27 maio 2009

A força da imagem documental

O La Moneda sob ataque


No início dos anos 1970, Patricio Guzmán, então um jovem cineasta chileno recém chegado da Europa, decidiu registrar a agitada ambiência política chilena que, com o advento da vitória da Unidade Popular, contagiava as pessoas. Acompanhou reuniões sindicais, passeatas, sessões do congresso, o povo se organizando para suprir as greves patronais de transportes, as discussões políticas nos chamados cordões industriais, o perfil de um congresso dividido, enfim, um amplo e límpido panorama do que foram aqueles anos turbulentos, no calor dos acontecimentos. Sabia que registrava um momento histórico, a crônica de um processo político cerceado pelo capital financeiro e pela CIA. Sobrevém o golpe, o La Moneda bombardeado, o suicídio de Allende, o fim de uma experiência única até então, a conquista do poder por um conjunto de partidos de esquerda, pelo voto democrático. Patrício Gusmán consegue fugir para a Suécia, recuperando mais tarde os negativos de quase três anos de registros, que seria organizado em quatro DVDs e denominado A batalha do Chile.

Ao assistir, fiquei absolutamente envolvido pelas imagens muito bem captadas, intensas e premonitórias. Toda a força da organização popular emana uma tensão que indica algo de inexorável se aproximando. As imagens nos absorvem, arrastando-nos para o cerne dos eventos políticos. As assembleias de operários se sucedem, palavras de ordens são lançadas pelas lideranças, manifestações populares de apoio ao regime tomam as ruas a cada ameaça, tudo nos mobiliza como se estivéssemos vivenciando novamente as dificuldades daquela situação. Há igualmente os sinais obscuros de uma ação subterrânea em vigor ao acompanharmos a paralisação dos caminhoneiros, ou a postura arrogante da oposição golpista. Um dos pontos altos, no que diz respeito à linguagem cinematográfica, é o sepultamento do ajudante de ordens de Allende, tenente da marinha Arturo Ayala Peters, ocorrido poucos meses antes do alçamiento

O diretor de fotografia, Jorge Muller, desvela de maneira soberba os militares que estão reunidos no cemitério de Valparaíso, à espera do féretro. Quantos ali não se aproveitaram do evento para acertar as últimas arestas do golpe? Muller, que mais tarde seria assassinado pela ditadura, enquadra em close, movimentando a câmara sem pressa, sua lente percorrendo os rostos, as divisas, os gestos desses militares aparentemente tranquilos, enquanto ouvimos, ao fundo (e não é possível definir se se trata de um som diegético, ou seja, tomado no momento da ação fílmica) a marcha fúnebre de Chopin. 

São cerca de cinco minutos que impressionam por sua dialética – sobretudo vistos retrospectivamente – ao exprimir toda uma dinâmica em movimento a partir de um painel quase estático. A simbologia perversa do episódio se sobrepõe: afinal, que sepultamento se consagra diante dos olhos, o do tenente Peters ou o do governo Allende? Mesmo não fazendo qualquer exercício interpretativo, ficamos com uma seqüência de imagens que transcendem o momento solene, nos revelando a partir do silêncio, o rosto da hipocrisia e da traição. Não é difícil depreender que a borrasca é inevitável, e que varrerá a sociedade chilena de maneira dolorosa, por anos a fio.

Retorno a esse documentário repetidas vezes, com o comportamento sereno que o distanciamento histórico permite, sem, no entanto, deixar de me emocionar com a eficiência de sua linguagem e com a contundência de suas imagens.



Um comentário:

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom