08 novembro 2021

Tardezinha

Día de los muertos, S. Eisenstein

A morte, esse evento estranho e absurdo. Como considerá-la a partir de nossa compreensão tão limitada? Temos a constatação externa, que não contempla o para-si em sua angústia, que aos poucos desliza para uma condição em-si. Esse processo de nadificação de fato apaga a subjetividade? De outra parte, as correntes genuínas de amor, que se formam no entorno desse para-si em vias de tornar-se em-si, vindas de outros para-si, não conseguem alterar um grão de areia o completo apagamento existencial? O mais estranho de tudo é que o prosseguimento da vida social trata de solapar essa lembrança pontual, com a finitude de todas as testemunhas restantes, que seguirão, ao fim e ao cabo, o mesmo processo de extinção que observaram. Tanta dor e tanto sofrimento absorvidos em um determinado momento, se diluem com o passar dos anos, no esquecimento. Outros personagens, outras realidades se sobrepõem, e aquele momento angustiante se desvanece no pó.

Lembro-me, e talvez eu seja a derradeira testemunha dessa imagem, há quase cinquenta anos, quando da morte de um primo, em Londrina. Ao chegarmos em sua casa, num bairro simples, ainda com muitas casas com quintais de terra, encontrei meus tios, os pais do jovem morto, absolutamente inconsolados em sua dor. Foi a primeira e a última vez que vi aquele casal, sorridente e alegre, chorar. Estavam do lado de fora da casa, choravam em silêncio, apartados de uma pequena aglomeração que tomava conta do interior da casa e começava a se esparramar para fora. Permaneceram abraçados e sem dizer palavra por horas. Ambos, como a maior parte dos presentes, morreram, e conforme a expressão de Simone de Beauvoir, a morte do filho os separou e a morte dos pais não os reuniu. 

Os que sobrevivem, e são poucos, perderam a lembrança do episódio, e ele se dissipa; resta a minha versão, da qual ninguém está interessado nas particularidades, mas no significado do fim como sendo uma narrativa outra da tragédia humana. Os seres que naquele exato momento se revoltavam pela morte prematura, compartilharam dessa dolorosa singularidade, cometeram o bem necessário de experimentar coletivamente a provação. Aquele acontecimento os alimentou durante anos, em torno da fogueira dos reencontros, das conversas, das escolhas. “Eu revolto-me, logo existimos”, diz Camus em seu ensaio O homem revoltado. As atitudes posteriores não amenizaram o fato, não absorveram a dor. Agora aquelas pessoas não mais estão e a finitude que nos condena levou com eles a revolta.  

Testemunhar um acontecimento e mantê-lo vivo me parece uma tarefa heroica, que não nos faz mais ou menos humanos, mas nos torna imprescindíveis, porque o nosso relato necessita desta sobrevivência, ainda que tênue, para alimentar a condição de seres comunais. A lembrança é o prumo da caminhada, com ela, amenizamos a angústia da existência ao relembrarmos os momentos, ao dividirmos com os outros as alegrias ou as tristezas, ao realizarmos o futuro a cada instante. Serei testemunha de outras mortes, contarei seus episódios, as nuances ocultas e desveladas por minha intenção, até que venha a sentir o estertor, e nada poderei fazer. E será mais um fim a se narrar, mesmo que por um breve tempo.        

(atualizado em 09.11.2021)



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