09 dezembro 2022

Orson Welles


Orson Welles (1915-1985)

Naquele momento, nada me dava mais satisfação do que retornar, quase diariamente, ao cine Belas Artes, para rever um filme do qual sabia apenas de sua fama, e que aparecia em cópia nova. Queria compreender, com meu próprio esforço, a razão pela qual Cidadão Kane era considerado o filme mais bem realizado, digamos assim, do mundo. O que, em sua feitura, o transformava na mais impactante direção para nove entre dez críticos de cinema. As razões não deixavam de se acumular, à medida em que via e revia a película, mas o mais importante em mim foi a aura que o filme produziu. A cada cena, eu avaliava a profusão de impressões que ela própria revelava, tudo simultaneamente, como Welles havia imaginado a narrativa, o que o fazia optar por aquela tomada e não outra, de que modo havia chegado às inovadoras resoluções do som, como havia chegado a Gregg Toland para a fotografia, por exemplo. 

Muito tempo depois, no livro de entrevistas com Peter Bogdanovich, Welles conta do acaso dessa escolha: "(...) um dia o encontrei sentado na sala de espera de meu escritório, Meu nome é Toland, ele disse, e quero que me use em seu filme". Só mesmo um diretor com a abertura e a ousadia de Orson Welles para apostar em alguém que se oferecia assim para um trabalho tão importante. Welles vinha do teatro e sua experiência estava toda aí, do roteiro à iluminação, passando pela marcação dos atores. Para fazer algo genial, é preciso estar disposto a aprender, e foi o que aconteceu na interação entre Gregg e Welles. 

Em muitos momentos das conversas com Bogdanovich, e que de certo modo ocorreu dez anos antes, na entrevista com André Bazin, Welles simplesmente desmistifica certas decisões que tomou, como a mostrar os tetos dos espaços interiores, "sou da opinião de que a câmera deve mostrar aquilo que os olhos veem normalmente quando olham para alguma coisa", ou o uso da câmera baixa, "Não sei por quê. Talvez porque eu ache que o filme fica melhor com a câmera ali embaixo. Só isso". Seja como for, o brilho desses arranjos, mais a mística criada em torno de seu nome, fez com que eu voltasse ao menos meia dúzia de vezes ao cinema, para ver o filme. Naquela época, saía do emprego depois do almoço e tinha toda a tarde para desfrutar as experiências culturais na região da Paulista, de modo que não tinha pressa, nem método, era um puro deleite pessoal. 

Não deixava escapar as leituras rápidas, em matérias de jornais e revistas, sobre o diretor estadunidense, além de não mais perder seus filmes, ou suas proezas realizadas. Pouco depois tive acesso à reprodução completa de sua peça radiofônica, A Guerra dos Mundos, na rádio USP, em comemoração aos cinquenta anos do evento. Preparei-me para gravar a reprodução e ainda hoje tenho esse raro testemunho. E não deixava de me emocionar com as oportunidades: dois ou três anos mais tarde, vi em Paris, pela primeira vez, O Terceiro Homem, de Carol Reed, cuja participação de Welles se resume a poucos minutos, que se tornam mágicos por sua atuação esquiva, em que contribui seu ar misterioso captado em P&B, em uma Viena destruída pela guerra. 

Fui um felizardo em poder admirar Orson Welles quando ainda vivo e acompanhar o desfecho de sua obra. Penso que sua genialidade estava na forma de lidar com as coisas. Diante das dificuldades, sabia como improvisar. Seu Otelo e seu Macbeth são peças levadas ao cinema com grande competência. De acordo com Bazin, "Em Otelo, o artifício está a céu aberto e é recriado a partir de uma matéria inteiramente natural. Graças à montagem ofegante e cortada, aos ângulos de filmagem (que dão ao olho e ao espírito a possibilidade de ligar no espaço os elementos do cenário), Welles inventa a partir das pedras de Veneza ou de Mogador (no Marrocos, onde realizou a maior parte das tomadas), uma arquitetura dramática imaginária, (...) ornada de todas as belezas previstas e casuais que só se podem encontrar na verdadeira arquitetura da pedra natural, trabalhada por séculos de vento e de sol". 

Quando vi sua versão de "O processo", de Kafka, fiquei verdadeiramente impressionado e até hoje não consigo separar as imagens fílmicas de Welles com as imagens que faço da leitura de Kafka. A última experiência fílmica com Welles ocorreu na pandemia, em casa, quando assisti The Stranger, O Estranho, de 1945, com a participação de outro ícone do cinema estadunidense, o ator Edward G. Robinson, no papel de um fugitivo nazista. O episódio dos sinos da igreja do lugarejo me inspirou em uma passagem de meu romance recém-concluído e prestes a ser publicado.


Welles como Quinlan, em A marca da maldade



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