26 dezembro 2021

Final de ano

Veronese, Bodas de Caná

A fome ressurgia, roendo-me o peito e dilacerando-me com picadas que me faziam estremecer de dor.
Knut Hamsun.

Nada parece mais dramático do que o final de ano que vivemos. Fruto de um desgoverno incapaz - ou decididamente capaz para a destruição - alcançamos um nível de desequilíbrio social que não se via há décadas. O que vemos é fome, desemprego e desesperança. Na região mais rica da cidade de São Paulo, o eixo da avenida Paulista com a rua Augusta, se concentram os escritórios de conglomerados financeiros, lojas nobres do comércio varejista e serviços, espaços culturais sofisticados, a sede do setor de indústrias do Estado (a Fiesp), excelentes bares e restaurantes com grande afluência de público, ou seja, toda uma variedade que garante a pujança econômica diferenciada a esse território urbano. Convivendo ao lado desse poder econômico, espraia-se de maneira indistinta, em número crescente, uma massa de gente famélica que se instala como pode em seus barracos improvisados ou em esteiras ao relento, a perambular à cata das sobras, em uma sinistra realidade paralela, muitas vezes ignorada. Gente lançada à própria sorte, que mais se assemelha a um contingente de refugiados de guerra perambulando por imenso acampamento, à deriva. 

“O território em si não é um conceito. Ele só se torna utilizável para a análise social quando o consideramos a partir do seu uso", diz Milton Santos, em meio a esse território de intensa circulação de capital, comandado pela racionalidade dos interesses hegemônicos. Por esta razão, talvez, a região da Paulista representa para o imaginário paulistano a força de um território imponente, que não se debilita, não se desgasta pela fragmentação das imagens e dos ritmos conflitantes, onde os atores despossuídos tornam-se invisibilizados pela predominância da velocidade e da fluidez tecnológica dos atores mais poderosos.

Já vem de longe a incompreensão por esse desdém coletivo diante da fome. Josué de Castro, geógrafo cujo trabalho deveria ser recuperado nestes tempos de miséria neoliberal, no prefácio da primeira edição de seu Geografia da Fome (1946), escreveu: "Quais são as causas ocultas da verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. (...) Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente". (...) Mesmo em meu curso de Geografia, cumprido no final dos anos 1980, quando vivíamos um quadro de carência nutricional semelhante ao que vivemos hoje, não me lembro de haver uma disciplina que discutisse de maneira realista o problema da fome. Em suma, não era assunto discutido em sala de aula. Josué de Castro pagou por suas ideias e foi mais uma das brilhantes cabeças exiladas à força pelo malfadado regime militar, juntamente com Celso Furtado, Paulo Freire, Augusto Boal e muitos outros. 

O final de ano consolida, nas pesquisas de opinião realizadas recentemente, um quadro de derrota desse desgoverno incapaz, ou decididamente capaz para a destruição. No horizonte, e mesmo já dentre nós, nas discussões políticas que surgem aqui e ali, anuncia-se como inescapável a vitória de um governo Lula, que dentre diversas prioridades, certamente restabeleceria um plano mínimo de combate à fome - quem sabe a partir de um Bolsa Família robusto, que como o anterior, também incorpore em seus propósitos a capacidade de mobilizar economicamente a sociedade local em torno de escolaridade e consumo. Quero muito sentir a esperança de meu vizinho, morador das ruas, como uma certeza a se realizar. Ao final de nossa conversa, há alguns dias, pediu para que "este Natal seja de muita saúde e de muita voz". Um pedido que por certo se repetiria para os votos de Ano Novo e para a continuidade do ano de 2022. Muita saúde para poder viver e sonhar, muita voz para expor com firmeza a indignação por tanto descalabro. 

(atualizado em 27.12.2021)


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