30 janeiro 2011

Recortes urbanos (2)


Praga, 2010

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Logo após o Ano Novo, me desloquei à Praga, nada de estimulante. De Dresden, pouco mais de duas horas para cobrir 192km. A exemplo de outras capitais européias, outro centro de consumo, recebendo gente de todas as partes. Não reencontrei o encanto de quinze anos atrás. O poderoso mercado desfere um golpe no coração das almas atentas e recalcitrantes, e para os corpos que sucumbem à delícia da efemeridade, o prêmio de renascerem como zumbis do consumo. Um período em que as almas se colocam mais volúveis, milhões os que se entrechocam, hipnotizados pelo bimbalhar das compras. Tudo de forma agitada, abundante, sem se aperceber da metamorfose processada. E circulam, ansiosos, devoradores...

Na mais bela ponte de Praga, o ritual messiânico a uma das estátuas, talvez a de São Venceslau... e seu cão! Os peregrinos - aparentemente do leste europeu, pelo que identifiquei nas conversas - se amontoam à espera de tocar na escultura do santo e do cachorro, e em seguida atiram umas moedas ao rio. A fila se estende ao longe, as pessoas não se incomodam com o frio cortante. E fotografam. Um momento de concódia espiritual. Mal a moedinha se aninhou no fundo do rio, como que liberados por uma permissão divina, lançam-se para as conquistas materiais. De multidão comprometida e ordenada pelos preceitos místicos, para massa que devora, turbulenta, incerta, e avançando, se subdivide pelo caminho, e se recompõe mais à diante, agora com novos integrantes, sempre envolta por desejos díspares, seduzida pela dúvida, diante da infindável variedade de produtos oferecidos.

É impressionante acompanhar pelas ruas acanhadas, os fragmentos de massa feito blocos de gelo se desprendendo da massa principal, ocupando os cafés, restaurantes, as lojinhas de produtos turísticos, as barracas de alimentação... A bela cidade, fotografada, Powder Gate, Wenzelsplatz, Starometsky, Malá Strana, o castelo Hradcany, cenas acumuladas, o tempo da história dispersado... A massa que se movimenta sem cessar, e devora, sem responder à consciência crítica dos atos, tomada pelo estímulo de possuir o que reluz, na vitrina em frente. Massa que se entrega ao fascínio construído pela necessidade de consumo, habilmente processado pela dinâmica do mercado. Esse fascínio que não se resume a contemplar, mas que se forja na abrupta sede de possuir! Assim, a massa que nada mais é do que uma horda azeitada em sua função dispersiva, evolui para o desejo massivo, e individualista, de realizar-se no consumo.

No primeiro momento, fisgados pelo desejo, no segundo momento, a satisfação pela aquisição. Há preço para tudo, há freguês para todo preço, e no final todos ganham, é a essência do ritual mercadológico. Cada um escarafunchará o negócio mais atraente, e terá a pechincha de ocasião para contar... historinhas paralelas que acabam ganhando força, quando contadas para a família e amigos, no retorno. A beleza de uma viagem, consagrada em historinhas de ocasião!...

Os zumbis ressurgem de todos os cantos - não assustadores e disformes como em Thriller, mas saudáveis e bem vestidos - pela manhã, ao final da tarde, no dia seguinte, avançam pelas ruas uma vez mais, e ainda uma vez... Sedentos, não se fartam. A sofisticação do processo atinge níveis de tamanha voracidade, que um zumbi não reconhece outro zumbi - nem a ele mesmo. A necessidade de ter, como reflexo de uma cobiça banal, como finalidade de uma ação sem fim, estimulada pelas vozes dominantes do sistema...

Em Praga, vislumbro esse corre-corre desenfreado, penso que cheguei em má hora. Há quinze anos, andava pelas ruas quase vazias, respirando história, absorto pelos traços predominantes da cultura local. Em uma das noites, não tão frias como agora, ouvi o que me pareceu um violino ao longe. Não pode ser... pensei, olhando para o vazio das ruas. Eram dez da noite, meus passos ressoavam pelos paralelepípedos, enquanto avançava às cegas, atraído pelas notas longas, melancólicas, até que, sob a penumbra de um beco, lá estava ele, o violinista solitário, tocando e deslindando seu instrumento, comovido em sua emoção, construindo com ela o seu tempo bondoso, em meio ao silêncio da noite.



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