia resquícios da presença da dupla no final do capítulo 26, na conversa entre Domani e Maria Eduarda. Daí para frente o romance não tinha problemas, o texto estava bem-acabado, fruto das seguidas correções realizadas recentemente. Sempre estive preocupado com a finalização do romance, por isso as longas releituras para definir a melhor conclusão da história. Aguardo agora, feliz, o prosseguimento da edição e publicação.



09 dezembro 2022

Orson Welles


Orson Welles (1915-1985)

Naquele momento, nada me dava mais satisfação do que retornar, quase diariamente, ao cine Belas Artes, para rever um filme do qual sabia apenas de sua fama, e que aparecia em cópia nova. Queria compreender, com meu próprio esforço, a razão pela qual Cidadão Kane era considerado o filme mais bem realizado, digamos assim, do mundo. O que, em sua feitura, o transformava na mais impactante direção para nove entre dez críticos de cinema. As razões não deixavam de se acumular, à medida em que via e revia a película, mas o mais importante em mim foi a aura que o filme produziu. A cada cena, eu avaliava a profusão de impressões que ela própria revelava, tudo simultaneamente, como Welles havia imaginado a narrativa, o que o fazia optar por aquela tomada e não outra, de que modo havia chegado às inovadoras resoluções do som, como havia chegado a Gregg Toland para a fotografia, por exemplo. 

Muito tempo depois, no livro de entrevistas com Peter Bogdanovich, Welles conta do acaso dessa escolha: "(...) um dia o encontrei sentado na sala de espera de meu escritório, Meu nome é Toland, ele disse, e quero que me use em seu filme". Só mesmo um diretor com a abertura e a ousadia de Orson Welles para apostar em alguém que se oferecia assim para um trabalho tão importante. Welles vinha do teatro e sua experiência estava toda aí, do roteiro à iluminação, passando pela marcação dos atores. Para fazer algo genial, é preciso estar disposto a aprender, e foi o que aconteceu na interação entre Gregg e Welles. 

Em muitos momentos das conversas com Bogdanovich, e que de certo modo ocorreu dez anos antes, na entrevista com André Bazin, Welles simplesmente desmistifica certas decisões que tomou, como a mostrar os tetos dos espaços interiores, "sou da opinião de que a câmera deve mostrar aquilo que os olhos veem normalmente quando olham para alguma coisa", ou o uso da câmera baixa, "Não sei por quê. Talvez porque eu ache que o filme fica melhor com a câmera ali embaixo. Só isso". Seja como for, o brilho desses arranjos, mais a mística criada em torno de seu nome, fez com que eu voltasse ao menos meia dúzia de vezes ao cinema, para ver o filme. Naquela época, saía do emprego depois do almoço e tinha toda a tarde para desfrutar as experiências culturais na região da Paulista, de modo que não tinha pressa, nem método, era um puro deleite pessoal. 

Não deixava escapar as leituras rápidas, em matérias de jornais e revistas, sobre o diretor estadunidense, além de não mais perder seus filmes, ou suas proezas realizadas. Pouco depois tive acesso à reprodução completa de sua peça radiofônica, A Guerra dos Mundos, na rádio USP, em comemoração aos cinquenta anos do evento. Preparei-me para gravar a reprodução e ainda hoje tenho esse raro testemunho. E não deixava de me emocionar com as oportunidades: dois ou três anos mais tarde, vi em Paris, pela primeira vez, O Terceiro Homem, de Carol Reed, cuja participação de Welles se resume a poucos minutos, que se tornam mágicos por sua atuação esquiva, em que contribui seu ar misterioso captado em P&B, em uma Viena destruída pela guerra. 

Fui um felizardo em poder admirar Orson Welles quando ainda vivo e acompanhar o desfecho de sua obra. Penso que sua genialidade estava na forma de lidar com as coisas. Diante das dificuldades, sabia como improvisar. Seu Otelo e seu Macbeth são peças levadas ao cinema com grande competência. De acordo com Bazin, "Em Otelo, o artifício está a céu aberto e é recriado a partir de uma matéria inteiramente natural. Graças à montagem ofegante e cortada, aos ângulos de filmagem (que dão ao olho e ao espírito a possibilidade de ligar no espaço os elementos do cenário), Welles inventa a partir das pedras de Veneza ou de Mogador (no Marrocos, onde realizou a maior parte das tomadas), uma arquitetura dramática imaginária, (...) ornada de todas as belezas previstas e casuais que só se podem encontrar na verdadeira arquitetura da pedra natural, trabalhada por séculos de vento e de sol". 

Quando vi sua versão de "O processo", de Kafka, fiquei verdadeiramente impressionado e até hoje não consigo separar as imagens fílmicas de Welles com as imagens que faço da leitura de Kafka. A última experiência fílmica com Welles ocorreu na pandemia, em casa, quando assisti The Stranger, O Estranho, de 1945, com a participação de outro ícone do cinema estadunidense, o ator Edward G. Robinson, no papel de um fugitivo nazista. O episódio dos sinos da igreja do lugarejo me inspirou em uma passagem de meu romance recém-concluído e prestes a ser publicado.


Welles como Quinlan, em A marca da maldade



03 dezembro 2022

Sobre o processo civilizatório



O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja.

Darcy Ribeiro.


Parece que essa tormentosa noite vai se dissipando aos poucos, e o país recompõe o equilíbrio civilizatório. O ex-capitão não se digna a terminar decentemente com seu desgoverno, mantendo-se omisso na vida política. Lula e sua equipe de transição faz das tripas coração para dar uma ordenação razoável ao descalabro produzido nesses quatro anos. Persiste, em minha visão de estudioso social, o enigma da atração que o crápula e seus aliados edificaram junto a grandes parcelas da população, a ponto de alcançar quase metade dos votos válidos. 

Bem verdade que muitos artifícios desleais e ilegais foram cometidos, como a liberação do empréstimo consignado, as novas parcelas de última hora do auxílio emergencial, os bloqueios mal explicados da Polícia Rodoviária Federal no dia das eleições, concentrados no Nordeste do país, além do tal orçamento secreto, onde grandes dotações foram carreadas para as prefeituras aliadas, sem uma rubrica definida de utilização. Uma farra com o dinheiro público, que se juntou à chantagem empresarial de patrões bolsonaristas junto a seus empregados, na coerção por votos. Qualquer outro candidato da esquerda teria sido impiedosamente derrotado, como foi Haddad em 2018. Penetraríamos mais fundo na noite trevosa, sem qualquer esperança de retomarmos o processo civilizatório em seu estatuto mais humanitários. 

Em outras palavras, a depravação estaria institucionalizada, para se alcançar os fins que o ex-capitão e seus filhotes amestrados projetaram no início desse pesadelo, a destruição para depois reconstruir. Sabemos hoje em que bases se daria essa reconstrução, ou antes, essa continuidade destrutiva. Lula resistiu e nos conduziu à vitória, ao reencontro da cidadania. Alinhados a ele, a importante atuação da militância petista, o papel político desempenhado por Simone Tebet e das forças democráticas suprapartidárias, a atuação imprescindível de youtubers, influencers, comunicadores das redes sociais, que conseguiram contrabalançar a força do discurso da direita. Como disse em algum momento, foi a nossa Estalingrado, e na luta sem quartel, venceu a esperança, a educação, a diversidade, a justiça, a dignidade. 

Podemos anunciar que temos futuro para as novas gerações, e que este foi o momento supremo de sua reconstrução.



29 novembro 2022

Uma poesia - García Montero

 

Luis García Montero e Almudena Grandes


CONFESIONES


Yo te estaba esperando.

Más allá del invierno, en el cincuenta y ocho,
de la letra sin pulso y el verano
de mi primera carta,
por los pasillos lentos y el examen,
a través de los libros, de las tardes de fútbol,
de la flor que no quiso convertirse en almohada,
más allá del muchacho obligado a la luna,
por debajo de todo lo que amé,
yo te estaba esperando.

Yo te estoy esperando.

Por detrás de las noches y las calles,
de las hojas pisadas
y de las obras públicas
y de los comentarios de la gente,
por encima de todo lo que soy,
de algunos restaurantes a los que ya no vamos,
con más prisa que el tiempo que me huye,
más cerca de la luz y de la tierra,
yo te estoy esperando.

Y seguiré esperando.

Como los amarillos del otoño,
todavía palabra de amor ante el silencio,
cuando la piel se apague,
cuando el amor se abrace con la muerte
y se pongan mas serias nuestras fotografías,
sobre el acantilado del recuerdo,
después que mi memoria se convierta en arena,
por detrás de la última mentira,
yo seguiré esperando.

oo

(por Luis García Montero)



19 novembro 2022

As benesses de um tempo bondoso


Moniquinha e o mar

O mar fazia de suas ondas um ir e vir contínuo, que se esparramava pela areia ao longo da praia, enquanto deambulávamos felizes, conversando sobre política brasileira, os novos tempos vindouros, novos horizontes de esperança. Olhávamos para a beleza do encontro ao longe, entre o mar revolto e o céu encoberto marcado por intermitências azuis, e confirmávamos silenciosamente os encantos da curvatura da Terra, agora uma vez mais soberana, sepultando o rumor dos desalmados. O areal quase deserto, aqui e ali os pais com suas crianças brincando expansivas. Observávamos as ilhotas pelo caminho, erguendo-se frondosas, impassíveis, pontilhando a paisagem em meio a seus mistérios rochosos. Do lado oposto, a imponência da mata atlântica adensada, sublime, sobre o relevo montanhoso. Acompanhávamos as embarcações ao longe, deleitados no prazer do momento. Tínhamos as mãos dadas, como um apoio seguro para todas as calmarias e tormentas futuras. O vento não cansava de nos acariciar as faces, em sintonia com a temperatura amena que dispensava mais cuidados com a pele, bastavam nossos bonés, o dela com o tom azulado e a palavra Montevideo, o meu vermelho com o símbolo do MST, era tempo de exibirmos o que fosse, com liberdade e confiança. A água do mar nos alcançava e girava em torno dos nossos pés, que afundavam na areia fofa, e ali permanecíamos fincados, abraçados. E sorríamos. Nem pensar para onde ir e quando regressar. E imaginávamos. Recuperar o tempo perdido, e reverberar solenemente. Respirávamos a plenos pulmões o ar da democracia restabelecida, naquele rincão cinzento, inquieto, em sintonia com os pensamentos. Cada passo nos enveredava para as brechas de um futuro imerso em grandes desafios, não havia coisa mais adorável do que acreditar em um mundo melhor, nas andanças à beira-mar.




10 novembro 2022

Um dia após outro


O presidente eleito Lula


A vitória de Lula se consolida aos poucos, irradiando do campo da esquerda, passando pelo centro e alcançando parcelas renitentes da direita, que de algum modo silenciam sem tolerá-lo. Me parece natural que seja assim, primeiro não se constitui unanimidade nas democracias, e depois, as manifestações legítimas que ultrapassem seus limites terão a pena da lei para demovê-las. Assim é. Lula não tem ilusão de que encontrará resistência ao seu governo, mas está determinado – como fez nos dois governos seus anteriores – que terá de governar para todos, com ênfase para as classes menos favorecidas. Ontem foi recebido pelas instituições brasileiras que foram escorraçadas pelo ex-capitão que ocupou a cadeira da presidência, o STF, a Câmara e o Senado, nestas duas últimas, recebido pelos respectivos presidentes. Sem rancor, sem mágoa, promovendo o que parecia uma ficção neste país, o diálogo franco. As imagens são belas, a mesa em que se reuniram os ministros do supremo ao seu lado, os registros fotográficos junto a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, para terminar com a entrevista do lado de fora da Câmara e do Senado, sob o lindo pôr do dia em Brasília.

A despeito dos alucinados bloqueios que ainda pipocam aqui e ali pelo país, reunindo um punhado de radicais embandeirados, a cada dia respira-se mais tranquilidade, mais confiança, mais democracia. Sucumbem na escuridão das noites a violência, a intolerância, a mentira, para ressurgir com mais força, na aurora de cada manhã, a serenidade, a solidariedade, a verdade dos fatos. Desaparece como o hálito ao vento as ameaças tresloucadas, imponderáveis. Tenho de acreditar que a sintonia acolhedora que perpassa os meios de comunicação hegemônicos, sem mais aquele tom agressivo dos editoriais ameaçadores; no cumprimento preciso da letra da constituição, sem firulas ou subterfúgios interpretativos, pelas instituições republicanas; na capacidade produtiva e evolutiva dos empresários de boa-fé, preocupados com os desígnios do país; na disposição inesgotável da grande massa de trabalhadores, sempre disposta aos mais desafiadores esforços, e para quem esse governo voltará seus olhos com redobrada atenção. 

Resta acreditar e lutar por esta perspectiva sincera, que se esboça no presente construa os caminhos para o futuro, sob uma saudável catarse positiva, cujo alinhamento nos permita retomar os valores de uma nação, e nos catapulte de volta ao estágio do bem-estar social que, um dia, lá atrás, desfrutávamos com alguma sabedoria e muito gosto.

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Ontem, a morte de Gal Costa e de Rolando Boldrin. Gal desaparece antes da hora, meros 77 anos e muita energia para nos contagiar. Ela, como Gil, Caetano, Bethânia, Chico, Milton, fez parte da minha vida, ou seja, nunca imaginei minha existência sem a presença de cada um deles, pela força de suas canções, pela beleza de seus movimentos. Boldrin tinha 86 anos, muita sabedoria para declamar em seus programas sobre o sertanejo brasileiro, essa cultura menosprezada, que se arraiga por todo o interior do Brasil, combinando características comuns entre povos do Nordeste, do Centro-Sul e da Amazônia. Uma jornada que combinou tristeza e esperança.



31 outubro 2022

Vitória!


Foi custoso, mas a democracia venceu


Foi um mês de outubro difícil, de sonos turbulentos e intensa atividade mental e coletiva, que resultou na espetacular vitória de ontem, conquistada a ferro e fogo, pela forte participação da militância do PT, ressurgindo das cinzas, e pelo contraponto sustentado nas redes sociais, o que foi um importante aprendizado. O Nordeste brasileiro foi mais uma vez o baluarte da vitória. Dentre outras constatações, sua gente maravilhosa mostrou que as pessoas têm caráter e memória sim. E que não são compradas apenas por uns tostões, ou pela degenerescência da fé. E, não menos importante, demonstrou que não é pelo massacre de fake news que se muda de opinião. 

Foram mais de dois milhões e cem mil votos de diferença. Em relação ao resultado do primeiro turno, Lula somou algo mais de três milhões de votos, precisava acrescentar dois milhões para vencer. Tudo se deu com grande dificuldade, embora de modo consistente: esperava-se um início de apuração com resultados ruins e mais adiante, a virada, patrocinada pelos votos do Nordeste, em algum momento a partir dos 50% de urnas conferidas. E ocorreu às 18h45, quando já nos aproximávamos de 70% de urnas escrutadas. A partir daí, as curvas foram lentamente se separando, até que Lula alcançasse os 50,84% dos votos válidos, ou precisamente 60.345.999 de votos em todo o Brasil. 

Também foi no finalzinho das apurações em Minas Gerais que se consolidou a escrita das eleições no Brasil, ou seja, quem vence no Estado leva as eleições presidenciais. A vitória veio na undécima hora, por 50,2% a 49,8%. Foi principalmente no norte do Estado e na zona da Mata que Lula sacramentou a virada. 

Ao final, fomos até a avenida Paulista comemorar o feito, de tão significativa importância para o Brasil. Um feito inesquecível de Lula, que o coloca no patamar dos grandes líderes mundiais. Teremos quatro anos de vida cívica sem o patrocínio do ódio, do desprezo, da violência; teremos o retorno dos programas sociais, do investimento em pesquisa, do apoio à produção cultural. Quanto à canalha que desgovernou este país, reconduzindo-nos ao descalabro da fome estrutural, terá de responder pelos crimes e omissões cometidos, a começar pelo assassinato de centenas de milhares de pessoas durante a pandemia da Covid-19. 

Se soubermos aprofundar as virtudes da governabilidade democrática, esse bando de irresponsáveis não passará de uma fugaz e infeliz lembrança de nossa história, e jamais retornará.

   


27 outubro 2022

Horizonte de expectativas


Cartaz de The Magnificent Seven


São dias de expectativa e angústia. E muito ruidosos na superfície, e com movimentações sinuosas nos subterrâneos. Seria o desdobramento dos combates em nossa Estalingrado (ou poderia dizer, de nossa Varsóvia, referente ao levante de 1944), com um inimigo implacável, que já não avança, que não assusta nem surpreende por sua brutalidade, que ainda assim segue com seu rastro de destruição. Um inimigo, essa é a pura definição de quem enfrentamos, nós, os que defendemos o Estado democrático de direito com todas suas instituições, que mesmo carcomidas por suas deficiências atávicas, preservam o estatuto da vida em sociedade. 

Porém, a minha impressão romantizada dessa luta sem quartel ao aproximar a visão das coisas com o embate épico de Estalingrado (ou Varsóvia) não está de acordo com a realidade. Com o passar dos dias, esse enfrentamento mais se assemelha ao tiroteio sujo que ocorreu em The Magnificent Seven (Sete homens e um destino) em que sete aventurosos pistoleiros tentam expulsar de uma pequena aldeia mexicana um grupo de bandidos, sob o domínio de um tal Calvera. Imbuídos pelo senso de justiça, os dois amigos, Chris e Vin, arrebanham outros cinco sujeitos para expulsar os delinquentes, que pretendem seguir na extorsão dos habitantes do vilarejo. A disputa simbólica culmina com a vitória da cidadezinha, que ao fim e ao cabo participa na expulsão do bando criminoso.  

Como comentei antes, poderíamos situar nossa situação presente no embate entre os defensores de Canudos, sob o mando de Antonio Conselheiro, e o exército brasileiro, retomando a narrativa épica de Euclides: a luta feroz no sertão, entre a determinação do sertanejo que dispõe de um sonho comunal e utópico, e a virulência de uma sucessão de batalhões de jovens conscritos, bafejados por uma ideologia racial de superioridade contra os "fanáticos jagunços". Conforme Consuelo Novais Sampaio em seu estupendo trabalho, Canudos, cartas para o barão, "A vitória final das forças legalistas, contra uma comunidade sertaneja que não se rendeu, foi efusivamente comemorada pelas classes dominantes". E mais adiante, "A defesa da propriedade fundiária estava no grito de luta que uniu todos os setores das classes dominantes na guerra contra Canudos". O problema aqui se coloca no drama épico, que supera de longe em consistência e significação a barbárie rasa, maculada por discursos religiosos e valores patrióticos chulos em que hoje estamos metidos.

Não há lei expressa no transcurso desses enfrentamentos acima descritos, nem sequer dignidade humanitária. Há uma sucessão de ataques contra o inimigo, bandeiras de um lado e de outro, a refrega levada ao extremo, com o sacrifício dos que se atrevem a lutar, para ao final, sobrevir uma paz ruinosa, em que uma das partes suplanta a dor e se estabelece. Se o nosso lado abarca um amplo arco representativo de valores da sociedade laica, trabalhadora e democrática, o moedor de carne das disputas nas redes digitais, o palavrório dos argumentos nas ruas, a irredutibilidade de um lado, forjado na fake news, cada vez mais acuado e sem abertura para o debate cidadão, fazem com que nosso senso de cidadania se perca nos meandros de infindável grosseria disseminada pelo inimigo a ser derrotado. Muitos assemelharão esse inimigo ao fascismo, eu tendo a crer que ele é uma conjunção de protofascismo, que vai de salteadores a criminosos, tendo Calvera como princípio e Dirlewanger com fim.

A questão que sobrevém: como restabelecermos - porque ao que indicam as pesquisas sairemos vencedores nas urnas - a integração, o bem-estar cívico da nação após 30 de outubro? Qual será o preço a pagar por tanto martírio causado por um grupo de dirigentes inconsequentes, que mobilizaram quase metade da população para se armarem, para aceitarem o ódio, para encamparem os privilégios do patrão e a adoração aos falsos profetas? Já não lutamos em nome de uma ideologia, praticamente abjuramos de nossas posições políticas históricas, para compor uma frente aparentemente coesa, sob um objetivo único - derrotar o dragão da maldade. Uma frente que, ao fim e ao cabo, em meio às ruínas fumegantes da manutenção de nossa democracia, irá recomeçar a caminhada com distintas finalidades.



24 outubro 2022

Os percursos de Angelo Domani


Fac-simile da capa do romance Um longo dia na vida de Angelo Domani

 

Depois de muitos anos, Ângelo Domani regressa à terra de sua infância, Buganvília, e no correr de uma jornada, a realidade se evanesce ao recriar os acontecimentos, o que faz com que as memórias longínquas se mesclem com o imaginário fantasioso de sua apreensão presente do cotidiano. Em meio ao fluxo de pensamentos e de rememorações, denota-se um futuro cada vez mais incerto. A voz em primeira pessoa sustenta as reflexões de Ângelo, que mais se assemelham a devaneios sobre um tempo perdido, imerso em ambiguidades. 


Com o desenvolvimento da narrativa, é possível para o leitor constatar que o regresso de Ângelo a Buganvília não se dá pela satisfação de um reencontro postergado, mas principalmente na reelaboração de uma consciência atávica, que parece cobrar contas, ou pagar o preço de permanecer aprisionado no tempo. Por mais que Ângelo se mobilize afetivamente em seus reencontros, nada parece mais contingente do que a expectativa do futuro, que se defronta com as pendências do passado.




17 outubro 2022

O dragão da maldade contra o Santo guerreiro


São Jorge e o dragão, 1490/95
Bode Museum - Berlim

Toda a narrativa permeada de alegoria e violência simbólica contidas no belíssimo filme de Glauber Rocha, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, não seria capaz de explicar o contexto brutal de nosso tempo, marcado pelas eleições deste ano. Na verdade, todo o drama vem desde as primeiras manifestações de julho de 2013, que se transmutaram em seus objetivos e começaram a produzir o longo pesadelo político em que ainda vivemos. Nada do que se firmou naquelas mobilizações de rua e posteriormente, nas tomadas de decisões nas casas congressuais sobrou com alguma consistência. O terror das decisões e a miserabilidade denunciada por Glauber varreram o bom-senso da face do Brasil, abrindo lugar para o obtuso e o grotesco, representados por oportunistas de ocasião, vinculados a um pensamento direitista da pior espécie, que juntos com o dinheiro de grandes empresários e a conivência dos grandes conglomerados comunicacionais, abriram as portas para o inferno. 

Vivemos no inferno, em que o vale-tudo moral, imbricado em um conservacionismo nascido nas entranhas dos piores momentos do Brasil Colônia, dá as cartas, capitaneado por esse ex-capitão covarde, insosso, abusivo, que subverte a passividade da massa desinformada. O apelo a um falso sentido cristão, que comunga com as armas; o ódio a tudo que seja vermelho (que o diga o cardeal atacado por hordas bolsonaristas por utilizar paramentos vermelhos); o desprezo às instituições, como os infindáveis ataques ao STF; a aleivosia do orçamento secreto; o escárnio à circunferência da Terra, proclamando-a plana, tudo isso emergiu do lodaçal que se acumula desde julho de 2013 e do qual, paulatinamente, penetra o espírito da civilização brasileira, destroçando-a. O furor desse enfrentamento, em que a metade democrática, constitucional e racional do país toma para si como guardiã da última trincheira da sensatez, nos remete à luta mortal das ruas e esgotos de Stalingrado contra a besta fascista.  

O que podia ser evitado pelas ações do Estado democrático de direito, agora o será com grandes sacrifícios por um amplo arco democrático que reúne lideranças políticas, artistas, profissionais liberais, sindicatos, entidades representativas da sociedade as mais diversas, e que culmina no combate doloroso de 30 de outubro, onde a festividade pelo momento cívico será substituída por um sentimento de alívio, em que apenas pouco mais da metade da população estará disposta a comemorar. Teremos, então, pago um alto preço por tanta leniência. Nesse momento, espera-se que as bandeiras da democracia retomem a autonomia para tremular livremente, no topo dos prédios calcinados, erguidas por cidadãos e cidadãs duramente castigados, sobreviventes no esforço por debelar a insanidade. Também espera-se, para o bem do nosso futuro como nação, que os responsáveis, todos eles, por essa aventura leviana e criminosa, sejam levados à justiça. 

São Jorge terá, por fim, dominado o dragão da maldade.

(atualizado em 18.10.2022)


05 outubro 2022

Os fatos e seus meandros


Os espectros rondam as ruas e as mentes

Desde o domingo os acontecimentos políticos ainda mobilizam grande parte da sociedade brasileira, sejam nas pequenas conversas de rua, nos encontros familiares, nos locais de trabalho. Isso não significa dizer que as discussões sejam amistosas, serenas, construtivas. Muitas se dão no calor do que já se consagrou denominar de "polarizações", e nesse sentido, carregadas de força desmedida, beirando rupturas. De minha parte, entendo que este país sempre viveu, em tempos eleitorais, disputas "polarizadas": assim foi entre Erundina e Maluf em 1988 (gosto de recordar essa disputa em especial, por conta da torrencial migração de votos, no derradeiro momento, de Serra para a candidata do PT); entre Lula e Collor em 1989; entre FHC e Lula por duas vezes, em 1994 e 1998; entre Lula e os candidatos do PSDB por duas vezes, em 2002 (Serra) e 2006 (Alckmin) e depois, entre Dilma e novamente os candidatos do PSDB, Serra em 2010 e Aécio em 2014. Em 2018, os fatos excepcionais eliminaram Lula da disputa e robusteceram a candidatura, de início esquálida, de um certo ex-capitão.

Aí se produziu o ovo da serpente que hoje, quatro anos mais tarde, se reproduz e espalha o horror pelo país. O drama, ainda que não mais sob a animação decidida da mídia corporativa e do grande empresariado, prossegue em seus capítulos assustadores, comandado pela serpente e seus filhotes, ao inocular seu veneno em quase metade da população brasileira, majoritariamente localizada no centro-sul do país. No momento, se processa uma luta titânica entre uma crescente frente ampla democrática contra o terror monstruoso, que se ampara em lideranças farisaicas, em uma suposta liberdade individual e na truculência argumentativa, para que, ao fim e ao cabo, consigamos recuperar o sentido do debate político. Sem dúvida será a nossa Estalingrado, na intensidade da luta e no significado que a vitória poderá proporcionar, ao demolir paulatinamente com o mito (aqui no seu duplo sentido, figurado e literal) da superioridade de uma ordem protofascista. 

Lula terminou o primeiro turno com 48,4% dos votos válidos, o ex-capitão, com 43,2%, diferença de mais de seis milhões de votos. Em uma análise rápida, mesmo sendo uma diferença menor que a esperada - os institutos de pesquisa apontavam uma diferença em torno de 10%), não é simples de ser suprimida. Na primeira pesquisa do segundo turno, que saiu hoje (IPEC), Lula abre uma diferença de 10 pontos (55% a 45%). O ex-capitão, que alimentou de modo irresponsável em suas hostes o prazer pela intolerância racial e de gênero, não tem como conquistar mais votos no Nordeste e entre as mulheres. Seu índice de rejeição supera os 50% e não há campo fértil para realizar uma colheita que lhe ofereça o que precisa. Restam 25 dias para o domingo de segundo turno e aos poucos, bem aos poucos, desponta no horizonte um brilho potente, um novo sol a nos iluminar com todas as cores vibrantes da democracia.

Hoje, 14 anos deste blog Chá nas Montanhas. Foram mais de 81.600 visualizações e quase 750 postagens ininterruptas (faltam 4) sobre política, cultura e cotidiano. Muita satisfação e orgulho por este trabalho que me entusiasma a cada texto publicado, sempre desejoso por instar o espírito crítico nestas trocas com o leitor. Que possamos comemorar muitos outros aniversários de construtivas análises. 



19 setembro 2022

Gonzalo Millán, um poema


Gonzalo Millán (1947-2006)



Poema 48

 

O rio inverte o curso de sua corrente

A água das cascatas sobre

As pessoas começam a caminhar retrocedendo

Os cavalos caminham para trás

Os militares desfazem o desfilado

As balas saem das carnes

As balas entram nos canhões

Os oficiais guardam suas pistolas

A corrente penetra pelas tomadas

Os torturados deixam de agitar-se

Os torturados fecham suas bocas

Os campos de concentração se esvaziam

Aparecem os desaparecidos

Os mortos saem de suas tumbas

Os aviões voam para trás

Os rockets sobem até os aviões

Allende dispara

As chamas se apagam

Tira-se o capacete

La Moneda se reconstitui íntegra

Seu crâneo se recompõe

Sai a um balcão

Allende retrocede até Tomás Moro

Os detidos saem de costas dos estádios

11 de Setembro

Regressam aviões com refugiados

Chile é um país democrático

As forças Armadas respeitam a constituição

Os militares regressam a seus quartéis

Renasce Neruda

Retorna em uma ambulância à Isla Negra

Dói sua próstata. Escreve.

Victor Jara toca o violão

Canta

Os discursos entram nas bocas

O tirano abraça a Prats

Desaparece

Prats revive

Os desempregados são recontratados

Os operários desfilam cantando

Venceremos!