Día de los muertos, S. Eisenstein |
A
morte, esse evento estranho e absurdo. Como considerá-la a partir de nossa
compreensão tão limitada? Temos a constatação externa, que não contempla o
para-si em sua angústia, que aos poucos desliza para uma condição em-si. Esse
processo de nadificação de fato apaga a subjetividade? De outra parte, as correntes genuínas de
amor, que se formam no entorno desse para-si em vias de tornar-se em-si, vindas de outros para-si, não
conseguem alterar um grão de areia o completo apagamento existencial? O mais estranho de
tudo é que o prosseguimento da vida social trata de solapar essa lembrança
pontual, com a finitude de todas as testemunhas restantes, que seguirão, ao fim
e ao cabo, o mesmo processo de extinção que observaram. Tanta dor e tanto
sofrimento absorvidos em um determinado momento, se diluem com o passar dos
anos, no esquecimento. Outros personagens, outras realidades se sobrepõem, e aquele
momento angustiante se desvanece no pó.
Lembro-me, e talvez eu seja a derradeira testemunha dessa imagem, há quase cinquenta anos, quando da morte de um primo, em Londrina. Ao chegarmos em sua casa, num bairro simples, ainda com muitas casas com quintais de terra, encontrei meus tios, os pais do jovem morto, absolutamente inconsolados em sua dor. Foi a primeira e a última vez que vi aquele casal, sorridente e alegre, chorar. Estavam do lado de fora da casa, choravam em silêncio, apartados de uma pequena aglomeração que tomava conta do interior da casa e começava a se esparramar para fora. Permaneceram abraçados e sem dizer palavra por horas. Ambos, como a maior parte dos presentes, morreram, e conforme a expressão de Simone de Beauvoir, a morte do filho os separou e a morte dos pais não os reuniu.
Os que sobrevivem, e são
poucos, perderam a lembrança do episódio, e ele se dissipa; resta a minha
versão, da qual ninguém está interessado nas particularidades, mas no significado
do fim como sendo uma narrativa outra da tragédia humana. Os seres que naquele
exato momento se revoltavam pela morte prematura, compartilharam dessa dolorosa
singularidade, cometeram o bem necessário de experimentar coletivamente a
provação. Aquele acontecimento os alimentou durante anos, em torno da fogueira
dos reencontros, das conversas, das escolhas. “Eu revolto-me, logo existimos”,
diz Camus em seu ensaio O homem revoltado.
As atitudes posteriores não amenizaram o fato, não absorveram a dor. Agora aquelas pessoas não
mais estão e a finitude que nos condena levou com eles a revolta.
Testemunhar
um acontecimento e mantê-lo vivo me parece uma tarefa heroica, que não nos faz
mais ou menos humanos, mas nos torna imprescindíveis, porque o nosso relato
necessita desta sobrevivência, ainda que tênue, para alimentar a condição de
seres comunais. A lembrança é o prumo da caminhada, com ela, amenizamos a
angústia da existência ao relembrarmos os momentos, ao dividirmos com os outros
as alegrias ou as tristezas, ao realizarmos o futuro a cada instante. Serei testemunha de outras mortes, contarei seus
episódios, as nuances ocultas e desveladas por minha intenção, até que venha a
sentir o estertor, e nada poderei fazer. E será mais um fim a se narrar, mesmo que por um breve tempo.
(atualizado em 09.11.2021)
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