24 maio 2009

Choque e pavor




A expressão ‘Choque e Pavor’ surgiu como nome de uma operação realizada pelas tropas de ocupação estadunidenses no Iraque. O que nos resta desta ação é a imagem decorrente de seus termos, que se complementam de modo funesto: Choque, para o movimento brutal e paralisante; Pavor, para a resultante desoladora da agressão.

Considero pertinente associar essa situação de guerra declarada com a situação social que envolve uma parcela considerável dos jovens de nossas metrópoles e que discuto abaixo.

Ainda que o texto tenha sido publicado há mais de quatro anos, entendo que o tema prossiga atual.


Choque e Pavor 

A imagem por si só é reveladora, mas a legenda logo abaixo dá a justa dimensão do fato. O menino, oito, dez anos no máximo, aponta uma arma real para o fotógrafo, estampando na face uma expressão de galhofa, a língua espichada para fora “a la Einstein”. Na outra mão, segura uma granada, como se segurasse um brinquedo... Seja bem vindo ao mundo controlado pelo tráfico em uma das áreas carentes do Rio, que poderia ser de São Paulo ou de qualquer região metropolitana do Brasil. Logo abaixo da fotografia, a legenda: “Caso siga esse caminho, o menino deve morrer antes dos 29 anos”[1]. Mas é a imagem de um pequeno garoto negro, morador de rua ou de alguma comunidade carente de alguma periferia metropolitana que me leva a redigir estas linhas. Uma imagem que apresenta fúria e engodo. Fúria pela explosão draconiana de um segmento social balizado pela indiferença, e engodo porque a criança reproduz uma imagem com a qual não sonha.

De todo modo, é a evidência das condições que envolvem parte de nossa juventude pobre urbana, evidência que aponta para caminhos amargos em uma economia globalizada, que paradoxalmente lhe oferece exclusão e localismo. Se pensarmos na região metropolitana de São Paulo, as periferias mais afastadas tornam-se o gueto onde prolifera o tráfico e a violência daí decorrente. As condições de reprodução do espaço social nesses bairros se desenvolvem “em proporção menor do que a do crescimento da população, em favor de uma expansão da oferta de bens e serviços pelas zonas centrais da área metropolitana”[2]. Significa dizer que o direito à cidadania plena desses jovens está truncado pela dificuldade em tornar-se um indivíduo inserido socialmente. Os mecanismos de desenvolvimento educacional e profissional estão sempre em descompasso quando em relação aos jovens da classe média e o que é pior, o poder público não mostra a mesma dedicação em implantar equipamentos (escolas, parques, cinemas, teatros) na periferia com a mesma destreza com que faz nos bairros mais centrais.

Os acessos desse jovem pobre urbano estão limitados ao lugar em que vive; pode aderir ao movimento hip-hop, como pode tornar-se um aviãozinho do tráfico. As estatísticas lhe açodam continuamente, de maneira cruel: dentre a juventude urbana entre 15 e 19 anos, mais de 27% estão desempregados. Na faixa dos 20 aos 24 anos, esse índice cai para pouco menos de 20%. Note-se que comento aqui a juventude como um todo, ficando evidente que para o jovem negro e favelado a participação efetiva nos setores de produtividade é mais reduzida. Menos oportunidades o que, por sua vez, significa menos direito ao consumo de bens materiais e menos estímulo de práticas culturais. Retomo a fotografia do garoto com a arma e a granada. O atalho mais à mão (e igualmente mais tenebroso) é o do tráfico. A vida passa então a entrar na contagem regressiva, o tempo a escoar inapelavelmente, na medida inversa em que alguns acessos se tornam viáveis.

Segundo o antropólogo britânico Luke Dowdney, “o tráfico de drogas dá às crianças e adolescentes o que lhes é negado pela sociedade. Eles veem o comércio de drogas como um veículo de melhoria de vida e escolhem o tráfico como o melhor meio para progredir e satisfazer suas necessidades básicas”[3]. Aproximadamente metade dessas crianças que entram no tráfico descartam o desejo de mudar de vida. Sem dúvida uma das consequências sociais mais cruéis nesses tempos de modernidade incompleta, no qual “a sociedade do trabalho e os ideais iluministas nunca se universalizaram”[4].

Retorno para a imagem do garoto, persistente, absurda por escancarar a nossa mazela urbana; vislumbro em seu gesto provocativo uma outra apreensão social da realidade, um outro ponto de vista que se contrapõe ao nosso, que não pretende integrar nada, mas talvez simplesmente romper com a nossa negligência. Um olhar de atrevimento que busca instigar nossa consciência, tentando ao menos impedir que façamos o papel da mãe de um conto de Cortázar[5], que por comodidade ou indulgência, aceita a versão teatral da família de que seu filho vive bem, quando ele está morto. Um fato grave deliberadamente transgredido para que, afinal, a vida possa continuar sem atribulações.



(Texto disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_11/facom_11.pdf)




[1] Artigo Por terra, ar e mar, de Maurício Dias, Carta Capital, 9 de abril de 2003.
[2] Metrópole Corporativa Fragmentada, Milton Santos, ed. Nobel, 1990, p. 62.
[3] De aviãozinhos a soldados: o crescente envolvimento de crianças nas lutas de grupos armados do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, Luke Dowdney, in Insegurança Pública, vários autores, ed. Nova Alexandria, 2002, p. 124.
[4] Juventude pobre urbana, Ana F. Neto e Consuelo Quiroga, in Linguagens da Violência, vários autores, ed. Rocco, 1999, p. 229.
[5] A saúde dos mortos, Julio Cortázar, in Todos os Fogos o Fogo, ed. Record/Altaya, p.29-47.



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