27 outubro 2022

Horizonte de expectativas


Cartaz de The Magnificent Seven


São dias de expectativa e angústia. E muito ruidosos na superfície, e com movimentações sinuosas nos subterrâneos. Seria o desdobramento dos combates em nossa Estalingrado (ou poderia dizer, de nossa Varsóvia, referente ao levante de 1944), com um inimigo implacável, que já não avança, que não assusta nem surpreende por sua brutalidade, que ainda assim segue com seu rastro de destruição. Um inimigo, essa é a pura definição de quem enfrentamos, nós, os que defendemos o Estado democrático de direito com todas suas instituições, que mesmo carcomidas por suas deficiências atávicas, preservam o estatuto da vida em sociedade. 

Porém, a minha impressão romantizada dessa luta sem quartel ao aproximar a visão das coisas com o embate épico de Estalingrado (ou Varsóvia) não está de acordo com a realidade. Com o passar dos dias, esse enfrentamento mais se assemelha ao tiroteio sujo que ocorreu em The Magnificent Seven (Sete homens e um destino) em que sete aventurosos pistoleiros tentam expulsar de uma pequena aldeia mexicana um grupo de bandidos, sob o domínio de um tal Calvera. Imbuídos pelo senso de justiça, os dois amigos, Chris e Vin, arrebanham outros cinco sujeitos para expulsar os delinquentes, que pretendem seguir na extorsão dos habitantes do vilarejo. A disputa simbólica culmina com a vitória da cidadezinha, que ao fim e ao cabo participa na expulsão do bando criminoso.  

Como comentei antes, poderíamos situar nossa situação presente no embate entre os defensores de Canudos, sob o mando de Antonio Conselheiro, e o exército brasileiro, retomando a narrativa épica de Euclides: a luta feroz no sertão, entre a determinação do sertanejo que dispõe de um sonho comunal e utópico, e a virulência de uma sucessão de batalhões de jovens conscritos, bafejados por uma ideologia racial de superioridade contra os "fanáticos jagunços". Conforme Consuelo Novais Sampaio em seu estupendo trabalho, Canudos, cartas para o barão, "A vitória final das forças legalistas, contra uma comunidade sertaneja que não se rendeu, foi efusivamente comemorada pelas classes dominantes". E mais adiante, "A defesa da propriedade fundiária estava no grito de luta que uniu todos os setores das classes dominantes na guerra contra Canudos". O problema aqui se coloca no drama épico, que supera de longe em consistência e significação a barbárie rasa, maculada por discursos religiosos e valores patrióticos chulos em que hoje estamos metidos.

Não há lei expressa no transcurso desses enfrentamentos acima descritos, nem sequer dignidade humanitária. Há uma sucessão de ataques contra o inimigo, bandeiras de um lado e de outro, a refrega levada ao extremo, com o sacrifício dos que se atrevem a lutar, para ao final, sobrevir uma paz ruinosa, em que uma das partes suplanta a dor e se estabelece. Se o nosso lado abarca um amplo arco representativo de valores da sociedade laica, trabalhadora e democrática, o moedor de carne das disputas nas redes digitais, o palavrório dos argumentos nas ruas, a irredutibilidade de um lado, forjado na fake news, cada vez mais acuado e sem abertura para o debate cidadão, fazem com que nosso senso de cidadania se perca nos meandros de infindável grosseria disseminada pelo inimigo a ser derrotado. Muitos assemelharão esse inimigo ao fascismo, eu tendo a crer que ele é uma conjunção de protofascismo, que vai de salteadores a criminosos, tendo Calvera como princípio e Dirlewanger com fim.

A questão que sobrevém: como restabelecermos - porque ao que indicam as pesquisas sairemos vencedores nas urnas - a integração, o bem-estar cívico da nação após 30 de outubro? Qual será o preço a pagar por tanto martírio causado por um grupo de dirigentes inconsequentes, que mobilizaram quase metade da população para se armarem, para aceitarem o ódio, para encamparem os privilégios do patrão e a adoração aos falsos profetas? Já não lutamos em nome de uma ideologia, praticamente abjuramos de nossas posições políticas históricas, para compor uma frente aparentemente coesa, sob um objetivo único - derrotar o dragão da maldade. Uma frente que, ao fim e ao cabo, em meio às ruínas fumegantes da manutenção de nossa democracia, irá recomeçar a caminhada com distintas finalidades.



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