21 janeiro 2011

Condenados


O primeiro acordou com a descarga breve e múltipla, produzida no pátio. Os demais companheiros permaneceram imóveis. Acordou, deu uma geral em meio ao lusco-fusco da cela e fixou o olhar no teto, remoendo a ideia de que ocorrera mais um fuzilamento, agora mais impactante, pois envolvia um dos colegas de cela, levado na noite anterior. Os disparos que ocorriam frequentemente em outras ocasiões pareciam circunstâncias de rotina, considerando a tensão do cotidiano prisional de um cárcere em que se fuzilam condenados. Desta feita, os tiros significaram um golpe dolorosamente ameaçador. 

Sentou-se no grabato, a luz difusa da aurora embaralhando sua visão, enquanto buscava organizar os pensamentos. Lançou um olhar lânguido para o leito inferior do beliche em frente, agora vago, pronto para receber um novo sentenciado à morte. Recordou-se de algo importante e ergueu o travesseiro, tomando nas mãos o caderno de capa dura onde realizava suas anotações e com o toco de lápis que lhe restava, recomeçou a escrever com sua letra miúda. Palavras que somadas a novas palavras, geravam frases e orações que compunham impressões inacabadas, fustigadas pela certeza de que não resultariam jamais em idéias concludentes. Folheou as páginas, agora sob o alvorecer do novo dia, detendo-se nos comentários mais lúcidos por seus efeitos acabrunhantes, “Serei o próximo a sucumbir, como uma maldita mosca no verão... Angústia que não desanima, que clama sem ser mais ouvida... Nada, a não ser os ecos de cada manhã, estampidos mortais...”, ou então preocupações sem sentido, “... essa sobremesa, a melhor coisa que me aconteceu desde que cheguei nessa espelunca...”, e que às vezes beirava o bizarro “... coloco-me sob a bondade divina, é o que me ampara... os cães já não latem nem nos meus pesadelos...)”. 

Nesse ínterim, o segundo condenado despertou do sono agitado e indagou sobre o ruído externo, Foi o que estou pensando?... É, aconteceu..., respondeu o primeiro, indiferente, contendo-se na leitura. Não conseguem impedir nunca... retomou o segundo, com a fala mais encorpada, desejoso por entabular uma conversa. O terceiro prisioneiro veio a si, lançando um olhar desavisado para os companheiros. Voltou-se então para a parte inferior do seu beliche e constatou a ausência. Por que vocês não voltam a dormir?, comentou remexendo as bochechas, Não vão trazer o cara de volta com essa conversa mole..., ao que recebeu do primeiro um Vai à merda!... assim bem seco e grosso, extravasando a tensão acumulada. Em qualquer outra ocasião teria sido uma provocação de consequências imprevisíveis, porém, naquela manhã, a iniciativa estava em falta e os ânimos, por demais retraídos. O segundo condenado resolveu intervir com um balbucio inofensivo, mais para desconversar e aquietou-se sob as cobertas. O primeiro detento deu continuidade a suas anotações no caderno de capa dura, enquanto que o terceiro remoeu-se em seu desprazer, atalhando por fim um Depois a gente se acerta... antes de virar-se para o concreto e calar-se pelo resto da manhã. 

(Pois os atos mais acerbados poderiam esperar, todos ali teriam o resto do dia para esgrimir suas futilidades e tergiversar sobre seus sonhos. E se o dia não fosse suficiente, poderiam prolongar a conversação pelo resto da semana, do mês, ou calar-se por anos a fio... Mais um pouco e a luz do sol se projetaria pela pequena abertura gradeada, definindo seus tons diversificados ao longo do dia, até seu esmaecimento, no crepúsculo da jornada. Teriam como companhia o rumor da chuva caindo, com seu cheiro sempre refrescante, ou o bramido de um vento tempestuoso; o gotejar da água em algum ponto do teto ou o chilrear de um pássaro desgarrado, na primavera, acontecimentos tão efêmeros quanto desinteressantes na vida de um quase-expurgado. No espaço áspero, a estima fenece com o andar do tempo; já o desprezo e a fantasia se acumulam em evolução crescente, acentuados com a ignomínia do isolamento. Daí que as reações promovem a exasperante ruminação de palavras e ideias inicialmente hostis, mas que cerceadas pelos muros acabam resignadas, recolhendo-se aos seus donos...).

O primeiro, o que tinha o caderno nas mãos, desistiu e o repôs sob o travesseiro. Manteve os pensamentos por mais uns minutos e quem sabe fosse seu desejo prosseguir em suas ponderações, se não sucumbisse ao único prazer solícito de um condenado, o sono.

(ao som de Superunknown, Soundgarden)



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