16 maio 2009

Um rosto na multidão


Foi numa manhã fria e chuvosa que ele olhou para cima e descobriu que era observado. Uma manhã que convidava à introspecção e ao bom senso.

Saiu de casa recebendo um beijo carinhoso da mulher. Caminhou refletindo sobre essa doce mudança, esse beijo fora de hora, inesperado, em meio ao seu recolhimento habitual, um pouco mais atento às coisas e às pessoas no percurso até o serviço. Tomou o metrô de cada dia, o sobretudo levemente molhado pela garoa fina que caía na Paulicéia. Sim, sua mulher suportava uma situação grosseira, essa era a verdade, e que necessitava ser mudada. A mão delicada em sua nuca, atraindo a cabeça para o beijo terno de despedida fizera mais do que as mil discussões sobre o assunto, a vida estagnada que levavam. 

As estações de desembarque iam se sucedendo umas às outras enquanto ele constatava que precisava ser mais decidido profissionalmente, falar com seu superior sobre um aumento, sobre uma promoção, um cargo de mais envergadura, que o estimulasse a produzir mais, a ter maiores responsabilidades e assim destacar-se aos olhos do pessoal, provando seu potencial e calando de vez o comentário maledicente sobre sua incompetência. Pensava a respeito da cordialidade aliada a uma postura mais agressiva, quando chegou à estação central.

Desceu do trem, tomou as escadas rolantes e tornou a deparar com o dia carrancudo. Enfrentou o chuvisco mais consistente, uma caminhada de pouco mais de cem metros até o escritório, enfurnando-se no meio da multidão maciça de todas as manhãs. Os pingos caíam-lhe no rosto, criando um efeito contrário ao que se poderia esperar, a previsível irritação dava lugar à possibilidade de seguir com os pensamentos vagos sobre seu lar e sobre as mudanças que almejava no serviço. A cabeça desprotegida e lisa refrescava-se com as gotas frias, fazendo com que erguesse o rosto para recebê-los diretamente na face. 

Foi então que reparou no homem sentado confortavelmente diante de um janelão no primeiro andar, regalando-se com o que via de sua poltrona. Ora, mas que sujeitinho..., reagiu incomodado, enquanto avançava premido pela massa humana. Desviou-se aos bocados, no sentido da entrada do edifício em que o ‘sujeitinho’ se encontrava. Notou que estava verdadeiramente encharcado ao subir as escadas. Parou diante do número 102, deve ser aqui, redargüiu para si, sentindo pela primeira vez um calafrio subir-lhe a espinha, ao decidir-se por bater à porta.



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