A fonte que o senhor Montero não conheceu |
Enquanto
converso com mamãe, não me escapa a presença silenciosa de papai. De um momento
para o outro, transformo minha audição em uma ficção memorial, se é que isso
pode se considerar. Com a referência de um tal Monti, de origem italiana, que
fazia parte da vida cotidiana da pequena Buganvília, sou levado a imaginar como
seria sua face, suas expressões, seus gostos, e talvez o mais importante, como
se relacionava na amizade com meus pais. A um pedido meu, mamãe passa a
descrever aquele rapaz com muito bom gosto e clareza nos detalhes, Era um
jovem tímido, não tinha nada de elegante em sua maneira de se vestir, mas
possuía um charme irresistível quando a gente se aproximava para conversar... ele
morava a duas quadras, no final da rua de nossa casa, e lembro que em um dia de
Natal...
Por
nossa casa, ela queria dizer a casa de meus avós. Com um pouco de esforço,
consegui lembrar da rua, naqueles longínquos anos em que viveram sua juventude,
não mais do que uma vereda de terra-roxa, que cruzava os baixios da avenida
principal. Nos meus tempos de infância, ela já possuía calçamento de
paralelepípedos, já com muros de tijolos no lugar dos cercados de madeira. De
todo modo, sempre me é um esforço hercúleo recordar com nitidez essas
paisagens, nunca mais regressamos a Buganvília, quero crer que desde o falecimento
de vovó, há quase trinta anos...
Mamãe
prosseguia, Monti já era casado e seu bisneto, Roberto, agora se casava com uma
prima minha de terceiro grau. Imagens da festa chegaram ao celular de mamãe, que
não pôde comparecer e com elas se entreteve ao longo do sábado. Agora, no
almoço de domingo, enquanto nos deliciávamos com o arroz, feijão e polenta, ela
trazia os desdobramentos dessa inequívoca relação, o jovem e o velho Monti, me
esforçava para não os confundir em uma única imagem. Ao longo dessas lembranças,
eu gostava de confirmar minha teoria de que as relações nunca se esgotavam, ao
contrário, mostravam-se muito circulares, a cada nova lembrança da velha e da
nova Buganvília se estabelecia uma certa linha de continuidade, onde as
histórias ainda não contadas se complementavam no presente, e seguiam abrindo
caminho para o futuro.
Houve
o tempo em que papai e mamãe borbulhavam nomes daquele tempo, os Brandinelli;
Bernardo, o filho da Pepa; Zé Preto e seus irmãos, Honório e Rufino; Tomás
Chato; Tarzã, o que morreu engasgado ao comer castanhas; Rigoberto e Josefina;
os Delgados, donos da mercearia atrás da igreja, personagens que não cansavam
de surgir nos relatos infindáveis de juventude. Era bonito de se ver. Sempre um
novo episódio, um personagem convidado, uma história curiosa. Houve um tempo em
que as recordações eram compartilhadas, agora só mamãe tem o dom da lembrança,
quanto a papai, resta sua presença, o que não deixa de ser um fato
significativo para mim.
Por
que o digo? Poderão achar tolice, mas me agrada sua expressão silenciosa,
enquanto ouve os relatos e mastiga serenamente a comida. Está anos-luz de
distância de cada detalhe explorado em minúcias por minha mãe. Para ele, é como
se não tivesse vivenciado quaisquer daquelas aventuras. Em um ou outro momento
se detém, como a reconhecer alguma passagem da narrativa, como se ele pudesse
agregar, de súbito, um outro viés, uma outra interpretação. Mamãe aproveita o
momento e pergunta, lembra disso?, ao que os olhos de meu pai buscam
algo a acrescentar, no espaço entre nós, alguma evidência por trás de um
utensílio disposto na cozinha, para, ao final de um tempo, assentir com a
cabeça, capitulando em meio a seu esforço. Essa concordância fugidia me atrai e
me emociona: por mais que não se recorde absolutamente de nada, o brilho de
seus olhos comprova que estava lá, que era um dos protagonistas da
história.
Por
um átimo de tempo, sou levado a imaginar o que era Buganvília naqueles
primeiros tempos, em que cada ato, cada decisão, guardava em si bocados
grandiosos de ações pioneiras, dessas que ajudam a construir uma comunidade.
Por trás de cada gesto, o amor, a amizade, a dificuldade em meio àquela terra
ignota, a bravura, a superação. Então, a expressão de Monti, ou senhor Montero,
meu pai, que não guarda mais a impulsividade de sua ascendência italiana, ganha
um sentido iluminado, pelo simples fato de estar diante de mim, por estar vivo
após tanta fortuna e tribulação, e que se transformam em narrativas afetivas
nas versões de mamãe, e nas elucubrações de minha imaginação quando as
ouço.
(atualizado em agosto/2022)
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