20 dezembro 2021

Ignácio de Loyola Brandão

O livro que desperdicei por anos

Retomo nestes dias a leitura de O verde violentou o muro, de Ignácio de Loyola Brandão. Recolho as lembranças do tempo em que o livro foi escrito, o início dos anos 1980, quando o muro completava seus 40 anos e caminhava, sem que ninguém pudesse imaginar, para o seu ocaso, Loyola Brandão nos mostra meticulosamente as inúmeras facetas da Berlim enquanto cidade isolada, com regulações específicas e características únicas no mundo. Uma Berlim que mal conheci e cujo isolamento me incomodou um pouco quando lá cheguei, no verão de 1989, a ponto de não permanecer na cidade mais do que uma jornada. A voracidade de meu tour pela Europa me fazia deslocar com velocidade e prometer para mim mesmo, como uma pobre justificativa, que os lugares marcantes seriam revisitados no final. Seja como for, a Berlim dividida me escapou em sua complexidade. 
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Lembro que antes dessa grande viagem pela Europa, foram dois meses e meio, eu já dispunha do livro, embora tendo lido umas poucas páginas. Também possuía um guia alternativo, que sugeria lugares pouco turísticos para se conhecer. E para completar, a crítica de cinema promovia repercussões entusiásticas sobre o filme de Wim Wenders, Asas do Desejo (1987). Por estranha razão, nem os livros, nem tampouco o filme, me convenceram naquele momento a permanecer e desvelar os segredos daquela Berlim. Como em um esforço para me redimir da minha inexplicável desfeita, regressaria por três vezes (1991, 2001 e 2010), sempre encontrando uma cidade diferente. 
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E agora, como não houvera feito antes, realizo uma leitura atenta do livro de Loyola Brandão, trabalho resultante de uma bolsa do DAAD que lhe permitiu ficar por 15 meses em Berlim. Seu relato desvela ao leitor cada apreciação ali vivenciada, das pequenas descobertas às evidências mais ordinárias, produzidas por seu incessante caminhar, por seu acurado desejo de ver e conhecer aquela realidade tão distinta. A narrativa se divide em verbetes, se assim podemos chamar, palavras ou frases que ilustram de simples comentários a densas análises, o que faz da leitura um aprendizado agradável. No meu caso, o fato de realizá-la tantos anos depois me proporciona sentimentos contraditórios e simultâneos: ao tempo que me deleito com imensa satisfação às apreensões sugestivas, inventivas, reveladoras de Loyola, experimento uma decepção comigo, como se o livro ignorado e desde sempre à minha disposição na estante de casa liberasse, enfim, um tempo definitivamente perdido e que a leitura recompõe seu desperdício ao não tê-lo vivenciado com meus próprios olhos.
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Não posso negar o prazer em retomar a obra, mesmo com essas tensões, e reencontrar o belo escritor que é Loyola Brandão. Nunca fui um leitor exaustivo de suas obras, conheci alguns contos, alguma crônica nos jornais, mais nada. Nenhum romance, nenhuma obra completa, o que não impediu que admirasse seu estilo e sua maneira autêntica de viver, de se entregar para a escrita. Isso testemunhei em uma breve conversa que tivemos, certa vez, ao telefone. Recordo-me de ter deixado na caixa de correspondência de seu apartamento, na Ministro Rocha Azevedo, três contos para que pudesse avaliar e, se possível, me comentar. Poucos dias mais tarde me ligou, eu não estava. Deixou-me seu telefone e assim conversamos. Foi cuidadoso em seu comentário, "dos três (e ele os nomeou), um me pareceu muito comum, o outro razoável e o último muito bom...". Mas minha memória é falha nesse detalhe, jamais saberei dizer quais foram os textos, e se sobreviveram. 
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O exemplar que disponho é da 11a. edição, de outubro de 1986, o livro foi lançado em junho de 1984. Na forma, tem a qualidade de ter capa dura, e no conteúdo, a desventura de uma péssima impressão, com fotos mal editadas e espaçamento irregular, como se tivesse sido montado às pressas. Embora a revisão de texto seja razoável, existem falhas de composição, coisas como palavras cortadas, espaços em branco. Para falar da obra em si, há temas em que Loyola antecipa a discussão, quando por exemplo, descreve os Peep-shows, cabines individualizadas que oferecem a "chance de se embasbacar (...), com os trejeitos de uma mulher nua ou com um filme (ou vídeo) pornográfico". O peep-show apareceria em destaque no filme Paris, Texas (1984) produzido e dirigido por Wim Wenders. 
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Em outro momento, faz uma leitura política bastante atual para os dias de hoje sobre o capitalismo neoliberal, "Ultrapassar o muro e entrar no ocidente não significa certamente o paraíso (...) os fugitivos não estão acostumados a uma sociedade competitiva, onde tudo se baseia na concorrência, que é brutal e por todos os meios". Como resultado, descreve a análise do jornalista Ricardo Arnt: enquanto no Oeste a pessoas parecem ter medo uns dos outros, no Leste as pessoas são mais amigáveis, exuberantes e francas. Enquanto na RDA (Alemanha Oriental) o medo vinha de fora, na RFA (Alemanha Ocidental) o medo vinha de dentro, do interior das pessoas, com o cinismo tornando-se virtude.
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Quando chegou em São Paulo, em seu primeiro trabalho no jornalismo, escrevia crônicas de cinema em uma coluna do Última Hora, chamada São Paulo S/A, uma explícita homenagem ao filme de Sérgio Person. Loyola sempre gostou de cinema e seu apurado conhecimento aparece no tópico O cinema de papai morreu, em uma extensa análise sobre o cinema alemão, do pré-guerra até o chamado cinema novo alemão. No início dos anos 1980 essa cinematografia que se desdobra em temáticas como o experimental, o feminismo, o cinema operário berlinense, era grandemente desconhecido do público brasileiro, que talvez conhecesse vagamente dois ou três - Wenders, Herzog e Fassbinder. Mas os outros, como Alexander Kluge, Hans Syberberg, Helma Sanders-Brahms, Thomas Brasch, Peter Fleischmann, Jörg Graser, Von Trotta, Marianne Lüdcke, aparecem citados por Loyola, em discussão, eu diria, pioneira, antecipando mesmo a chegada por aqui dessa cinematografia autoral, que revolucionou ao longo de vinte anos o cinema alemão.
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Há igualmente situações curiosas, como um tipo de brincadeira narrativa que perdeu o sentido. No começo do livro aparece o tópico "Steglitz", palavra que Loyola diz acompanhá-lo e não se lembrar do motivo. Ela surge de modo recorrente, até que mais para o final ele desvenda seu significado. Era de fato assim, não tínhamos maneiras objetivas de elucidar uma vaga lembrança, que ocorresse de maneira imprecisa ao longo de uma viagem. Não havia como realizar uma consulta portátil, em um sítio de busca no celular, de modo que, para as gerações mais jovens, essa armadilha da memória não mais se coloca como tal.

(atualizado em 20.12.2021)


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