Como narrava Walter Abrão, "Ele" |
São palavras breves,
que tentam fazer justiça ao que ele representou ao longo da minha vida. Nos
últimos anos, esteve muito ausente de meus pensamentos, no alto de
um panteão esquecido e pouco frequentado. Creio que ele mesmo optou pelo
silêncio, pelo distanciamento da mídia, de modo que sua vejo-o realizando serenamente uma passagem, de um lugar para outro, com
a discrição que sempre o marcou. Minha lembrança, digo melhor, minha homenagem, se remete aos anos 1960, não ao início de sua carreira ou ao final, mas os anos intermediários, quando meu pai, apreciador do bom
futebol, gostava de me levar aos estádios para ver não apenas o seu São Paulo,
mas um bom clássico.
Foi desse modo que conheci e visitei por muitas vezes o Morumbi, o Pacaembu, o Parque Antártica, para ver um jogo do Santos contra algum outro grande. Meu pai fazia parte do ritual que se reproduzia a cada fim de semana. Havia aí uma conjunção maravilhosa: ir em sua companhia e desvelar por minha conta os segredos do uniforme branco que recobria aqueles artistas, mas principalmente os magos negros como o carvão, Coutinho, Dorval, ele, Lima, Mengálvio,
Edu... A uns pude ver mais que a outros, a agilidade inata com a bola, as manobras exuberantes em campo, os gols maravilhosos eram a pedra de toque para minhas narrativas do dia seguinte, na escola.
Mas tudo acontecia de modo simultâneo: na época do tabu contra o Corinthians, acompanhei muitos jogos pelo radinho de pilha, imaginando os lances narrados por Fiori Gigliotti. Recordo-me de uma noite em especial, quando seu gol decisivo impediu a derrota, e aquilo me bastou, adormeci como uma criança feliz, tocada pela façanha do ídolo. Nos domingos, normalmente a cobertura esportiva acompanhava os grandes times da capital, mas durante as transmissões, era comum o locutor destacado para a Vila Belmiro abrir seu microfone repentinamente, tendo ao fundo o alarido da torcida e os rojões explodindo. Era magnífico, já sabíamos que tinha sido um gol do time alvinegro. Em seguida, vinha a descrição do gol, ainda sob o júbilo do público, muitos deles feitos pelo genial número 10.
Submetia-me por igual à sucessão de
registros dos vídeo-tapes, onde se capturava para a posteridade a elegância de sua magia ao driblar os adversários. Foram estas cenas, ouvidas pelo rádio ou assistidas ao vivo ou pela TV, que iluminaram minha infância e adolescência. Havia uma tal grandeza naquelas camisas brancas de pele negra, que os corpos mortais tornavam-se sagrados, transformados em super-heróis, capazes de encantar o meu imaginário com jogadas ainda mais espetaculares, concedendo-me a partilha do néctar de cada conquista, ou mesmo do fel de cada derrota.
Antes de Disney, de Julio Verne ou do Nacional Kid, foi ele (com os demais magos do time) quem me inebriou com seus movimentos e me fez descobrir da forma mais prazerosa o quão era, para um garoto, deixar-se levar pelo magnetismo da criatividade sem fim. Ao testemunhar sua exuberância com a bola, eu alcançava uma espécie de felicidade juvenil que em sua duração, era capaz de camuflar as tristezas do cotidiano. Essa alegria ambígua do espírito me permitiu aos poucos compreender e distinguir o mundo como um lugar complexo, erigido entre as quimeras da imaginação e os desenganos da realidade cotidiana.
(atualizado em 30.12.2022)
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