Decido ir até a mesquita Hassan II, do outro lado da medina de Casablanca, à beira-mar. É dali que se irradia, no início da manhã, a chamada do muezim para as primeiras orações do dia. Ao contrário do que pode parecer, já me sinto à vontade com a voz metálica proveniente dos alto-falantes, e desperto sem me perturbar. Os versos corânicos convidam e seduzem e essa é mais uma ocasião para lamentar nada saber da língua árabe. A voz modulada penetra o meu quarto junto com as lufadas de vento da aurora, deixando-me absorto na cama, envolto por uma sensação agradável. Então me levanto e vou até a janela para observar a cidade, que se põe a despertar.
Início da tarde. Quarenta minutos de caminhada sob um sol abrasivo, contorno a medina e eis-me defronte da imponente mesquita. Alcanço a porta, mas fraquejo ao entrar. Um guardião com crachá observa-me, sem se manifestar. Entendo que não teria problemas em adentrar no templo, mas ainda assim não ouso romper os limites. À volta, turistas circulam nesta espécie de hall de entrada, também cautelosos, apreciando a delicadeza e os detalhes da arquitetura. Do outro lado, um enorme esqueleto de concreto jaz com as obras paralisadas, um centro de estudos islâmicos, foi o que me disseram. Afasto-me dali, atravessando o amplo pátio externo, me dirigindo até a murada, de onde se pode observar a beira-mar pedregosa, que se estende em amplo arco até o horizonte.
A poucos metros de mim, num plano mais baixo, dezenas de crianças brincando na imundície. Fotografo a cena, tendo como pano de fundo a baía. Sento-me na murada, de frente para a mesquita e observo os escassos transeuntes, não percebo uma bela jovem berbere se aproximar. Parlez-vous français?, tomo a iniciativa, e recebo como resposta um “oui” receptivo. Entramos numa agradável conversação, ao som do mar rebentando nos rochedos abaixo de nós, das crianças brincando, dos gritos em árabe, sob os olhares constantes de homens e mulheres que começam a surgir mais amiúde no pátio. Samara, muçulmana, recém formada em economia, 22 anos, cabelos longos até a cintura, negros, esbelta em um corpo diáfano, sobrancelhas grossas, não mais que um metro e sessenta e uma clara consciência política (“Se Hassan II não tivesse morrido, nós o teríamos matado!”) e religiosa (“Não consigo entender como é ateu, se tudo à nossa volta recende a Deus...”). Prosseguimos na conversa até o sol esmaecer prestes a mergulhar no oceano, por trás da mesquita.
É hora de partir e Samara me acompanha pelo pátio, em um breve ritual de despedida. Busco sempre que possível seus olhinhos, duas jabuticabas pequenas e radiantes. Agrada-me trocar olhares com essa mulher de gestos intrigantes, cuidadosa e ao mesmo tempo desejosa por ultrapassar certos limites. Convida-me a conhecer sua casa no dia seguinte. Pensei, que mal poderia haver em adiar por um dia minha viagem para as montanhas?
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