Sentou-se no grabato, a luz difusa da aurora embaralhando sua visão, enquanto buscava organizar os pensamentos. Lançou um olhar lânguido para o leito inferior do beliche em frente, agora vago, pronto para receber um novo sentenciado à morte. Recordou-se de algo importante e ergueu o travesseiro, tomando nas mãos o caderno de capa dura onde realizava suas anotações e com o toco de lápis que lhe restava, recomeçou a escrever com sua letra miúda. Palavras que somadas a novas palavras, geravam frases e orações que compunham impressões inacabadas, fustigadas pela certeza de que não resultariam jamais em idéias concludentes. Folheou as páginas, agora sob o alvorecer do novo dia, detendo-se nos comentários mais lúcidos por seus efeitos acabrunhantes, “Serei o próximo a sucumbir, como uma maldita mosca no verão... Angústia que não desanima, que clama sem ser mais ouvida... Nada, a não ser os ecos de cada manhã, estampidos mortais...”, ou então preocupações sem sentido, “... essa sobremesa, a melhor coisa que me aconteceu desde que cheguei nessa espelunca...”, e que às vezes beirava o bizarro “... coloco-me sob a bondade divina, é o que me ampara... os cães já não latem nem nos meus pesadelos...)”.
Nesse ínterim, o segundo condenado despertou do sono agitado e indagou sobre o ruído externo, Foi o que estou pensando?... É, aconteceu..., respondeu o primeiro, indiferente, contendo-se na leitura. Não conseguem impedir nunca... retomou o segundo, com a fala mais encorpada, desejoso por entabular uma conversa. O terceiro prisioneiro veio a si, lançando um olhar desavisado para os companheiros. Voltou-se então para a parte inferior do seu beliche e constatou a ausência. Por que vocês não voltam a dormir?, comentou remexendo as bochechas, Não vão trazer o cara de volta com essa conversa mole..., ao que recebeu do primeiro um Vai à merda!... assim bem seco e grosso, extravasando a tensão acumulada. Em qualquer outra ocasião teria sido uma provocação de consequências imprevisíveis, porém, naquela manhã, a iniciativa estava em falta e os ânimos, por demais retraídos. O segundo condenado resolveu intervir com um balbucio inofensivo, mais para desconversar e aquietou-se sob as cobertas. O primeiro detento deu continuidade a suas anotações no caderno de capa dura, enquanto que o terceiro remoeu-se em seu desprazer, atalhando por fim um Depois a gente se acerta... antes de virar-se para o concreto e calar-se pelo resto da manhã.
(Pois os atos mais acerbados poderiam esperar, todos ali teriam o resto do dia para esgrimir suas futilidades e tergiversar sobre seus sonhos. E se o dia não fosse suficiente, poderiam prolongar a conversação pelo resto da semana, do mês, ou calar-se por anos a fio... Mais um pouco e a luz do sol se projetaria pela pequena abertura gradeada, definindo seus tons diversificados ao longo do dia, até seu esmaecimento, no crepúsculo da jornada. Teriam como companhia o rumor da chuva caindo, com seu cheiro sempre refrescante, ou o bramido de um vento tempestuoso; o gotejar da água em algum ponto do teto ou o chilrear de um pássaro desgarrado, na primavera, acontecimentos tão efêmeros quanto desinteressantes na vida de um quase-expurgado. No espaço áspero, a estima fenece com o andar do tempo; já o desprezo e a fantasia se acumulam em evolução crescente, acentuados com a ignomínia do isolamento. Daí que as reações promovem a exasperante ruminação de palavras e ideias inicialmente hostis, mas que cerceadas pelos muros acabam resignadas, recolhendo-se aos seus donos...).
O primeiro, o que tinha o caderno nas mãos, desistiu e o repôs sob o travesseiro. Manteve os pensamentos por mais uns minutos e quem sabe fosse seu desejo prosseguir em suas ponderações, se não sucumbisse ao único prazer solícito de um condenado, o sono.
(ao som de Superunknown, Soundgarden)
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