A expressão ‘Choque e Pavor’ surgiu como nome de uma operação realizada pelas tropas de ocupação estadunidenses no Iraque. O que nos resta desta ação é a imagem decorrente de seus termos, que se complementam de modo funesto: Choque, para o movimento brutal e paralisante; Pavor, para a resultante desoladora da agressão.
Considero pertinente associar essa situação de guerra declarada com a situação social que envolve uma parcela considerável dos jovens de nossas metrópoles e que discuto abaixo.
Ainda que o texto tenha sido publicado há mais de quatro anos, entendo que o tema prossiga atual.
Choque e Pavor
A imagem por si só é
reveladora, mas a legenda logo abaixo dá a justa dimensão do fato. O menino,
oito, dez anos no máximo, aponta uma arma real para o fotógrafo, estampando na
face uma expressão de galhofa, a língua espichada para fora “a la Einstein”. Na
outra mão, segura uma granada, como se segurasse um brinquedo... Seja bem vindo
ao mundo controlado pelo tráfico em uma das áreas carentes do Rio, que poderia
ser de São Paulo ou de qualquer região metropolitana do Brasil. Logo abaixo da
fotografia, a legenda: “Caso siga esse caminho, o menino deve morrer antes dos
29 anos”[1].
Mas é a imagem de um pequeno garoto negro, morador de rua ou de alguma
comunidade carente de alguma periferia metropolitana que me leva a redigir
estas linhas. Uma imagem que apresenta fúria e engodo. Fúria pela explosão
draconiana de um segmento social balizado pela indiferença, e engodo porque a
criança reproduz uma imagem com a qual não sonha.
De todo modo, é a evidência
das condições que envolvem parte de nossa juventude pobre urbana, evidência que
aponta para caminhos amargos em uma economia globalizada, que paradoxalmente
lhe oferece exclusão e localismo. Se pensarmos na região metropolitana de São
Paulo, as periferias mais afastadas tornam-se o gueto onde prolifera o tráfico
e a violência daí decorrente. As condições de reprodução do espaço social
nesses bairros se desenvolvem “em proporção menor do que a do crescimento da
população, em favor de uma expansão da oferta de bens e serviços pelas zonas
centrais da área metropolitana”[2].
Significa dizer que o direito à cidadania plena desses jovens está truncado
pela dificuldade em tornar-se um indivíduo inserido socialmente. Os mecanismos
de desenvolvimento educacional e profissional estão sempre em descompasso
quando em relação aos jovens da classe média e o que é pior, o poder público
não mostra a mesma dedicação em implantar equipamentos (escolas, parques,
cinemas, teatros) na periferia com a mesma destreza com que faz nos bairros
mais centrais.
Os acessos desse jovem pobre
urbano estão limitados ao lugar em que vive; pode aderir ao movimento hip-hop,
como pode tornar-se um aviãozinho do tráfico. As estatísticas lhe açodam
continuamente, de maneira cruel: dentre a juventude urbana entre 15 e 19 anos,
mais de 27% estão desempregados. Na faixa dos 20 aos 24 anos, esse índice cai
para pouco menos de 20%. Note-se que comento aqui a juventude como um todo,
ficando evidente que para o jovem negro e favelado a participação efetiva nos
setores de produtividade é mais reduzida. Menos oportunidades o que, por sua
vez, significa menos direito ao consumo de bens materiais e menos estímulo de
práticas culturais. Retomo a fotografia do garoto com a arma e a granada. O
atalho mais à mão (e igualmente mais tenebroso) é o do tráfico. A vida passa
então a entrar na contagem regressiva, o tempo a escoar inapelavelmente, na
medida inversa em que alguns acessos se tornam viáveis.
Segundo o antropólogo
britânico Luke Dowdney, “o tráfico de drogas dá às crianças e adolescentes o
que lhes é negado pela sociedade. Eles veem o comércio de drogas como um
veículo de melhoria de vida e escolhem o tráfico como o melhor meio para
progredir e satisfazer suas necessidades básicas”[3].
Aproximadamente metade dessas crianças que entram no tráfico descartam o desejo
de mudar de vida. Sem dúvida uma das consequências sociais mais cruéis nesses
tempos de modernidade incompleta, no qual “a sociedade do trabalho e os ideais
iluministas nunca se universalizaram”[4].
Retorno para a imagem do
garoto, persistente, absurda por escancarar a nossa mazela urbana; vislumbro em
seu gesto provocativo uma outra apreensão social da realidade, um outro ponto
de vista que se contrapõe ao nosso, que não pretende integrar nada, mas talvez
simplesmente romper com a nossa negligência. Um olhar de atrevimento que busca
instigar nossa consciência, tentando ao menos impedir que façamos o papel da
mãe de um conto de Cortázar[5],
que por comodidade ou indulgência, aceita a versão teatral da família de que
seu filho vive bem, quando ele está morto. Um fato grave deliberadamente
transgredido para que, afinal, a vida possa continuar sem atribulações.
(Texto disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_11/facom_11.pdf)
[3]
De aviãozinhos a soldados: o
crescente envolvimento de crianças nas lutas de grupos armados do tráfico de
drogas no Rio de Janeiro, Luke Dowdney, in Insegurança
Pública, vários autores, ed. Nova Alexandria, 2002, p. 124.
[4]
Juventude pobre urbana, Ana F. Neto e Consuelo Quiroga, in Linguagens da Violência, vários autores, ed. Rocco, 1999, p. 229.
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