07 janeiro 2011

Pelo que vale a vida (2)


Há cerca de vinte anos Miguel de Unamuno me acompanha. O que ocorre é que tenho sido por demais ingrato, ou digamos melhor, desatento aos seus ensinamentos. Certa vez em Buenos Aires, em uma tarde abafada, como sói ocorrer nos verões portenhos, entrei em uma livraria e estendi a mão para o livrinho de capa vermelha, atraído pela força do título, Del sentimiento trágico de la vida. Eram meus anos existencialistas, e tais palavras me sinalizavam para a paixão inútil da existência humana.

Aos poucos descobri que a presença da fé, em constante luta com a razão, condenava o meu desejo em avançar na filosofia unamuniana. Não eram tempos de paciência, tampouco de concordância. Em outras palavras, nada que arranhasse a interpretação sartriana da vida merecia minha contemplação.

Com isso, posterguei indefinidamente a compreensão do olhar sensível de Unamuno. Nem o sentimento faz do consolo, verdade; nem a razão faz da verdade, consolo. Se por um lado a razão é o impeditivo para o desejo vital da imortalidade, a fé nos dá a aceitação da imortalidade, mas graças à nossa condição humana, em meio à permanente dúvida e incerteza.

E diz Unamuno, A fome de Deus, a sede de eternidade, de sobreviver, nos afogará sempre esse pobre gozo da vida, que passa e não fica. A pura agonia, que nos projeta para o futuro, sem definir ao certo o que virá. Mas não é suficiente ao humano satisfazer-se com sua finitude, ou, de outro modo, essa consciência não lhe trará sossego. Há uma verdade (a esperança?) que se coloca para além de nossos propósitos... Oh, quem pudera prolongar este doce momento e dormir nele e nele eternizar-se!...

E o que se pode indagar acerca da razão da imortalidade? (...) Para que queres ser imortal? Não entendo a pergunta, porque é perguntar a razão da razão, o fim do fim, o princípio do princípio... Ou dito de outra maneira, A fé na imortalidade é irracional. E, no entanto, fé, vida e razão se necessitam mutuamente (...) Razão e fé são dois inimigos que não podem sustentar-se um sem o outro...

***

Miguel de Unamuno era o reitor da universidade de Salamanca, quando da cerimônia do Día de la Raza. Na ocasião, o general Millán Astray, um dos líderes do alzamiento, fez uma alocução em que proferiu o clássico grito de guerra falangista, Viva la muerte!
A resposta de Unamuno não tardou, eloquente:

Acabo de ouvir o grito necrófilo e sem sentido de Viva la muerte! Isso me soa o mesmo que Morra a vida! (...) O general Millán Astray é um inválido. Não é preciso dizê-lo em um tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém, os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, há hoje em dia demasiados inválidos... E logo haverá mais se Deus não remediar. Me dói pensar que o general Millán Astray possa ditar as normas da psicologia de massas. Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem - não um super homem - viril e completo, apesar de suas mutilações; um inválido, como disse, que careça dessa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados ao seu redor.

Houve um tumulto no plenário. Há que se recordar que esse pronunciamento se deu em um recinto coalhado de altas patentes franquistas. Segundo a descrição do historiador Rafael Abella, da qual me utilizo, Unamuno aguentou a tormenta e sua voz retomou a firmeza, prosseguindo em seu discurso,

Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo sacerdote. Vós estais profanando este sagrado recinto. Eu sempre fui, diga o que diga o provérbio, um profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque tereis força bruta de sobra, mas não convencereis porque convencer significa persuadir. E para persuadir, necessitais algo que vos falta, razão e direito na luta. Me parece inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito.

Miguel de Unamuno não sobreviveria à guerra civil espanhola, falecendo poucos meses mais tarde, na mesma Salamanca.


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