26 dezembro 2021

Final de ano

Veronese, Bodas de Caná

A fome ressurgia, roendo-me o peito e dilacerando-me com picadas que me faziam estremecer de dor.
Knut Hamsun.

Nada parece mais dramático do que o final de ano que vivemos. Fruto de um desgoverno incapaz - ou decididamente capaz para a destruição - alcançamos um nível de desequilíbrio social que não se via há décadas. O que vemos é fome, desemprego e desesperança. Na região mais rica da cidade de São Paulo, o eixo da avenida Paulista com a rua Augusta, se concentram os escritórios de conglomerados financeiros, lojas nobres do comércio varejista e serviços, espaços culturais sofisticados, a sede do setor de indústrias do Estado (a Fiesp), excelentes bares e restaurantes com grande afluência de público, ou seja, toda uma variedade que garante a pujança econômica diferenciada a esse território urbano. Convivendo ao lado desse poder econômico, espraia-se de maneira indistinta, em número crescente, uma massa de gente famélica que se instala como pode em seus barracos improvisados ou em esteiras ao relento, a perambular à cata das sobras, em uma sinistra realidade paralela, muitas vezes ignorada. Gente lançada à própria sorte, que mais se assemelha a um contingente de refugiados de guerra perambulando por imenso acampamento, à deriva. 

“O território em si não é um conceito. Ele só se torna utilizável para a análise social quando o consideramos a partir do seu uso", diz Milton Santos, em meio a esse território de intensa circulação de capital, comandado pela racionalidade dos interesses hegemônicos. Por esta razão, talvez, a região da Paulista representa para o imaginário paulistano a força de um território imponente, que não se debilita, não se desgasta pela fragmentação das imagens e dos ritmos conflitantes, onde os atores despossuídos tornam-se invisibilizados pela predominância da velocidade e da fluidez tecnológica dos atores mais poderosos.

Já vem de longe a incompreensão por esse desdém coletivo diante da fome. Josué de Castro, geógrafo cujo trabalho deveria ser recuperado nestes tempos de miséria neoliberal, no prefácio da primeira edição de seu Geografia da Fome (1946), escreveu: "Quais são as causas ocultas da verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. (...) Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente". (...) Mesmo em meu curso de Geografia, cumprido no final dos anos 1980, quando vivíamos um quadro de carência nutricional semelhante ao que vivemos hoje, não me lembro de haver uma disciplina que discutisse de maneira realista o problema da fome. Em suma, não era assunto discutido em sala de aula. Josué de Castro pagou por suas ideias e foi mais uma das brilhantes cabeças exiladas à força pelo malfadado regime militar, juntamente com Celso Furtado, Paulo Freire, Augusto Boal e muitos outros. 

O final de ano consolida, nas pesquisas de opinião realizadas recentemente, um quadro de derrota desse desgoverno incapaz, ou decididamente capaz para a destruição. No horizonte, e mesmo já dentre nós, nas discussões políticas que surgem aqui e ali, anuncia-se como inescapável a vitória de um governo Lula, que dentre diversas prioridades, certamente restabeleceria um plano mínimo de combate à fome - quem sabe a partir de um Bolsa Família robusto, que como o anterior, também incorpore em seus propósitos a capacidade de mobilizar economicamente a sociedade local em torno de escolaridade e consumo. Quero muito sentir a esperança de meu vizinho, morador das ruas, como uma certeza a se realizar. Ao final de nossa conversa, há alguns dias, pediu para que "este Natal seja de muita saúde e de muita voz". Um pedido que por certo se repetiria para os votos de Ano Novo e para a continuidade do ano de 2022. Muita saúde para poder viver e sonhar, muita voz para expor com firmeza a indignação por tanto descalabro. 

(atualizado em 27.12.2021)


23 dezembro 2021

Ameaça



Alfredo García Vega esperou minutos para ser atendido na recepção do hotel. Bateu no sininho e nada. Ao dar o primeiro passo em direção à saída, sentiu um novo tremor, desta vez mais forte que o primeiro poucos minutos antes, que o fez caminhar feito um bêbado até se escorar em uma poltrona. Aturdido, atravessou o saguão completamente vazio. Do bar, ao fundo, ouviu apenas o tilintar macabro, sob a trepidação inusitada. Em meio ao silêncio profundo, passou a distinguir um ribombar distante, uma sucessão de trovões ou, o que parecia absurdo, disparos de grosso calibre.

Uma vez na rua, não constatou qualquer movimento; um vento quente bafejou-lhe o rosto, como o sopro deslocado de uma imensa fornalha. Passava pela calçada, em sentido contrário ao seu, um sujeito fardado com o semblante atribulado, bloco de anotações em uma das mãos. Garcia Vega de um salto se interpôs ao desconhecido a barrar-lhe o caminho. Indagou sobre aqueles tremores e ruídos que se sucediam. O homem o fitou de modo grave e prosseguiu em seu trajeto. García Vega começava a se arrepender pela escolha de seu pernoite, um lugar esquecido no mundo, abandonado ao seu desdém. Sua impressão era a de que havia algo de errado. Correu ao encalço do desconhecido.

Tomou-lhe pelo braço no meio da rua, O que está acontecendo? O homem, ainda mais impaciente e sem dar tempo para que Garcia Vega refizesse a pergunta, recomendou que se dirigisse ao posto militar mais próximo e que se alistasse. Garcia Vega ficou absolutamente sem ação diante do comentário. Notou que seu interlocutor trajava um uniforme anacrônico, um chapéu militar decorado por um penacho, o jaleco azul claro com fios dourados bordados entre as fileiras de botões, o que o remetia às guerras napoleônicas, ou de modo mais apropriado, a um recém-terminado desfile carnavalesco.

Após as advertências, o homem fez umas breves anotações e desvencilhou-se de uma vez, deixando García Vega absorto em seu desespero. Alguém me ajude!... balbuciou ao chegar no meio da rua, não foi ouvido. Três poderosos estrondos sacudiram as edificações e os poucos automóveis estacionados. Dois cavalos negros, certamente as presenças mais belas daquele episódio, surgiram em galope frenético, na direção contrária a que se dirigia o homem fantasiado, para terminarem sugados pela sofreguidão da noite. Prolongava-se um tempo estagnado, como em uma triste fábula, cuja cronologia se perdia no rumor dos estranhos acontecimentos. 

Já à distância, o hipotético militar voltou-se para García Vega e retomou gestos e palavras perdidas, talvez insistindo para submeter-se ao posto de alistamento o quanto antes. E desapareceu em meio às incertezas da narrativa.



20 dezembro 2021

Ignácio de Loyola Brandão

O livro que desperdicei por anos

Retomo nestes dias a leitura de O verde violentou o muro, de Ignácio de Loyola Brandão. Recolho as lembranças do tempo em que o livro foi escrito, o início dos anos 1980, quando o muro completava seus 40 anos e caminhava, sem que ninguém pudesse imaginar, para o seu ocaso, Loyola Brandão nos mostra meticulosamente as inúmeras facetas da Berlim enquanto cidade isolada, com regulações específicas e características únicas no mundo. Uma Berlim que mal conheci e cujo isolamento me incomodou um pouco quando lá cheguei, no verão de 1989, a ponto de não permanecer na cidade mais do que uma jornada. A voracidade de meu tour pela Europa me fazia deslocar com velocidade e prometer para mim mesmo, como uma pobre justificativa, que os lugares marcantes seriam revisitados no final. Seja como for, a Berlim dividida me escapou em sua complexidade. 
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Lembro que antes dessa grande viagem pela Europa, foram dois meses e meio, eu já dispunha do livro, embora tendo lido umas poucas páginas. Também possuía um guia alternativo, que sugeria lugares pouco turísticos para se conhecer. E para completar, a crítica de cinema promovia repercussões entusiásticas sobre o filme de Wim Wenders, Asas do Desejo (1987). Por estranha razão, nem os livros, nem tampouco o filme, me convenceram naquele momento a permanecer e desvelar os segredos daquela Berlim. Como em um esforço para me redimir da minha inexplicável desfeita, regressaria por três vezes (1991, 2001 e 2010), sempre encontrando uma cidade diferente. 
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E agora, como não houvera feito antes, realizo uma leitura atenta do livro de Loyola Brandão, trabalho resultante de uma bolsa do DAAD que lhe permitiu ficar por 15 meses em Berlim. Seu relato desvela ao leitor cada apreciação ali vivenciada, das pequenas descobertas às evidências mais ordinárias, produzidas por seu incessante caminhar, por seu acurado desejo de ver e conhecer aquela realidade tão distinta. A narrativa se divide em verbetes, se assim podemos chamar, palavras ou frases que ilustram de simples comentários a densas análises, o que faz da leitura um aprendizado agradável. No meu caso, o fato de realizá-la tantos anos depois me proporciona sentimentos contraditórios e simultâneos: ao tempo que me deleito com imensa satisfação às apreensões sugestivas, inventivas, reveladoras de Loyola, experimento uma decepção comigo, como se o livro ignorado e desde sempre à minha disposição na estante de casa liberasse, enfim, um tempo definitivamente perdido e que a leitura recompõe seu desperdício ao não tê-lo vivenciado com meus próprios olhos.
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Não posso negar o prazer em retomar a obra, mesmo com essas tensões, e reencontrar o belo escritor que é Loyola Brandão. Nunca fui um leitor exaustivo de suas obras, conheci alguns contos, alguma crônica nos jornais, mais nada. Nenhum romance, nenhuma obra completa, o que não impediu que admirasse seu estilo e sua maneira autêntica de viver, de se entregar para a escrita. Isso testemunhei em uma breve conversa que tivemos, certa vez, ao telefone. Recordo-me de ter deixado na caixa de correspondência de seu apartamento, na Ministro Rocha Azevedo, três contos para que pudesse avaliar e, se possível, me comentar. Poucos dias mais tarde me ligou, eu não estava. Deixou-me seu telefone e assim conversamos. Foi cuidadoso em seu comentário, "dos três (e ele os nomeou), um me pareceu muito comum, o outro razoável e o último muito bom...". Mas minha memória é falha nesse detalhe, jamais saberei dizer quais foram os textos, e se sobreviveram. 
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O exemplar que disponho é da 11a. edição, de outubro de 1986, o livro foi lançado em junho de 1984. Na forma, tem a qualidade de ter capa dura, e no conteúdo, a desventura de uma péssima impressão, com fotos mal editadas e espaçamento irregular, como se tivesse sido montado às pressas. Embora a revisão de texto seja razoável, existem falhas de composição, coisas como palavras cortadas, espaços em branco. Para falar da obra em si, há temas em que Loyola antecipa a discussão, quando por exemplo, descreve os Peep-shows, cabines individualizadas que oferecem a "chance de se embasbacar (...), com os trejeitos de uma mulher nua ou com um filme (ou vídeo) pornográfico". O peep-show apareceria em destaque no filme Paris, Texas (1984) produzido e dirigido por Wim Wenders. 
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Em outro momento, faz uma leitura política bastante atual para os dias de hoje sobre o capitalismo neoliberal, "Ultrapassar o muro e entrar no ocidente não significa certamente o paraíso (...) os fugitivos não estão acostumados a uma sociedade competitiva, onde tudo se baseia na concorrência, que é brutal e por todos os meios". Como resultado, descreve a análise do jornalista Ricardo Arnt: enquanto no Oeste a pessoas parecem ter medo uns dos outros, no Leste as pessoas são mais amigáveis, exuberantes e francas. Enquanto na RDA (Alemanha Oriental) o medo vinha de fora, na RFA (Alemanha Ocidental) o medo vinha de dentro, do interior das pessoas, com o cinismo tornando-se virtude.
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Quando chegou em São Paulo, em seu primeiro trabalho no jornalismo, escrevia crônicas de cinema em uma coluna do Última Hora, chamada São Paulo S/A, uma explícita homenagem ao filme de Sérgio Person. Loyola sempre gostou de cinema e seu apurado conhecimento aparece no tópico O cinema de papai morreu, em uma extensa análise sobre o cinema alemão, do pré-guerra até o chamado cinema novo alemão. No início dos anos 1980 essa cinematografia que se desdobra em temáticas como o experimental, o feminismo, o cinema operário berlinense, era grandemente desconhecido do público brasileiro, que talvez conhecesse vagamente dois ou três - Wenders, Herzog e Fassbinder. Mas os outros, como Alexander Kluge, Hans Syberberg, Helma Sanders-Brahms, Thomas Brasch, Peter Fleischmann, Jörg Graser, Von Trotta, Marianne Lüdcke, aparecem citados por Loyola, em discussão, eu diria, pioneira, antecipando mesmo a chegada por aqui dessa cinematografia autoral, que revolucionou ao longo de vinte anos o cinema alemão.
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Há igualmente situações curiosas, como um tipo de brincadeira narrativa que perdeu o sentido. No começo do livro aparece o tópico "Steglitz", palavra que Loyola diz acompanhá-lo e não se lembrar do motivo. Ela surge de modo recorrente, até que mais para o final ele desvenda seu significado. Era de fato assim, não tínhamos maneiras objetivas de elucidar uma vaga lembrança, que ocorresse de maneira imprecisa ao longo de uma viagem. Não havia como realizar uma consulta portátil, em um sítio de busca no celular, de modo que, para as gerações mais jovens, essa armadilha da memória não mais se coloca como tal.

(atualizado em 20.12.2021)


11 dezembro 2021

Julian Assange


Não li ou ouvi uma mísera palavra do jornalismo de cativeiro analisando o que significa a decisão da Câmara de Apelações Britânica em acatar o pedido de extradição de Julian Assange, líder do Wikileaks, para os EUA. Triste e lamentável observar o fato, do ponto de vista jornalístico, como consumado.

O calvário de Assange permanece e ao que tudo indica, se prolongará indefinidamente, sem que qualquer analista das mídias corporativas tenha a coragem de denunciar a violência contra a liberdade de expressão. Os pretensos guardiões da moral, que atacam diuturnamente a ausência de liberdade em Cuba, Venezuela, China, se calam cordatos, como se o fato fosse uma decisão política, de segurança nacional.

A propósito, desde que o lawfare se disseminou na política latino-americana, o direito à liberdade de expressão se apresenta como prerrogativa restrita ao jornalismo hipócrita, que serve de correia de transmissão às imposições do poder econômico-financeiro. No lugar da caneta, a espada na mão para vilipendiar tudo o que seja inconveniente à infame ordem neoliberal. 


01 dezembro 2021

Os ossos de cada dia

 

Fila para a compra de ossos

O desgoverno do capitão caminha melancolicamente para seu derradeiro ano, sem que nenhum índice socioeconômico tenha melhorado. Uma tragédia anunciada desde o princípio. Feneceram aos poucos todas as pobres promessas de campanha, exceto aquela em que disse, pouco antes de um jantar em Washington, que seria necessário primeiro destruir o país para então reconstruir. Cumprirá da melhor forma a primeira parte e não terá tempo para a segunda, seja lá o que o desventurado entenda sobre o assunto.

O fato foi que não teve a mínima competência para esboçar um projeto de nação. Se satisfez em negar o que existia e a insultar os que divergem politicamente. Foi diretamente responsável pela tragédia pandêmica, ao postergar a compra de vacinas contra o Covid-19. Foi responsável pelo isolamento diplomático do pais, pela terra-arrasada promovida na saúde, educação e cultura. Acelerou o processo de privatização da Petrobras, onde não temos mais a soberania sobre o nosso óleo e gás e não satisfeito pela bagunça, destruiu as políticas de proteção social, sendo o ato mais recente, a extinção do Bolsa-Família.

E sem falar na catástrofe da economia, com um ministro ineficaz, que não sabe o que fazer com a alta da inflação e do desemprego. Nada a comemorar, portanto, neste final de ano, que esperamos, seja o último deste desgoverno insano e farsante. No próximo, ele ainda estará ocupando o Planalto, mas com data marcada para sair, logo no dia primeiro de janeiro. Só então poderemos contabilizar toda a desgraça produzida em quatro anos. A cena que vemos acima tem se repetido em diversos pontos do país, com a fome grassando e a população pobre fazendo fila para a compra de ossos. Nunca imaginei que poderia reviver essa barbárie em meu país. 

Há treze anos escrevi um conto chamado Ossos para o Natal, que publiquei neste blog. Não se trata de uma visão premonitória, mas de uma lembrança angustiosa que tenho da minha passagem por Ipuã, no início da década de 1980, quando o país declarou a moratória junto ao FMI. Era o final do ciclo de governos militares, a redemocratização ganhava corpo, mas a fome e o abandono das classes menos favorecidas eram parte da triste realidade social no país. 

Perto do quartinho que alugava, existia a única indústria que oferecia empregos em massa, o frigorífico, e me recordo das narrativas do seu Agnaldo trabalhando no setor de descarte e tendo de afugentar as pessoas que lá acorriam como derradeira esperança para preparar um ensopado de ossos. Seu salário era irrisório para um trabalho bruto e indecente. Em determinado momento seu Agnaldo, de quem jamais voltei a ter notícias, era tomado por uma espécie de riso incontido, tomado pelo desconsolo daquela situação. Contava e recontava suas jornadas, sempre com o acréscimo de um detalhe mórbido, como se buscasse purgar os pecados. Havia lágrimas em seus olhos. Estava sempre alcoolizado, pois dizia que aquela experiência era demais para suportar sóbrio. 

Meu conto também acabou publicado em outro blog, o do jornalista Milton Jung, em uma versão modificada, e o inclui no meu último livro, O fragor silencioso de cada dia. Por sua dolorosa atualidade em descrever um episódio que viceja nos territórios de precariedade de nosso país, e agora que nos aproximamos do Natal, o reproduzo abaixo, lamentando que não seja o registro de um passado superado, ou de uma pesarosa narrativa ficcional. 


Ossos para o Natal

Terminou de recolher os ossos, ao tempo em que um novo dia se espraiava. Viu os dois colegas pularem do caminhão carregado e da plataforma de carga, teve mais uma vez a ideia do quanto haviam dado duro para que o veículo pudesse sair na hora certa, a fedentina coberta de moscas se afastando progressivamente, sem que seus olfatos se dessem conta. Deixou os dois colegas e no caminho do banheiro, pode confirmar intuitivamente que não haveria mais abates. O espaço reservado às reses estava vazio e o pessoal da matança se divertia num canto. Era uma situação muito rara essa de terminar o trabalho antes do almoço. Como todos no matadouro, labutou pesado desde a noite anterior, mais de sessenta reses abatidas e carneadas, os ossos avermelhados escorrendo pela calha até estalarem na plataforma de carga, no lugar que todos conheciam como o cu do frigorífico e onde os caminhões encostavam, numa sucessão frenética, para serem carregados pelos três do setor de ossos.

Abriu uma das torneiras do chuveiro coletivo, as gotas frias caindo, esparsas, por poucos minutos. Enquanto se enxugava viu pelo espelho seus dois companheiros entrando para o banho. Mirou-se uma vez mais, viu a imagem esgarçada, cujos traços se definhavam com o passar dos dias e dos meses. O olhar, que um dia fora de perseverança, estava nebuloso. Penteou os cabelos ainda úmidos enquanto pensava na proximidade de mais um final de ano que o pegava desprevenido. Lembrou-se que a noite seguinte seria de Natal, desejos de consumo que afloravam e presentes que se furtavam. Não saberia como encarar seus filhos, para quem as promessas de melhores dias se acumulavam. Maldito emprego, esbravejou para si, chamando a atenção dos amigos. Saiu às pressas, ganhou as ruas banhadas pelo sol inclemente, não conseguiu sentir-se livre.

Pensou em beber um trago no boteco, diante do ponto de ônibus, afinal ainda era cedo. Os amigos o convidaram para o bilhar. Bateu a mão no bolso, parte do dinheiro do vale estava ali, bem, por que não um joguinho? Tentou desabafar antes das tacadas, reclamando dos seus fracassos, que por serem também dos demais, caíram no vazio. Ninguém estava a fins de lembrar da vida, mas aproveitar o jogo e beber. Vieram à baila os prognósticos do campeonato do bairro, comentários da prisão do Bola Sete, as mulheres do imaginário e da vida real... e o tempo passou. No final da tarde, já bem grogue, resolveu ir para casa, mais pela falta de dinheiro do que por vontade própria.

A noite pronunciava-se com a languidez habitual, quando sua silhueta despontou no alto da rua de terra. Brincando em frente do barraco, o filho menor viu o pai se aproximar. Os demais filhos e a mulher o receberam, num silêncio ainda mais grave que de costume. O mesmo homem, bêbado, sem forças, ruminando desgosto. Ele tirou da mochila dois belos ossos com alguma carne em seus interstícios, colocou-os na mesa junto com a roupa suja e foi para o quarto, desabando na cama até o dia seguinte.

(atualizado em 01.12.2021)



18 novembro 2021

The sheltering sky


O Céu que nos Protege (1990)
 

É curioso um blog que promove em grande medida a política, a literatura e a cultura latino-americanas, tenha o nome de um livro de contos de um escritor estadunidense. Na verdade, Paul Bowles representa aquele artista descolado no tempo e no espaço, sempre em busca de novos horizontes para sua arte, de outros convívios para sua inquietude. Suas viagens foram mais expressões de um burguês a procura dos desígnios de sua vida, com a virtude de que não se satisfazia facilmente com o que encontrava. Tinha grana suficiente para lançar-se ao mundo, com suas imensas bagagens, e assim poder pesquisar sua música e escrever seus romances. Foi bem sucedido em seus projetos, e teve o merecido reconhecimento como compositor e como escritor. 

Ainda assim isso não explica objetivamente a escolha pelo título do blog. Em algum momento anterior, devo ter comentado de passagem o móvel desta escolha, e o retomo ainda uma vez: seus textos me marcaram profundamente. Um pouco para além disso, eles não se alinham a uma escrita burguesa, acomodada, que se satisfaz com futilidades. Mesmo que em determinados momentos de sua narrativa seja possível identificar a cultura hegemônica do colonizador, seu esforço em descrever, por exemplo, a paisagem, a vida, os costumes de um lugar com tantos contrastes, expõe a sinceridade de seu olhar para um mundo que não era o seu. Incorpora naturalmente as especificidades de uma existência completamente distinta da que levava em Nova Iorque. 

Seus últimos cinquenta anos foram vividos tranquilamente em um rincão de Tanger, sem abandonar os costumes burgueses de sua origem, porém bastante atento à cena cultural marroquina. Quando pude assistir o filme de Bertolucci, cuja linda sequência final destaco acima, a obra de Paul Bowles ganhou relevância para mim. Por estas e outras razões talvez mais subjetivas, o reconhecimento deste blog ao nome de um autor gringo, no aniversário de sua morte.



14 novembro 2021

Eleições legislativas na Argentina

Calle Santiago del Estero, 2015

Eleições encerradas, 18h30. Teremos em menos de uma hora os primeiros resultados do sufrágio que irá renovar la mitad de Diputados y un tercio del Senado. Nas primárias abertas simultâneas e obrigatórias (PASO) ocorridas em setembro, a derrota oficialista foi contundente: Juntos por el Cambio, a oposição majoritária de cariz conservador, reuniu 41,53%, um acréscimo de pouco mais de 11% em relação às últimas eleições; a Frente de Todos, grupamento que comanda as duas casas legislativas e o executivo, peronista, reuniu 32,43%, uma queda de mais de 32%. A coalizão de direita teve 6,41%, sob a liderança de uma figura folclórica, Javier Milei, e conseguiu mais votos que, por exemplo, a Frente de Izquierda (5,12%) e outra coalizão peronista, mas rompida com o kirchnerismo, Vamos con Vos, (5,54%). Milei é uma espécie de Bolsonaro argentino, não tão tosco e fútil, mas igualmente fanfarrão, bastante popular entre os jovens. 

O que se espera, no bunker do oficialismo, é que ao menos a diferença seja reduzida, uma vez que o tempo passado entre as PASO e estas eleições foi de dois meses. Já se sabe que houve um acréscimo de 10% no número de votantes, o que não significa que seja uma boa notícia para o governo. Tenho ouvido pelas manhãs a programação da rádio AM 750, sob o comando da equipe de Victor Hugo Morales, onde diariamente acompanho as análises da complexa conjuntura política que afeta o desempenho governista, assim como os problemas econômicos crônicos, como desemprego e a alta inflação, que não foram devidamente atacados. Ouço agora os primeiros informes vindos de distintas províncias, e as análises seguem muito cautelosas. Nada parece indicar, até o momento, que haja grande mudança em relação às eleições primárias. Aguardemos.



10 novembro 2021

Sobre a irresponsabilidade cognitiva


Un callejón sin salida - Mazatlán, 1997

Acompanhamos, nestes dias e semanas, o doloroso calvário de um querido amigo, ainda jovem, que integra com brilho nosso grupo de pesquisa. Quando se infectou com o vírus, foi dispensado após alguns dias pelo médico que o atendeu, os pulmões debilitados. Pensamos muito nessa decisão que entregava o paciente à recuperação por sua conta, longe de um atendimento médico mais cuidadoso. Poucos dias depois, muito fragilizado, buscou nova internação em outro hospital. 

A doença foi cruel com ele, imobilizando-o em uma cama, com ajuda de respiração mecânica, por mais de um mês. Foram poucos os momentos de esperança, que emergiam quando o quadro apontava alguma melhora. A dor que se instala e permanecerá está contaminada pela revolta contra uma parcela dos profissionais de saúde da medicina privada e de operadoras de seguro de saúde (espero que pouco significativa), que, ao contrário dos profissionais de saúde do SUS, profundamente empenhados e sob condições precárias de trabalho, assumiu ao longo da pandemia um papel lamentável, de pouca dignidade profissional na atenção ao paciente e ao considerar, equivocadamente, o tratamento preventivo amparado por medicações como a cloroquina ou ivermectina, tal como esse desgoverno sempre estimulou. 

Desde os primeiros meses, organismos nacionais e internacionais sérios (como, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde), desacreditaram esse tratamento. Nosso amigo deixou o hospital, na primeira vez, com os pulmões funcionando 50%, ou seja, sem uma ventilação suficiente. Teve de retornar e não mais saiu. De outros hospitais soube-se, por testemunhos na CPI da Covid-19, que após algum tempo se optava por tratamento paliativo, vale dizer, fora da UTI, com aplicação de morfina, no aguardo da morte dos pacientes. Atitudes no mínimo suspeitas, que estão a ser investigadas pela justiça. 

O mais grave foi o capitão-presidente, junto ao amontoado de inconsequentes que ocupam funções administrativas, postergar por meses a compra das vacinas. Atuaram, ao que tudo indica, em uma falsa hipótese de imunidade coletiva. Com base no diagnóstico sério de médicos e cientistas comprometidos com os valores humanos, se as vacinas chegassem a tempo salvariam milhares de pessoas do sofrimento físico, das sequelas da doença e da morte. Milhares. Se não foi um genocídio cientificamente calculado, foi uma atitude que culmina, segundo a última versão do inquérito, produzido pelo relator da CPI Renan Calheiros, em nove crimes distintos, dentre eles, crime de epidemia com resultado de morte e crime contra a humanidade. 

Passamos, no Brasil, por um momento tenebroso e muito triste. Não tem bastado sofrer com as políticas de aniquilamento das redes de proteção social, dos direitos trabalhistas, da educação pública; muitas famílias também sofrem com a hipocrisia e a canalhice especulativa, que em sua irresponsabilidade cognitiva condena uma nação ao opróbrio. Esse estado de coisas leva aos defensores da democracia e do estado de direito a incorporar uma resistência decidida e a determinação renitente de riscar do mapa, nas eleições do ano que vem, os integrantes de um desgoverno inepto, que de maneira deliberada afligiu centenas, milhares de famílias brasileiras, por mais que muitas delas insistam em não tomar consciência disso.

(atualizado em 13.11.2021)



08 novembro 2021

Tardezinha

Día de los muertos, S. Eisenstein

A morte, esse evento estranho e absurdo. Como considerá-la a partir de nossa compreensão tão limitada? Temos a constatação externa, que não contempla o para-si em sua angústia, que aos poucos desliza para uma condição em-si. Esse processo de nadificação de fato apaga a subjetividade? De outra parte, as correntes genuínas de amor, que se formam no entorno desse para-si em vias de tornar-se em-si, vindas de outros para-si, não conseguem alterar um grão de areia o completo apagamento existencial? O mais estranho de tudo é que o prosseguimento da vida social trata de solapar essa lembrança pontual, com a finitude de todas as testemunhas restantes, que seguirão, ao fim e ao cabo, o mesmo processo de extinção que observaram. Tanta dor e tanto sofrimento absorvidos em um determinado momento, se diluem com o passar dos anos, no esquecimento. Outros personagens, outras realidades se sobrepõem, e aquele momento angustiante se desvanece no pó.

Lembro-me, e talvez eu seja a derradeira testemunha dessa imagem, há quase cinquenta anos, quando da morte de um primo, em Londrina. Ao chegarmos em sua casa, num bairro simples, ainda com muitas casas com quintais de terra, encontrei meus tios, os pais do jovem morto, absolutamente inconsolados em sua dor. Foi a primeira e a última vez que vi aquele casal, sorridente e alegre, chorar. Estavam do lado de fora da casa, choravam em silêncio, apartados de uma pequena aglomeração que tomava conta do interior da casa e começava a se esparramar para fora. Permaneceram abraçados e sem dizer palavra por horas. Ambos, como a maior parte dos presentes, morreram, e conforme a expressão de Simone de Beauvoir, a morte do filho os separou e a morte dos pais não os reuniu. 

Os que sobrevivem, e são poucos, perderam a lembrança do episódio, e ele se dissipa; resta a minha versão, da qual ninguém está interessado nas particularidades, mas no significado do fim como sendo uma narrativa outra da tragédia humana. Os seres que naquele exato momento se revoltavam pela morte prematura, compartilharam dessa dolorosa singularidade, cometeram o bem necessário de experimentar coletivamente a provação. Aquele acontecimento os alimentou durante anos, em torno da fogueira dos reencontros, das conversas, das escolhas. “Eu revolto-me, logo existimos”, diz Camus em seu ensaio O homem revoltado. As atitudes posteriores não amenizaram o fato, não absorveram a dor. Agora aquelas pessoas não mais estão e a finitude que nos condena levou com eles a revolta.  

Testemunhar um acontecimento e mantê-lo vivo me parece uma tarefa heroica, que não nos faz mais ou menos humanos, mas nos torna imprescindíveis, porque o nosso relato necessita desta sobrevivência, ainda que tênue, para alimentar a condição de seres comunais. A lembrança é o prumo da caminhada, com ela, amenizamos a angústia da existência ao relembrarmos os momentos, ao dividirmos com os outros as alegrias ou as tristezas, ao realizarmos o futuro a cada instante. Serei testemunha de outras mortes, contarei seus episódios, as nuances ocultas e desveladas por minha intenção, até que venha a sentir o estertor, e nada poderei fazer. E será mais um fim a se narrar, mesmo que por um breve tempo.        

(atualizado em 09.11.2021)



05 novembro 2021

Robert Walser - um conto

 

Robert Walser (1878-1956)


O modo como fui apresentado a Robert Walser foi absolutamente incidental, em um lugar próprio para descobertas literárias: um vagão de metrô em Paris. Pelo menos até há dez anos, era comum ver as pessoas passar o tempo da viagem lendo, em circunstâncias as mais diversas, sentados, de pé, empoleirados um nos outros durante os horários de pico. Sempre curioso, observava a capa dos livros lidos e chamou-me a atenção um jovem adolescente lendo um autor chamado Robert Walser, que desconhecia por completo. Ele não desgrudava os olhos da leitura, então fixei-me no título, Nouvelles du jour

Busquei um exemplar e logo encontrei numa livraria. Trata-se de uma compilação em formato de bolso (essas maravilhosas opções baratas que encontramos em editoriais pelo mundo) de histórias curtas, "quelque chose d'expérimental et de prudemment tâtonnant". A leitura dinâmica que realizei na ocasião me aproximou do estilo daquele autor desconhecido, que se acercava de maneira bem peculiar das situações prosaicas do cotidiano. Poucos anos mais tarde, encontrei em uma livraria portenha um exemplar em espanhol de Walser, que passou a me acompanhar nas andanças do dia a dia, e que acabei esquecendo em uma sala de aula de Córdoba. 

De lá para cá, o nome de Robert Walser assumiu seu lugar de destaque em minhas simpatias literárias, sem que me aproximasse do livrinho em francês. Fiz umas poucas leituras de sua biografia, contextualizei sua vida no período histórico em que viveu, curioso em desvelar o método de escritura, as inspirações temáticas, as preocupações existenciais. Escreveu em diversas revistas alemãs e suíças, sua escritura singular foi apreciada por Benjamin, Hesse, Musil, dentre outros. 

Duas coisas em comum com Kafka, que também admirava seus textos: teve um editor e mecenas, Carl Seelig, que cuidou da divulgação de sua obra para o mundo. Walser passou mais de vinte anos em um sanatório, levando uma vida discreta, mais preocupado com os passeios pelas cercanias da clínica, restringindo sua escritura a textos epistolares, cartas redigidas para as irmãs Lisa e Fanny.
 
Abaixo, com significativo atraso, faço um singelo reconhecimento a esse silencioso e modesto escritor, traduzindo a narrativa Nouvelles du jour, cujo texto original em alemão foi publicado na revista berlinense Die Weltbühne, em março de 1921.

Notícias do dia

Hoje, eu estou em melhores condições que antes, uso um chapéu ultra chic, me comporto de acordo, pago minhas faturas pontualmente e minha senhoria é mãe de duas garotas que se relacionaram com dois doutores em filosofia. Com o tempo, estes senhores, em busca de novas relações, se separaram de suas esposas. Bah, a frieza e a infidelidade são horríveis.

Logo, o que há de novo? Recentemente, alguém deu uma conferência sobre Dostoiévski, então, era sobre o tema do valor da psiquiatria na sociedade. Um palestrante se pronunciou sobre o sectarismo, ele era contra. No teatro, representaram Marie Stuart: nessa ocasião, eu revi a senhorita Else Heims.

No restante, me senti muito bem, aqui em Berna. Certamente eu não sou mais tão independente, trabalho em um escritório, ou antes, em uma espécie de sala abobadada, computo toda sorte de velhas atas, dossiês, cartas, relatórios, prescrições, estabeleço listas e tarefas que fazem parte de meu serviço, o que considero bastante charmoso, mesmo quando devo me esforçar um pouco mais.

O mais belo é que tenho plena consciência. De outra parte, esta honrosa disposição jamais falhou comigo, que eu saiba. Acabo de perder, infelizmente, um lindo dente são, o que por bondade não é um grande infortúnio. Certamente, de agora em diante eu ando com a falta de um dente da frente, mas continuo a amar o que faço, sobretudo à noite depois do trabalho, e no sábado à tarde.

Toda a gente sai, confiante e saudável, o ar está suave, pleno de aromas, e esqueço tudo, torno-me novamente aquele que sempre fui, sou feliz e cumpro toda sorte de pequenos encontros agradáveis, pertenço ao mundo e o mundo me pertence, e o mundo é vasto, e meu coração é tão forte, embora não seja mais tão jovem.

Mas a juventude e a velhice, o que são elas comparadas ao infinito da natureza, o que são comparadas a essa ideia excitante e desse sentimento onde todas as mínimas diferenças se anulam?


(Tradução do texto em francês Nouvelles du jour, da obra homônima Nouvelles du Jour, Proses brèves II, Carouge-Genève: Éditions Zoé, 2009).

(Texto atualizado em 05.11.2021)



01 novembro 2021

Presença do senhor Montero


A fonte que o senhor Montero não conheceu

Enquanto converso com mamãe, não me escapa a presença silenciosa de papai. De um momento para o outro, transformo minha audição em uma ficção memorial, se é que isso pode se considerar. Com a referência de um tal Monti, de origem italiana, que fazia parte da vida cotidiana da pequena Buganvília, sou levado a imaginar como seria sua face, suas expressões, seus gostos, e talvez o mais importante, como se relacionava na amizade com meus pais. A um pedido meu, mamãe passa a descrever aquele rapaz com muito bom gosto e clareza nos detalhes, Era um jovem tímido, não tinha nada de elegante em sua maneira de se vestir, mas possuía um charme irresistível quando a gente se aproximava para conversar... ele morava a duas quadras, no final da rua de nossa casa, e lembro que em um dia de Natal... 

Por nossa casa, ela queria dizer a casa de meus avós. Com um pouco de esforço, consegui lembrar da rua, naqueles longínquos anos em que viveram sua juventude, não mais do que uma vereda de terra-roxa, que cruzava os baixios da avenida principal. Nos meus tempos de infância, ela já possuía calçamento de paralelepípedos, já com muros de tijolos no lugar dos cercados de madeira. De todo modo, sempre me é um esforço hercúleo recordar com nitidez essas paisagens, nunca mais regressamos a Buganvília, quero crer que desde o falecimento de vovó, há quase trinta anos...

Mamãe prosseguia, Monti já era casado e seu bisneto, Roberto, agora se casava com uma prima minha de terceiro grau. Imagens da festa chegaram ao celular de mamãe, que não pôde comparecer e com elas se entreteve ao longo do sábado. Agora, no almoço de domingo, enquanto nos deliciávamos com o arroz, feijão e polenta, ela trazia os desdobramentos dessa inequívoca relação, o jovem e o velho Monti, me esforçava para não os confundir em uma única imagem. Ao longo dessas lembranças, eu gostava de confirmar minha teoria de que as relações nunca se esgotavam, ao contrário, mostravam-se muito circulares, a cada nova lembrança da velha e da nova Buganvília se estabelecia uma certa linha de continuidade, onde as histórias ainda não contadas se complementavam no presente, e seguiam abrindo caminho para o futuro. 

Houve o tempo em que papai e mamãe borbulhavam nomes daquele tempo, os Brandinelli; Bernardo, o filho da Pepa; Zé Preto e seus irmãos, Honório e Rufino; Tomás Chato; Tarzã, o que morreu engasgado ao comer castanhas; Rigoberto e Josefina; os Delgados, donos da mercearia atrás da igreja, personagens que não cansavam de surgir nos relatos infindáveis de juventude. Era bonito de se ver. Sempre um novo episódio, um personagem convidado, uma história curiosa. Houve um tempo em que as recordações eram compartilhadas, agora só mamãe tem o dom da lembrança, quanto a papai, resta sua presença, o que não deixa de ser um fato significativo para mim.

Por que o digo? Poderão achar tolice, mas me agrada sua expressão silenciosa, enquanto ouve os relatos e mastiga serenamente a comida. Está anos-luz de distância de cada detalhe explorado em minúcias por minha mãe. Para ele, é como se não tivesse vivenciado quaisquer daquelas aventuras. Em um ou outro momento se detém, como a reconhecer alguma passagem da narrativa, como se ele pudesse agregar, de súbito, um outro viés, uma outra interpretação. Mamãe aproveita o momento e pergunta, lembra disso?, ao que os olhos de meu pai buscam algo a acrescentar, no espaço entre nós, alguma evidência por trás de um utensílio disposto na cozinha, para, ao final de um tempo, assentir com a cabeça, capitulando em meio a seu esforço. Essa concordância fugidia me atrai e me emociona: por mais que não se recorde absolutamente de nada, o brilho de seus olhos comprova que estava lá, que era um dos protagonistas da história. 

Por um átimo de tempo, sou levado a imaginar o que era Buganvília naqueles primeiros tempos, em que cada ato, cada decisão, guardava em si bocados grandiosos de ações pioneiras, dessas que ajudam a construir uma comunidade. Por trás de cada gesto, o amor, a amizade, a dificuldade em meio àquela terra ignota, a bravura, a superação. Então, a expressão de Monti, ou senhor Montero, meu pai, que não guarda mais a impulsividade de sua ascendência italiana, ganha um sentido iluminado, pelo simples fato de estar diante de mim, por estar vivo após tanta fortuna e tribulação, e que se transformam em narrativas afetivas nas versões de mamãe, e nas elucubrações de minha imaginação quando as ouço. 

(atualizado em agosto/2022)


26 outubro 2021

Paulina Chiziane

Paulina Chiziane

As grandes premiações pelo mundo costumam ter o mérito (mas nem sempre) de lançar para o público leitor nomes de escritores raramente considerados pela mídia corporativa. Neste ano, surgiram dois nomes bem desconhecidos, Abdulrazak Gurnah, escritor da África negra premiado com o Nobel de Literatura (o que não acontecia desde 1986), e Paulina Chiziane, escritora negra moçambicana, imortalizada pelo prêmio Camões. Um duplo acontecimento espetacular, sem dúvida grandioso, e tal como a passagem do cometa Halley, levará décadas para se repetir!

Tomo o caso da premiada lusófona, Paulina Chiziane, o que sabíamos dela? Muito pouco. Eu, particularmente, nunca tinha ouvido falar e nesse sentido, demonstro a falha inadmissível de meu desinteresse. Paulina já faz parte do acervo de algumas editoras brasileiras, como a Dublinense (O alegre canto da Perdiz) e a Companhia das Letras (Niketche). Ainda não houve tempo para me debruçar em sua narrativa, mas assisti a diversas entrevistas suas, dadas em Moçambique, Portugal e até aqui no Brasil. 

A primeira delas, a mais longa (1h e 17 min) e mais recente (maio deste ano), foi a que me apresentou à Paulina de maneira profunda. Impressionou a delicada contundência de suas revelações. Sua fala é explícita, sensível, não se furta em avaliar os temas propostos, por mais espinhosos. Expõe, por exemplo, sua postura dura contra a hipocrisia dos grupos religiosos, "a oração é levada como uma receita fácil (...) usam a capa da oração, que não passa de uma atitude hipócrita", que trouxeram pouca compreensão ou conforto espiritual quando esteve em tratamento psíquico, há uns dez anos. 

A doença mental trouxe de algum modo o lado bom dessa dolorosa experiência, ao entender melhor os valores do mundo social. Juntamente com a decepção com os grupos de oração e com as pessoas "dos grandes salões", teve as pessoas anônimas que lhe estenderam a mão. Sua fala discorre sem atropelos ou rancor, apenas relata os momentos difíceis desse momento em que esteve no chão. 

Como ela diz, conseguiu curar-se ao concentrar-se em si, "todo fim é o princípio de uma vida nova (...) o fato de eu estar muito só deu-me força". É muito bonito quando ela diz que "não acredito em Deus, tenho a certeza!...". Descarta a fé, pois entende ser uma crença induzida por alguém e repete, tenho a certeza! (da existência de Deus). O que não impede que seja uma mulher de pensamento livre, profundamente defensora da africanidade na cultura, na educação, apontando o preconceito e a ignorância pelo desinteresse em se conhecer a história, "falar de África é falar de mim, de minha existência, da minha resistência (...) falar de África para mim significa dizer: acorda!".

Um momento sublime da entrevista é a descrição do "ponto alto" na vida, quando foi convidada para a Feira de Frankfurt e ficou sentada em uma mesinha, apartada do galpão onde se encontravam os grandes escritores. Foi o que a fez conhecida, perguntavam quem é aquela mendiga? Pois era uma mulher simples, e uma escritora com histórias a contar. Histórias que nos ajudam a desvelar a vida, as crenças, os costumes cotidianos de um imenso continente explorado e vilipendiado, a África.


20 outubro 2021

Tangidos e motivados

 

Tutlingen, 1989


"No fundo, vivemos de sobras e nos damos por felizes com isso. Sobras de salário, de tempo, de espaço, de paciência, de sonhos, de prazeres. Não nos alegramos mais com a imensidão convidativa, mas com os bocados proibidos, e nos esfalfamos cada vez mais para obtê-los. Só duas coisas contradizem essa, digamos, norma da existência pós-moderna, que se espraiam indefinidamente. Uma é a miserabilidade, plena em sua amargura, outra é a presença de deus, plena em sua bondade. Entretanto, usufruí-las não resulta de conquistas humanas, mas da imposição daqueles que possuem as maiores sobras. E assim vamos sendo tangidos, motivados pelas cartilhas de autoajuda, entusiasmados com a tecnologia e felizes em podermos adquiri-la com as migalhas espargidas pelo caminho."

 

(in Diários, 19 de dezembro de 2006)



06 outubro 2021

Julio Ramón Ribeyro - um conto

 


Se há uma beleza neste texto do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro (1929-1994), ela está na habilidade com que descreve uma Lima que vai aos poucos desaparecendo, em meio à especulação do espaço urbano do final dos anos 1950, quando escreveu o conto. Mas há mais belezas, se podemos chamar assim, situadas nas contradições dialéticas da narrativa, que conduz o leitor para Lince, subúrbio do subúrbio, desses lugares que proliferaram mais ou menos na mesma época nas urbes latino-americanas - conforme registra o historiador argentino José Luis Romero em seu Latinoamérica: las ciudades y las ideas - onde as periferias que se formam sob o fluxo migratório já nascem abandonadas, desprovidas de equipamentos e de dignidade. 

Ou poderíamos recuperar as descrições do real maravilhoso em Carpentier, com seus imbricados encantos e dramas cotidianos, onde se inscreve os desígnios do barroco latino-americano. Em Lince a beleza regurgita e se desdobra em múltiplas feições: se pronuncia em seu duro oposto, a miséria generalizada, de onde se estrai o gesto solidário, sem compromisso. O olhar inquieto do autor, no aparente olhar atento de seu personagem principal, nos revela o súcubo que suga a força vital das pessoas. 

Ramón é um estranho no lugar, e não terá as informações que deseja. É a mão visível de um capitalismo que expropria até as vísceras, e todos no bairro lhe negam informações. Mas mesmo essa mão visível que aparece para escavar ainda mais, dotada de mínima compreensão da condição humana, é capaz de sensibilizar-se. Ou ao menos de suspender seu papel de capataz indolente. A concisão do relato, um conto de quatro páginas, é mais do que suficiente para compreendermos a vertigem imobiliária, suas vítimas - criminalizadas pelo discurso dominante - e os vestígios humanos, que apenas amenizam a violência das disparidades sociais.

   

Endereço equivocado

Ramón deixou o escritório com a pasta de documentos sob o braço e se dirigiu à avenida Abancay. Enquanto aguardava o ônibus que o conduziria a Lince, se distraiu contemplando a demolição das velas casas de Lima. Não passava um dia sem que era posto abaixo um solar da época da colônia, um balcão de madeira talhada ou simplesmente uma dessas aprazíveis quintas republicanas, onde em outros tempos se forjou mais de uma revolução. Por todas as partes se levantavam altivos edifícios impessoais, semelhantes aos que havia em cem cidades do mundo. Lima, a adorável Lima de adobe e de madeira, ia se convertendo em uma espécie de quartel de concreto armado. A pouca poesia que restava se refugiava nas pracinhas abandonadas, em uma ou outra igreja e em uma vintena de casarões principescos, onde velhas famílias definhavam entre pergaminhos e daguerreótipos amarelados.

Essas reflexões não tinham nada que ver, evidentemente, com o ofício de Ramón: detector de devedores contumazes. Seu chefe, nesta mesma manhã, lhe havia ordenado que fizesse uma pesquisa minuciosa por Lince para encontrar a Fausto López, cliente nefasto que devia para a firma quatro mil soles em tinta e papel de imprensa.

Quando desembarcou do ônibus em Lince, Ramón sentiu-se deprimido, como em cada vez que percorria esses bairros populares sem história, nascidos há vinte anos pela arte de alguma especulação, mortos tão logo encheram alguns bolsos ministeriais, pobremente enterrados entre a grande cidade e os luxuosos balneários do sul. Viam casinhas achatadas de um andar, calçadas de terra, trilhas poeirentas, ruas retilíneas enevoadas onde não crescia uma árvore, uma planta. A vida nesses bairros latejava um pouco nas esquinas, no interior das vendas, animadas pelos proprietários e por bêbados.

Consultando sua pasta, Ramón se dirigiu a uma casa da vizinhança e percorreu seu longo corredor perfurada de portas e janelas, até uma das últimas casas.

Bateu à porta por vários minutos. Por fim ela se abriu e um homem sonolento, com uma camiseta esburacada, espreitou com o tronco.

- Aqui vive o senhor Fausto López?

- Não. Aqui vivo eu, Juan Limayta, encanador.

- Nessas notas indica este endereço - alegou Ramón, mostrando os documentos.

- E daí? Aqui vivo eu. Procure em outro lugar - e fechou a porta.

De volta à rua, Ramón ainda percorreu outras casas, indagando ao acaso. Ninguém parecia conhecer a Fausto López. Tanto desconhecimento fazia Ramón pensar em uma ampla conspiração distrital, destinada a ocultar a um de seus vizinhos. Apenas um homem lembrou vagamente.

- Fausto López? vivia por aqui, mas faz tempo que não o vejo. Parece que já morreu.

Desalentado, Ramón entrou em uma mercearia para uma bebida. Apoiado no balcão, próximo a um banheiro pestilento, sorveu vagarosamente sua coca-cola. Quando pensava em regressar, derrotado, ao escritório, viu entrar na mercearia um garoto que tinha nas mãos uns programas de cinema. A associação foi instantânea. No ato o abordou.

- Onde você pegou essa programação?

- Da minha casa, de onde poderia ser?

- Teu pai tem uma impressora?

- Sim.

- Como se chama seu pai?

- Fausto López.

Ramón respirou aliviado.

- Vamos até lá, preciso falar com ele.

No caminho conversaram. Ramón soube que Fausto López possuía uma impressora de mão, que havia mudado havia alguns meses a poucas quadras de distância e que vivia de imprimir a programação para os cinemas do bairro. 

- Quanto te pagam para distribuir a programação.

- Meu pai? Nem um centavo! Os donos dos cinemas me deixam entrar grátis para assistir os seriados.

Nos bairros pobres também há categorias. Ramón teve a impressão de estar pisando o subúrbio de um subúrbio. Já os pequenos casebres haviam desaparecido. Apenas se viam becos, altos muros dos cortiços com sua grande porta de madeira. Minguaram os postes de iluminação e surgiram as primeiras valas carregadas de imundície.

Próximo dos trilhos, o rapazinho se deteve.

- É aqui - disse, indicando uma passagem sombria - A terceira porta. Eu vou embora porque tenho de distribuir tudo isso pela avenida Arenales.

Ramón deixou o menino partir e ficou por um momento indeciso. Alguns garotos se divertiam atirando pedras na vala. Um homem apareceu, assoviando, vindo da passagem e lançou em suas águas o conteúdo duvidoso de um penico.

Ramón adentrou até a terceira porta e a golpeou várias vezes com os punhos. Enquanto esperava, lembrou das recomendações de seu chefe: nada de ameaças, cortesia senhorial, espírito conciliatório, confiança contagiosa. Tudo isso para não intimidar ao devedor, regressar com o endereço exato e poder iniciar o juízo e o embargo.

A porta não se abriu, entretanto, uma janela de madeira, pequena, como a moldura de um retrato, deixou a descoberto um rosto de mulher. Ramón, desprevenido, se viu tão subitamente frente a essa aparição, que apenas teve tempo de ocultar a pasta com os documentos às costas.

- O que deseja? O que há? - perguntava insistentemente a mulher.

Ramón não tirou os olhos daquele rosto. Algo nele o fascinava. Talvez o fato de estar demarcado pela janelinha, como se se tratasse de uma cabeça guilhotinada.

- O que você quer? - prosseguia a mulher - A quem procura?

Ramón titubeou. os olhos da mulher não o abandonavam. Estava tão perto dos seus que Ramón, pela primeira vez, se viu introduzido no mundo secreto de uma pessoa estranha, contra sua vontade, como se por negligencia tivesse aberto uma carta dirigida a outra pessoa.

- Meu marido não está! - insistia a mulher - Saiu de viagem, regresse outro dia, eu lhe rogo...

Os olhos seguiam cravados nos olhos. Ramón seguia explorando esse mundo sem espaço,, presa de uma súbita curiosidade, não como quem contempla os objetos que estão detrás de uma vitrina, mas como quem trata de reconstruir a lenda que se oculta por trás de um encontro. Somente quando a mulher continuou seus protestos, com a voz cada vez mais desfalecida, Ramón se deu conta que esse mundo estava deserto, que não guardava outra coisa que uma duração dolorosa, uma história marcada pelo terror.

- Sou vendedor de rádios - disse rapidamente - Não quer comprar um? Nós os fazemos muito baratos, a prazos.

- Não, não, rádios não, já temos, nada de rádios! - suspirou a mulher e, quase asfixiada, fechou violentamente o postigo.

Ramón ficou por um momento diante da porta. Sentia uma insuportável dor de cabeça. Colocando sua pasta sob o braço, abandonou a passagem e se pôs a caminhar por Lince, procurando um táxi. Quando chegou a uma esquina, pegou o documento, o contemplou por um momento e debaixo do nome de Fausto López escreveu: "Endereço equivocado". Ao fazê-lo, todavia, teve a suspeita de que não procedia assim por justiça, nem sequer por essa virtude suspeita que se chama caridade, mas simplesmente porque aquela mulher era um pouco bonita.

(Tradução do original em espanhol Dirección equivocada, Editora Catedra, Madrid, 2017).

(Atualizado em 24.11.2021).