17 outubro 2022

O dragão da maldade contra o Santo guerreiro


São Jorge e o dragão, 1490/95
Bode Museum - Berlim

Toda a narrativa permeada de alegoria e violência simbólica contidas no belíssimo filme de Glauber Rocha, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, não seria capaz de explicar o contexto brutal de nosso tempo, marcado pelas eleições deste ano. Na verdade, todo o drama vem desde as primeiras manifestações de julho de 2013, que se transmutaram em seus objetivos e começaram a produzir o longo pesadelo político em que ainda vivemos. Nada do que se firmou naquelas mobilizações de rua e posteriormente, nas tomadas de decisões nas casas congressuais sobrou com alguma consistência. O terror das decisões e a miserabilidade denunciada por Glauber varreram o bom-senso da face do Brasil, abrindo lugar para o obtuso e o grotesco, representados por oportunistas de ocasião, vinculados a um pensamento direitista da pior espécie, que juntos com o dinheiro de grandes empresários e a conivência dos grandes conglomerados comunicacionais, abriram as portas para o inferno. 

Vivemos no inferno, em que o vale-tudo moral, imbricado em um conservacionismo nascido nas entranhas dos piores momentos do Brasil Colônia, dá as cartas, capitaneado por esse ex-capitão covarde, insosso, abusivo, que subverte a passividade da massa desinformada. O apelo a um falso sentido cristão, que comunga com as armas; o ódio a tudo que seja vermelho (que o diga o cardeal atacado por hordas bolsonaristas por utilizar paramentos vermelhos); o desprezo às instituições, como os infindáveis ataques ao STF; a aleivosia do orçamento secreto; o escárnio à circunferência da Terra, proclamando-a plana, tudo isso emergiu do lodaçal que se acumula desde julho de 2013 e do qual, paulatinamente, penetra o espírito da civilização brasileira, destroçando-a. O furor desse enfrentamento, em que a metade democrática, constitucional e racional do país toma para si como guardiã da última trincheira da sensatez, nos remete à luta mortal das ruas e esgotos de Stalingrado contra a besta fascista.  

O que podia ser evitado pelas ações do Estado democrático de direito, agora o será com grandes sacrifícios por um amplo arco democrático que reúne lideranças políticas, artistas, profissionais liberais, sindicatos, entidades representativas da sociedade as mais diversas, e que culmina no combate doloroso de 30 de outubro, onde a festividade pelo momento cívico será substituída por um sentimento de alívio, em que apenas pouco mais da metade da população estará disposta a comemorar. Teremos, então, pago um alto preço por tanta leniência. Nesse momento, espera-se que as bandeiras da democracia retomem a autonomia para tremular livremente, no topo dos prédios calcinados, erguidas por cidadãos e cidadãs duramente castigados, sobreviventes no esforço por debelar a insanidade. Também espera-se, para o bem do nosso futuro como nação, que os responsáveis, todos eles, por essa aventura leviana e criminosa, sejam levados à justiça. 

São Jorge terá, por fim, dominado o dragão da maldade.

(atualizado em 18.10.2022)


Nenhum comentário: