26 dezembro 2015

Ainda Chico!



Esse grito insolente de uma direita que não faz a menor ideia de qual caminho tomar, que não tem a menor ideia da complexidade social de seu país. Em seu regurgito que já renasce condenado, não tem feito mais do que inflar o ódio e a intolerância, com ações truculentas, que se amparam no pior dos momentos de nossa história moderna. É preciso nomearmos cada um, os que vinculam a esperança de uma nação ao golpe constitucional, os que agridem sem disposição para uma pauta de diálogo, os que fazem de seu gesto nada mais do que o prolongamento de seu miserável individualismo.

Como disse Darcy Ribeiro, "o golpe militar de 1964 foi uma interrupção abrupta do fluxo histórico brasileiro e reverteu seu sentido natural, com efeitos indeléveis sobre a economia e a soberania nacional, e também sobre a cidadania, a sociedade e a cultura brasileiras". Será sempre tempo de debatermos verdadeiramente os desígnios de nossa nação, mas sob as normas constitucionais vigentes. Não cabem mais aventuras, ainda mais as patrocinadas por indivíduos que não medem as consequências de seus atos, alimentados por ilusões forâneas. 

Por isso não posso deixar de oferecer a música que me marcou profundamente naquele verdadeiro momento de retomada, arrebatando-nos para o que então se apresentava como as mais importantes tarefas, a luta pela justiça social e pelo restabelecimento pleno do estado de direito.





24 dezembro 2015

Chico e os ruídos da pós-modernidade




Acabo de ler sobre um dos marmanjos justiceiros que interpelaram o nosso Chico Buarque no espaço público do Rio. No momento em que estava acompanhado por outros coatores, pareceu valente em criticar o músico pelo simples fato de ser simpatizante do PT, de novo a mesma fórmula, uma espécie de indignação cívica que perpassa esses tipos, como se o PT fosse a causa fulcral de todos os males da nação. A cena foi gravada, as agressões são audíveis, porque são palavras iradas, que se movem pela intolerância, que pretendem impregnar e jamais aceitar um contraditório. Já as respostas de Chico são esparsas, compreende-se uma ou outra frase. Agora o sujeito, um tal de Alvarinho, não se faz de rogado ao dizer que "xingar o senhor Chico foi um erro", e apresenta os sintomas naturais de covardia que demonstram todos os agressores proto-fascistas, tentando livrar a cara para não permanecer a marca pesada da ignorância. 

O episódio não difere em seu formato dos ataques verbais ocorridos anteriormente, no mesmo feitio, quando grupos de corajosos defensores da democracia lançam invectivas de péssima qualidade, contra personalidades do PT. Assim foi com Mantega, então ministro da Fazenda, em um restaurante, assim foi com Haddad, nosso prefeito de São Paulo, em pleno debate na livraria Cultura. Chegamos ao tempo da miséria do argumento, que não se envergonha em mostrar sua cretinice no espaço público. Isso me faz agora lembrar de uma sequência de O Gordo e o Magro, em que a esposa de Oliver Hardy lhe pede para não se esforçar em ser mais idiota do que ele já mostrava ser. Bem, isso era engraçado, as trapalhadas de Oliver Hardy com seu amigo Stan Laurel incorporavam inocência e diversão, e por isso saborosas.

Destaco o argumento de David Harvey sobre a pós-modernidade, "a ação só pode ser concebida e decidida nos limites de algum determinismo local, de alguma comunidade interpretativa, e os seus sentidos tencionados e efeitos antecipados estão fadados a entrar em colapso quando retirados desses domínios isolados, mesmo quando coerentes com eles", o que nos parece claro o gesto fragmentado desde sua origem e pouco propício a ganhar consenso político nas massas. Assim, o relativismo idiota exercitado em praça pública torna-se o must dos garotões sarados dos Jardins, e para isso não é necessário nenhum recurso intelectual, basta um babaca para comandar o espetáculo de incontinência verbal e um iphone para registrar o fato. 

Nos anos 1960, os brucutus do CCC assumiam uma postura ideológica claramente de direita e se uniam a paramilitares para cometer suas agressões públicas, mas raramente eram identificados. O projeto da violência política alinhava-se com uma proposta vencedora, que formularia as leis de segurança nacional, em defesa dos ideais de um sistema de exceção. Hoje, o estado de direito predomina, não há o que temer neste sentido. Resta o vago discurso contra a corrupção, pautado pelas manchetes da mídia corporativa, que se expande pelas plataformas digitais em sua vertente agressiva. Quando mais os atores abjetos assumem a orientação desse discurso, mais o espetáculo se faz incivilizado, mais ele se torna uma farsa. 

Alvarinho, como os demais agressores, teve seus breves minutos de fama, e agora não sabe o que fazer com isso. Pior, mostra a mesma covardia desse proto-fascismo sem consistência, que na hora de se revelar com mais força, sucumbe e pede arrego. Eis as consequências: "Fui ao shopping comprar presentes de Natal e fui xingado. Também recebi uma ligação anônima com ameaças. Acho muito desagradável tudo isso bem na hora do Ano-Novo. Se meus pais decidirem, terei que voltar (a Londres)"[1]. 

Uma vez filhote de papai, sempre um. Diluído em seu próprio discurso, não consegue encontrar forças para sustentar uma posição que justifique minimamente sua agressão. Optará pelo mais fácil, retornar ao seu exílio luxuoso de Londres, onde por certo não ousará tomar atitude semelhante contra uma autoridade pública de lá. 

Torna-se difícil entender os objetivos dessas manifestações impulsivas e criminosas: não carreiam adesões e se perdem na própria covardia dos atores, que ao contrário de permanecerem ativos, escondem-se da forma mais conveniente. O gesto suicida não encontra a mínima sustentação epistemológica, como disse acima, é a continuidade indefinida de um arremedo de pequenas bravatas contra a corrupção do PT, mancomunadas com notícias de capa da revista Veja e alguma fala assimilada dos âncoras de telejornais. Mais nada. Não se dão ao esforço de aprofundar seu ódio em argumentos do conservadorismo pós-moderno, que encontra em T.Darlymple, R.Kirk ou T.Sowell alguns de seus representantes. 

De modo que fico com a imagem serena e contemplativa de Chico, com a história de seus engajamentos, ao som de sua obra exuberante, que nos contempla como cidadãos brasileiros. Ele nos tem a dizer muito mais coisas do que as razzias fúteis, frágeis, fenecidas, proporcionadas pelos mesmos sujeitos históricos a serviço de frívolos interesses.





[1] http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/210833/Alvarinho-diz-que-%E2%80%9Cxingar-o-sr-Chico-foi-um-erro%E2%80%9D.htm, acesso em 23/12/2015.


08 dezembro 2015

A nossa negritude



E tive uma experiência que mobilizou meu imaginário de tal forma, que por momentos acreditava estar diante de sucessivas etapas da memória coletiva e histórica de nosso país, algo sem um recorte específico, tudo no plano das emoções e de um apanhado mental que envolve os conhecimentos acumulados sobre a nossa cultura. 

Claro que estava sugestionado pela ótima leitura do texto do Alberto da Costa e Silva, mais um sobre a formação do Brasil, População e Sociedade. Enquanto avançava no texto, via o Brasil metonímico diante de mim, pequenos grupos de jovens reunidos em torno de seus murmúrios, discutindo as questões sobre Euclides da Cunha, Paulo Freire, Caio Prado Jr...

Por momentos, não era apenas o bulício das falas e as reflexões sobre as hipóteses sociais, políticas e culturais que construíam, mas a naturalidade das consultas entre os grupos, movidos por dúvidas, não interferi, optei por observar e imaginar os matizes variados, os jogos das cores e das origens, a miscelânea das ocupações profissionais, as esperanças por voos imprecisos, os anseios por consolidar novas realizações.

Ali estava o corre das ruas no Rio colonial, as vozes dos mercados e das casas, escravos de pé no chão, ex-escravos na viração, calça comprida e camisa de algodão rústico, carregadores, pedreiros, sapateiros (havia muitos), bem como amas de leite, vendedoras ambulantes, as falas de variadas origens africanas, mas que no final prevalecia o português "para o entendimento entre si - uma África já crioulizada, abrasileirada", as mulheres brancas já não mais escondidas no quarto, mas com confiança para frequentar as confeitarias e casas de chá, e as cores dos panos e xales de Cabo Verde, os vestidos pregueados à moda europeia, quizomba divertida e incontrolável, marca de um país que ao contrário da difundida perdição, por suas elites, sempre se reinventa na beleza e dureza de sua diversidade.

Eu vi tudo isso naqueles corpos performáticos, à minha frente, e encerro porque é preciso encerrar, com uma breve descrição do último grupo que deixou a sala, quase à última hora: três jovens negros muito falantes, que perdiam o tempo da prova para inserir lembranças e falas da casa, da mãe e da avó sempre às voltas com os afazeres domésticos, e logo as sonoras risadas, que podiam ser do entretenimento da rua do Brasil Colônia, em alguma casinhola de sopapo, taipa de mão, no breu da noite, à espera do novo dia de labuta intensa... mas logo recobravam a discussão do texto Procissões, Hip Hop e Cosplay, representações da negritude em teatralidades públicas, escrito por mim e Mônica Nunes, no afã de descrever o protagonismo do negro em nossa cultura. 

O que significava aquilo tudo? Sabiam que havia uma sutil continuidade, um deles levanta a mão e se dirige de forma assertiva para mim, "seria legal retomarmos aquele assunto novamente, professor"... E por fim terminam um tanto extasiados pela discussão do tema, entregam a prova ainda conversando entre si, e o mesmo rapaz acrescenta, "professor, quanta coisa importante para pensar...".



30 novembro 2015

Volver a Montevideo


El Tango, de Pedro Figari


Tenho a oportunidade de regressar a Montevidéu, para cotejar mais uma vez a ambiência convidativa de sua espacialidade, de sua gente. O lugar que recebeu Darcy Ribeiro, antropólogo, e onde desempenhou parte importante de sua obra. A cidade de Mario Benedetti, Eduardo Galeano, José Enrique Rodó, Mario Arregui, Ángel Rama, Idea Vilariño, Felisberto Hernandez, do cantante engajado Alfredo Zitarrosa, do cineasta Pablo Stoll, que dirigiu o tristemente belo Whisky

Retorno para uma atividade intensa no congresso RAM, Reunión de Antropología del Mercosur, para a exposição de mais um trabalho, Espaço Urbano e Teatralidades Revivalistas na Cultura Jovem, onde se discutirá a presença de coletivos revivalistas - vitorianos, medievalistas e steamers, e suas representações no espaço urbano. Particularmente minha exposição se tratará do imaginário medievo em coletivos medievais, influenciados pelos games de RPG, pelas histórias midiatizadas da Távola Redonda, e de modo mais distante, pela narrativa de autores como Tolkien, C.S.Lewis, George Martin; assim como as representações criativas dos coletivos steampunks, com base em etnometodologias realizadas nos eventos de Paranapiacaba e Belo Horizonte.

Mas haverá um tempo para sentir a cidade, nas caminhadas que por certo realizaremos pela graciosa Cidade Velha, por cafés, parques, boulevares, saboreando o tempo perdido impresso nas fachadas, nas rodas de mate nas calçadas, nas sombras generosas de copas centenárias. Ainda há o som do rio-mar a espreitar, sossegadamente, à beira da rambla. Serão momentos apreciados de passagem, marcados pelo romantismo das palavras e dos olhares furtivos, sob as bênçãos de Vênus e Adônis.



21 novembro 2015

Sobre a incompletude midiática



Já não se trata mais de apresentar o desequilíbrio do discurso midiático e sua ação desinformativa, esta etapa ficou para trás. Pelo menos desde pouco antes das eleições de 2010 já era possível perceber uma movimentação do tipo ‘ordem unida’ dos grandes veículos, trabalhando de modo acintoso na construção de seus pontos de vista. Segundo Jessé Souza, sociólogo, houve o sequestro da opinião de uma parte da classe média, e simultaneamente a isso, já que não foi possível a vitória nas urnas, forçar uma crise institucional via judiciário, com toda a repercussão garantida pelos jornalões, revistas e redes de TV.

Em julho de 2011, em um artigo escrito por mim e Mônica Nunes, Xenofobia e Participação Política nas Mídias Digitais, apresentado no Congresso Internacional Ibero-americano de Comunicação – Confibercom[1], já esboçávamos uma preocupação com o movimento tendencioso das matérias de capa dos jornais, um mês antes das eleições (setembro de 2010). Pouco antes, em março do mesmo ano, Gilberto Maringoni na Carta Maior relatava um encontro do malfadado Instituto Millenium[2], e destacava o que seria o comportamento midiático naquele ano, “Quem assistiu aos debates não deixou de ficar preocupado. Aos arranques, os pitbulls da grande mídia atacaram toda e qualquer tentativa de se jogar luz no comportamento dos meios de comunicação”.

As consequências estão aí; agora, se trata de ultrapassar os limites razoáveis do bom senso, e de modo corporativo, muitas vezes as manchetes dos principais jornais coincidem palavra por palavra, transformar suspeitas em verdades, calúnias em argumentos, distorções em práticas usuais. Em uma postura que encontra no cinismo a expressão mais adequada para este momento de transição (estertor?), os meios tradicionais promovem uma escalada na manipulação das notícias. Este ano não foi fácil para a sustentabilidade constitucional, os ataques fugiram do controle, com os editoriais midiáticos difundidos de modo feroz por arautos do fim do mundo, que modelaram setores da sociedade civil, culminando com as marchas de 15 de março pelo país. O horror dos movimentos conservadores pré-golpe de 1964 regurgitaram com fúria, ganhando repercussão em parcelas da sociedade.

Um partido em especial torna-se deliberadamente o alvo das mazelas reais ou imaginárias, e de modo mais perverso, personagens como os filhos do principal líder desse partido, sofrem com denúncias infundadas ou não provadas. Felizmente toda essa mobilização pautada pelo rancor foi lentamente perdendo legitimidade, e a aprovação pelo Congresso Nacional da instituição do direito de resposta às falsas denúncias (calúnia e difamação) ameniza o furor do ódio e, se não me iludo, recompõe alguma serenidade ao debate político. Os ataques retomam o tom de oposição republicana, o que é o mínimo que se pode esperar. Todavia, o uso do cachimbo faz a boca torta, tanto as informações jornalísticas quanto as delações jurídicas prosseguem seletivas, atendendo a interesses corporativos, ou a grupos privilegiados da sociedade. Seja como for, o discurso midiático alcança seu mais abusivo momento de irresponsabilidade. 

Sem qualquer esforço para transmitir mais do que um registro calculado dos acontecimentos, a recente catástrofe provocada pela mineradora Samarco apareceu na mídia tradicional como uma tragédia a se lamentar. Foi impressionante se ver, nas redes sociais, o registro do cenário, por moradores de Resplendor, de toda a dor e a devastação ocorrida no rio Doce. Em sua mobilização a partir das plataformas sociais, conseguiram o que a Globo com sua fartura tecnológica não conseguiu. Ao contrário quando, dias mais tarde, a força emotiva ganhou todo o espaço na grade com os atentados em Paris. Jornalistas foram deslocados para sentirem in loco mais uma fermentação de pânico pelo terror a tomar conta da cidade. Mais uma vez foi patético acompanhar as expressões e as falas dos plantonistas, empurrados pela especulação e alimentados por uma incipiente audiência.

Ainda em relação ao texto que escrevi com Mônica em 2011, confirma-se a amplitude cada vez mais consistente das mídias digitais, sepultando aos poucos o que sobrou dos meios tradicionais, de cunho patriarcal. Eles fenecem por não saber se adaptar a um mundo mais versátil, disperso – e não direi aqui fragmentado – que propicia mais acessos, mais possibilidades de mobilidade. Se há quinze anos me incomodava pelas previsões do fim da mídia analógica, afinal me constituí sob os auspícios de seus grandes cronistas, hoje não nego minha satisfação em vê-la quase como um entulho a ser varrido. 

Não penso mais no embate contra os arautos do catastrofismo. Esses, de pretensa inspiração liberal, promovem o ódio e a desinformação. Fico à espera de que desapareçam naturalmente, pois quando deixarem a bancada, fenecerão mais depressa do que os veículos que os contrataram. Preocupo-me com o que vale a pena, com meus educandos, com a construção de um processo educativo no caminho da ação e da liberdade, inspirado por Paulo Freire. E assim é. Ao meu lado, um bom companheiro de consultas, o grosso volume do livro de Pascual Serrano, Desinformación – como los médios ocultan el mundo, que me informou nestes anos sobre a insustentabilidade de tanto sectarismo midiático.

02 novembro 2015

A conduta e as circunstâncias

Escada para o sótão, Bruxelas, 2010

O panorama político em nosso pais prossegue turvo, com pressões de diversos lados contribuindo para a paralisia econômica. Os políticos de Brasília não se entendem e a oposição tem um papel nefasto, pois além de não contribuir para um debate construtivo, não se incomoda em jogar contra o país. Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, sujeito leviano e muito habilidoso no trabalho de bastidores, constrói uma agenda conservadora que ameaça a modernidade do pensamento brasileiro, construída a duras penas por pensadores de nossa terra, de Sérgio Buarque a Milton Santos. Ele faz o seu esforço para que a nação regrida em suas conquistas sociais, aliando-se ao que há de pior da bancada evangélica e com o baixo clero da casa. E o que me parece mais grave, o governo – considerando a presidência e a bancada de deputados e senadores da situação – parece imobilizada, sem um projeto que nos retire do impasse desde as eleições.

De seu lado, a mídia aprofunda seu movimento insensato contra o PT, e nestas semanas, contra Lula. Em um texto intitulado “Operação: Zelotes. Alvo: Lula”, escrito por Jeferson Miola e publicado na Carta Maior, há um trecho que define bem o momento atual: “O condomínio policial-jurídico-midiático mirou no filho de Lula para acertar no próprio Lula, coincidentemente na véspera do aniversário de 70 anos deste que, com sua obra, já é um dos maiores personagens da história do Brasil moderno. Este método é parte de um plano estratégico de desconstrução, no imaginário popular, da imagem e do patrimônio simbólico que o Lula representa”.

Tenho esta mesma impressão, está em andamento um plano estratégico de desconstrução da imagem não só de Lula, como do PT, insuflado por parcelas do sistema jurídico, basta ver como se encaminha a operação Lava Jato; por parte do empresariado, basta ver como funciona as ações do tipo Millenium; e pela grande maioria da mídia corporativa, basta ver o argumento agressivo, sem qualquer propósito construtivo, que estampa nas manchetes de jornais, revistas, rádio e televisão.

O resultado disso não parece claro; a marcha para o impeachment parece estancada, porém, as dificuldades para se viabilizar uma política econômica vitoriosa permanecem. Em outras palavras, há muito de artificialismo nesta crise, e pouca vontade em resolvê-la. A sociedade organizada se mobiliza em suas demandas pontuais, e o governo se mostra impotente para orientar-se por algum caminho promissor.


17 outubro 2015

A Cerimônia do Adeus




Poderia começar dizendo que este livro foi a porta de entrada para o existencialismo francês. Mas prefiro dizer que este texto, A Cerimônia do Adeus, me ajudou a compreender a serenidade diante dos fatos. O enfrentamento da dor, no lugar do desconsolo compulsivo. Alegra-me ver a obra retornar às prateleiras das livrarias, em uma conjuntura social, política e econômica bastante distinta. Tinha meus 23 anos quando mergulhei no relato sincero de Simone, sobre seu companheiro que fenecia aos poucos e ao contrário da repulsa hipócrita descrita nas crônicas da época, senti uma poderosa adesão à narrativa fria e bem-posta. 

O que ela oferece? Em suma as circunstâncias de uma vida, os últimos dez anos do convívio com Sartre e os vestígios de uma prática engajada com os temas do mundo ao redor: no início, a palavra que transcende os gestos, a celebrá-los em sua plenitude, e que aos poucos dá lugar à palavra que se contém nos gestos, o angustiante ensejo de preservá-los do fim. Simone escreve, como diz, para os amigos de Sartre, mas sobretudo para si, para certificar-se de que a força da tragédia que nos arrebata a alma é o mais caro desígnio da condição humana. Uma obra para se desvelar a fenomenologia dos sentimentos que nos espreitam e nos possibilitam renascer.


30 setembro 2015

Cesare Zavattini

Cesare Zavattini

Cada coisa ao seu tempo. Depois de Eisenstein e sua montagem de atrações, agora Zavattini e a continuidade de um realismo dos pequenos gestos e das personagens singelas, a câmera que não disseca, mas apenas registra. Esse momento tão belo do cinema, o neo-realismo italiano, me emociona não apenas pelas narrativas humanas, mas por todo o conjunto de suas qualidades, que não são poucas. A beleza de um cinema sem metáforas, onde, como diz Bazin, "a imagem realista, fotográfica, mimética, fala por si mesma, sem qualquer apelo à consciência enunciadora; uma espécie de grau zero da linguagem cinematográfica". 

O curso com a Profa. Mariarosaria Fabris, sobre o neo-realismo italiano, isso no longínquo ano de 2000, quando ainda alimentava uma perspectiva acadêmica voltada para linguagem cinematográfica. Foi antes de um saboroso aprendizado, um primeiro e intenso contato com a magia do realismo social. Vi a Itália sob diversos matizes, descrita por roteiros soberbos em sua simplicidade, representados pela gente anônima do campo e das cidades, e, talvez, a marca principal, a descrição do acontecimento em si, sem o apelo de qualquer efeito espetacular.  

Nesse sentido, gosto de me referir ao filme Umberto D, dirigido por De Sica e com roteiro de Zavattini. Atrevo-me a dizer que se trata da grande obra do neo-realismo, aquela que incorpora seus principais conceitos técnicos, a começar pela narrativa despretensiosa da vida de um velho, Umberto Domenico Ferrari, e seu cachorro Flaik. A câmera não promove estrepolias, ela apenas descreve os fatos ordinários da vida, como a célebre sequência da preparação do café por Maria, que trabalha na hospedaria em que se encontra Umberto. O fogo aceso, a caminhada até a janela, a visão soturna dos fundos do prédio, a chaleira com água, a reflexão sobre a gravidez, o café sendo moído, e sentada, esticando a perna para fechar a porta...

Zavattini ainda iria ao México com a proposta de trabalhar ali a estética neo-realista. Conforme Paulo Paranaguá, ele acredita que o "México está maduro para produzir uma obra cinematográfica realista verdadeiramente importante". Serão três viagens, entre 1955 e 1957, sem que obtenha resultados conclusivos. Estende a aventura latino-americana para contatos e experiências em Cuba e Argentina, inspirando Fernando Birri em seu primeiro longa-metragem de ficção, Los Inundados com a marca do neo-realismo.


15 setembro 2015

Periferias Digitais


Ao iniciar minhas pesquisas sobre as culturas nas periferias com o propósito de abordar também os componentes da sua vida social, deparei com dificuldades que imaginava difíceis de serem superadas. Em suma, a questão que se colocava, como viver nos espaços de precariedade sob os mesmos princípios universais de direito e cidadania que regiam os espaços privilegiados da cidade? Por onde começar a luta e como manter as conquistas?

Na Cooperifa e no bar do Binho aprendi que estas questões não se colocavam da mesma forma: não havia metas ou prazos para defini-las. Em um olhar muito mais simplista e eficiente, havia o desejo de transformar pela leitura. No início do novo milênio, este era o singelo esforço, mobilizar jovens, velhos, mulheres no mesmo propósito da escritura e da declamação, amparados no lema "quem lê enxerga melhor", como dizia o principal artífice dos saraus poéticos, Sérgio Vaz. 

Com ele, aprendi que não se contabiliza conquistas, apenas se intensifica o que dá prazer. Os resultados são esparsos, mas consistentes: aqui e ali, uma criança, um adulto que passam a ler e escrever, e como dizia Paulo Freire, "a nomear o mundo". Os valores se transfiguram, o mundo ganha as cores inesperadas.

Gosto de pensar que quando comecei, os encontros se davam presencialmente. Como consequência, seus efeitos mobilizadores se restringiam ao espaço dos bares ou das escolas públicas, onde os saraus se realizavam. Eventualmente, emergia um grupo de uma outra prática cultural, convidando as pessoas a participarem. Durante anos foi assim.

Com os ganhos das políticas públicas de acesso ao conhecimento e aos bens materiais, como plataformas digitais, esses mesmos jovens aos poucos começaram a ousar transformar de maneira massiva, e hoje pululam os grupos culturais e as ações sociais, ancorados nas redes sociais. É essa renovação no modo de agir que me instiga a prosseguir meus estudos nas Periferias paulistanas.

Abaixo, alguns excertos do artigo 'As Periferias Digitais: mobilização e cidadania nas margens sociais em São Paulo' , apresentado recentemente nas Jornadas de Sociologia na UBA, Buenos Aires, e organizado com base nas primeiras impressões digitais desse maravilhoso concerto!


1) Crescimento e Segregação em São Paulo

Para avançarmos na discussão sobre cidadania e mobilização social na cidade de São Paulo, convém fazermos um retorno ao passado, lançando olhares sobre o período em que a cidade começa a delinear seus contornos de grande cidade, isso no início do século XX.

Vinte anos antes, por volta de 1880, não passava de uma pacata cidade com cerca de 50.000 habitantes. Seu posicionamento estratégico, como centro financeiro em razão da cultura do café, que se esparramava por todo o oeste do Estado, e próxima do porto de Santos, que oferecia a imediata exportação do produto, permitiu que a cidade crescesse de modo vertiginoso, passando a mais de 230.000 habitantes em 1900 e a 579.000 habitantes em 1920. 

Todo esse crescimento foi impulsionado pela forte chegada de imigrantes europeus e para se ter uma ideia desta presença, na virada do século a população da cidade era constituída por cerca de 50% de estrangeiros. Esse contingente migratório maciço ocorreu em razão da política governamental que incentivou a importação de trabalhadores brancos europeus para substituir a mão de obra negra, em um procedimento que visava a “branquear” a população brasileira.

Neste período, São Paulo era uma cidade concentrada e aproximadamente 80% das moradias eram alugadas (CALDEIRA, 2000). A elite que se origina da riqueza do café e do comércio dinâmico, logo buscará se afastar do ambiente de promiscuidade e doenças, deslocando­se para áreas mais afastadas, em exclusivos empreendimentos imobiliários como o bairro de Higienópolis, assim nomeado em clara alusão às suas melhores condições de higiene.

Nos anos 1930, com a expansão da cidade, o prefeito Prestes Maia lançará o Plano de Avenidas, e tal como Haussmann fez com Paris, previa rasgar a cidade a partir de eixos viários com a demolição da região central, promovendo a especulação imobiliária, que expulsará os trabalhadores para bairros mais afastados, por não terem como arcar com os pesados aluguéis. A cidade que já possuía um razoável sistema de transportes públicos baseado em bondes, passa a valorizar o transporte por ônibus, cuja expansão dos serviços (a partir da década de 1940) será explorada por empresários particulares, também especuladores imobiliários.

O padrão de urbanização se modifica, a cidade se dispersa, as classes sociais passam a viver longe uma das outras: os pobres migram para as periferias; a classe média e alta ocupa os bairros centrais, mais equipados, em um processo de segregação social que se acentua ao longo dos 50 anos seguintes. O sistema de transportes também se modifica, cada vez mais os bondes desaparecerão, o ônibus chegará a espaços mais distantes, muitas vezes vazios, para atender aos crescentes fluxos de trabalhadores pobres, e o automóvel circunscreve-se aos ricos.

A cidade se verticaliza com a exploração imobiliária e a partir dos anos 1960, a classe média passa a ocupar apartamentos recém construídos e financiados pelo SFH, aprofundando o padrão de segregação urbana. Nos anos 1970, segundo Teresa Caldeira, temos o seguinte panorama urbano:

“Os pobres viviam na periferia, em bairros precários e em casas autoconstruídas; as classes média e alta viviam em bairros bem equipados e centrais, uma porção significativa delas em prédios de apartamentos. O sonho da elite da Velha República fora realizado: a maioria era proprietária de casa própria e os pobres estavam fora do seu caminho. (Caldeira, 2000, p.228)  
 
Os pobres, esquecidos e empurrados para as periferias cada vez mais distantes, se mobilizam com a abertura política (1979) para retomar as mobilizações por direitos civis e moradias, embora as dificuldades para o financiamento da casa própria persistam. A autoconstrução torna-se dispendiosa ao longo dos anos 1980, e embora em ritmo menor que no período 1950-1970, ela prosseguirá, sobretudo nos extremos da cidade, onde o preço do lote de terra é mais barato e o controle público menos rigoroso (KOWARICK, 2009). 

As dificuldades econômicas do período, que culminam com a grave crise financeira mundial de 1982 e a consequente declaração da moratória da dívida por parte do governo brasileiro, elevam o número de moradores das favelas na cidade e tal como a designação periferias, no plural, as favelas devem ser assim compreendidas, espaços diferenciados, múltiplos, ambientes com diferentes padrões sociais e distintos patamares de desigualdade, como diz Kowarick:

“As favelas e seus habitantes devem ser vistos no plural, pois não só são diferentes entre si, como, num mesmo aglomerado é freqüente se encontrar­ padrões socioeconômicos e urbanísticos bastante diversos: elas constituem microcosmos que espelham os vários graus de desigualdade presentes nos estratos baixos de sedimentação da sociedade e, assim, não podem ser vistas como mundos à parte e excluídas da cidade em que estão inseridas”. (Kowarick, 2009, p. 224­/225).

Nos anos 1990 São Paulo é uma cidade mais complexa e fragmentada, mantendo a segregação, mas o modelo centro­periferia, marcado pelo distanciamento geográfico entre pobres e ricos, ainda que permaneça em seus contornos gerais, passa a ver o surgimento de empreendimentos imobiliários para as classes média e alta expandir para as áreas fronteiriças, avançando em espaços habitados por pessoas das classes menos favorecidas, criando espaços de moradia de luxo sob a designação de condomínios, ou, conforme Caldeira, enclaves fortificados.

Esse padrão urbano permanecerá ao longo das décadas seguintes, aprofundando a segregação urbana mesmo havendo a proximidade de classes em determinadas regiões urbanas. As novas oportunidades dos moradores mais pobres, de financiamento a baixo custo pelos bancos federais, não irão arrefecer a desconfiança e em muitos casos, o preconceito e a xenofobia  por parte dos mais ricos.

É com esse panorama, centrado no crescimento de São Paulo ao longo do século XX, recuperando os sentidos de uma segregação urbana que marca a profunda desigualdade social e econômica paulistana, que proponho a discussão sobre o padrão urbano de hoje, a realidade das periferias do ponto de vista delas, em um momento de mudança de hábitos definida pela utilização da tecnologia digital. Para além das transformações nos comportamentos cotidianos, ela, a tecnologia digital – consolidada nos usos de celulares, notebooks, tablets etc, oferecendo distintas plataformas de comunicação com seus inúmeros aplicativos – se coloca como uma ferramenta preciosa de construção de discurso e construção de redes sociais, ao acesso também das camadas menos favorecidas da sociedade.

(...)


12 setembro 2015

A placidez de um dia



Regresso de uma boa aula, produtiva dentro do que se pode esperar, melhor do que poderia ser. A delicada dispersão não foi suficiente para chegarmos a bom termo, por isso me sinto satisfeito, com o dever cumprido. A faculdade estava com um movimento abaixo do normal, hoje é sexta-feira e choveu praticamente o dia todo. Seria difícil imaginar que as coisas terminariam bem, depois de mais de quarenta minutos no metrô, lotado, com problemas de circulação. Optei por ir até a estação inicial, com menos gente, e dali tomar o sentido da faculdade. Demorou além da conta, cheguei com atraso, mas quantos não chegaram! E a sala me aguardava, serena, pouco mais da metade dos alunos, discutimos a representação do negro na cena brasileira.

Agora, o silêncio da noite, e antes dele, a chuva persistente. O movimento da Augusta é calmo, as pessoas se recolheram antes da hora, o friozinho do final de inverno é convidativo para um bom sono. Não tenho pressa, depois ainda navego um pouco pelas redes sociais, consulto as eventuais mensagens, avalio as notícias da semana, raquíticas, sobretudo as vindas do congresso e do executivo. Nada de novidades estimulantes, o que transforma a luta pela manutenção de uma nesga de nossos ideais em um esforço desgastante.

Descansei profundamente por um bom tempo, no meio da tarde. Precisava terminar com algumas tarefas, mas mantive-me aquietado. Pensei na saúde de meu pai, felizmente está tudo bem. Ainda resta um texto para concluir e enviar para uma revista, permanecem pendentes leituras já separadas. Nem mesmo o texto da aula de hoje foi repassado, até porque trata-se de um tema bem trabalhado. Durante a aula, com a inesperada complacência ou atenção, foi possível aprofundar certos detalhes que em outras ocasiões foram esquecidos, e nesses momentos é possível sentir o pulsar de certos olhares, aturdidos com as revelações da dor negra em nossa história.

Não houve almoço, apenas um prolongado café com cockies, e o prazer do reencontro. Conversamos longamente, sobre as coisas nossas, as jornadas recentes, os projetos futuros, a graça de seu sorriso satisfeito, que me dá vida. Penso agora nesses saborosos momentos, que são suspensos e retomados com amor, com sintonia, com serenidade. Buenos Aires no horizonte, talvez. E sorrimos.

Despertar não foi difícil, mesmo com a chuva tamborilando e dia preguiçoso. Não havia compromissos urgentes, apenas o texto para a revista, e a consulta aos emails. E a aula da tarde. Os livros separados para as leituras a serem feitas permaneceram sobre a escrivaninha, não havia pressa. Peguei duas obras de Bourdieu e fui para o café encontrá-la.


22 agosto 2015

Deutscher, Trotski


Natália, Trotski e Liova


Faz algumas semanas que penso em escrever sobre os últimos anos de Lev Davidovich, Trotski, do ponto de vista de seu mais completo biógrafo, Isaac Deutscher. Porque ali encontro não só a bela descrição de um consistente sistema de ideias - do contrário, não teria sido vítima de cruel perseguição sofrida por longos doze anos - mas também o texto exuberante de um intelectual marxista polonês que se empenhou em relatar em profundos detalhes o percurso do líder bolchevique.

Exuberante por vários motivos. O que mais me atrai na construção da pesquisa de Deutscher é a competência como descreve a cronologia dos fatos de uma época, sempre relacionando com sua personagem biografada. Assim, tomando este terceiro volume, O Profeta Banido, é possível acompanhar um painel da situação da oposição política na URSS no final dos anos 1920 com o exílio de Trotski em Alma Ata e mais tarde, com seu banimento para Prinkipo, na Turquia. Os anos trinta aparecem como uma sucessão de desventuras para Trotski, perambulando pela França, Noruega e México, sempre com o pano de fundo político de cada país, desenhados pelos principais atores políticos da época. 

A evolução do pensamento e da ação de Trotski são regidos pelas circunstâncias políticas definidas pelo exílio, e paralelamente, pelos acontecimentos no cenário europeu, como a subida dos nazistas ao poder, o front Populaire, os processos de Moscou, os alinhamentos dos partidos comunistas e a capitulação à burocracia stalinista. Os macro acontecimentos regem os movimentos de Trotski, que sem tempo para se definir uma plataforma de ação, sucumbe às pequenas demandas, as disputas internas de seu movimento e as urgentes respostas aos caluniadores. Aqui e ali, a liberdade para uma ação política mais consistente, como os encontros com Rivera e Breton, por exemplo, mas será uma década sem uma grande obra, à altura de Literatura e Revolução, ou A História da Revolução Russa, redigidos quando ainda participava do poder.         

Minha primeira leitura de O Profeta Banido ocorreu há exatos 30 anos, quando organizava meus conhecimentos políticos não apenas da revolução russa, mas sobre as tendências de esquerda, de um modo geral. Respirávamos, naquele momento, os ares da redemocratização, e os partidos definiam seus projetos para o embate político, que se estenderia com vigor até as eleições de 1989. Curiosamente neste ano, com a queda do muro de Berlim, ocorre um refluxo das utopias da esquerda, ocasião em que o neoliberalismo, amparado nos ideais dos governos de Reagan e Thatcher, ganha espaço com fuerza abrumadora. Os sonhos e esperanças dos processos de reabertura política nos anos 1980 em nosso continente sofreram um duro golpe, e o retrocesso duraria pelo menos uma década, quando uma onda de governos populares, começando em 1999 com Hugo Chávez e com Lula em 2002, romperiam de vez com o projeto de um mercado comum nas Américas, a famigerada Alca.  

De lá para cá, costumo retomar ao acaso a leitura de pequenos trechos da obra de Deutscher, e me situar em um determinado espaço-tempo da vida pessoal de Trotski. Termino por permanecer dias e mesmo semanas com o largo volume, avançando, recuando, buscando outros instantes desta luta imensa e condenada. Premido pela velocidade dos fatos, é um período em que não ocorrem grandes debates políticos que possibilitem um avanço no campo das ideias e das práticas no movimento comunista. Mesmo a organização e realização da 4a. Internacional se dará de modo praticamente clandestino. Trotski só tem tempo de responder, de reagir, e em certo sentido, de dançar conforme a música, o que faz com muita energia. A evolução dessa atividade exige esforços desgastantes, que nem sempre terão a repercussão desejada.  

Trotski esteve sempre muito à frente na análise da conjuntura política do que seus seguidores. Foram poucos os fiéis companheiros que puderam compreender e dar continuidade ao conjunto de proposições de seu líder, e nesse sentido fracassaram. Na parte final de sua vida, Trotski esteve à deriva na busca por um exílio satisfatório e por conta disso e da implacável perseguição da GPU, viu-se completamente isolado na articulação da 4a. Internacional, e como comentado acima, no avanço de uma oposição eficiente ao centralismo burocrático. A grande obra, a elaboração de uma biografia de Lênin, e sua principal denúncia, a biografia iniciada sobre Stálin, não se consubstanciaram. Pela dificuldade das circunstâncias, Trotski não conseguiu granjear militantes e simpatizantes em número suficiente para recompor uma plataforma de lutas, e não tardou a ser devorado pela insídia stalinista. 

Ao tempo em que a narrativa das tensões políticas avança, Deutscher, por sua formação eclética, nos permite igualmente aproximações frequentes com a literatura. Em certo momento, Trotski se refere aos percalços do dr. Stockmann, personagem de Ibsen, quando se vê acuado por uma autoridade norueguesa. Mais tarde pude ler esta peça e constatar as similaridades entre a ficção e a realidade. Deutscher também relata a coincidência histórica que o próprio Trotski, em dado momento, estabelece com o arcipreste Protopop Avvakuum, personagem do século XVII que terminou condenado à imolação em praça pública. Também a certa altura, surge a referência ao rei Lear, de Sheakespeare. As relações com personagens atormentados ou condenados não descaracteriza o sentido da resistência ideológica que impregna cada personagem e por certo seja este aspecto, de cariz visceral, inexorável, que me aproxima de Trotski. E é o que encanta no magnífico painel construído por Deutscher. 


17 agosto 2015

O disperso agregado

manifestação
"Essas cicatrizes constituem deformações (...) podem tornar as pessoas burras"
Adorno/Horckeimer - A dialética do esclarecimento.

Nada me pareceu tão vago quanto esta manifestação organizada pelas oposições no Brasil. Na verdade, mais um encontro do tipo convescote de final de semana ensolarado do que propriamente um movimento reivindicatório. O dia estava bonito, a força convocatória nas mídias em pleno vapor, então porque não ir até a Paulista com a família, vestindo as camisas amarelas? Como de costume, os carros de som se distribuíam pela avenida, martelando palavras de ordem proferidas ao sabor do ódio do momento, em falas curtas, nem sempre audíveis, finalizados com os chavões usuais que ditos com a fúria esperada, empolgam os participantes do pedaço. As diatribes geradas pelo sistema de som de um veículo nunca é o mesmo daquele outro, trezentos metros adiante, e assim, em cada pedaço da manifestação, uma sandice distinta da outra, animando a indignação de quem transita com suas faixas disformes. Aqui, uma em inglês rechaçando tornar-se uma Cuba, ali outra pedindo a intervenção militar, acolá uma justificando a sonegação como legítima defesa... Procurei caminhar por entre os manifestantes, não se nota unidade, mas fragmentos que circulam, como blocos no degelo de um caudaloso rio. Se persiste o sentimento de repúdio, não é menos verdade que ele não se integra em uma agenda, como disse acima, em um discurso consistente, que dê força e sentido ao movimento, fazendo-o avançar. Se não há representação política, se não há proposição organizada em um conjunto de demandas, então o que move aquelas pessoas? Quem são? Provêm de quais setores sociais? É difícil compreender que não se articulam em torno de uma finalidade a não ser a retirada de Dilma e do PT do poder. Também parece muito simplório dizer que sejam conduzidos por uma onda de desprezo gerada nas mídias hegemônicas, ou patrocinados por não sei quais corporações. O que sei é que desfilam de modo descontraído, milhares deles, em sua maioria brancos, com aparência saudável, em família, com trajes verde-amarelo, exalando mais do que indignação, o vigor de uma repulsa raivosa, em muitos momentos grosseira, preconceituosa e presunçosa, e não raro, historicamente equivocada. O andar incerto de uma tarde, um disperso agregado que é sem se consubstanciar, sintoma de uma episteme que não se consolida, de um mal-estar que não se dilui, mas também não ganha força implacável. Temos um movimento contemporâneo, parido do ventre neoliberal, que se agrega de acordo com os matizes do momento, em torno de pequenos grupos que arregimentam com base em sua notoriedade efêmera, canalizando sentimentos fragmentários e como consequência, produzindo posicionamentos tão díspares quanto indefinidos. 

Eis meu esforço, em torno de palavras, que não conseguem dimensionar uma clara impressão dos fatos.


28 julho 2015

A propósito da mediocridade que nos pertence




"(...) do entulho da terra arrasada, foram poucos os que restabeleceram a integridade moral como outrora; era triste perceber os vagalhões sonolentos, entrecruzando-se à deriva, os corpos vergados sem o menor vislumbre de um desejo específico, os semblantes aturdidos murmuravam para si mesmos palavras incompreendidas, como se abrissem espaço para suas almas fatigadas se pronunciarem. Em um primeiro olhar, não se distinguia homens de idosos de mulheres, mas estas logo se pronunciavam por sua natureza acolhedora, identificadas ao se aproximarem dos pequenos destroços humanos, as crianças. Acalentar seria um nobre exagero, pois mesmo elas, mais sábias e atentas, não dispunham de reservas mentais para a virtude da compreensão, esgotadas quando alguma coisa ainda podia ser salva. De modo vago, se distinguiram aqueles que desde sempre foram mantidos nas margens sociais urbanas; mostravam-se mais adaptados às circunstâncias, c'est à dire, imunes ao descalabro moral pelo vilipêndio secular, tornavam-se por fim os agentes protagonistas da recomposição do que outrora se denominou vida social".


20 julho 2015

Regresso multifacetado


Fachada, calle Montevideo

Um ano e sete meses mais tarde, no mesmo hotel, próximo do Congresso e da estimada calle Callao de tantos percursos...

Encontro em um sebo da avenida de Mayo, após breve consulta, um livrinho de Caillois, Imágenes, Imágenes..., e considerando a pesquisa atual em que me envolvo, e também considerando a pechincha, a primeira de minha estadia na cidade, 40 pesos, o adquiro. É sobre o tema do fantástico, eu o folheio em saltos aleatórios enquanto caminho rumo ao Café Florida Garden. Sobrevêm frases que me convencem do acerto da aquisição, 'Lo fantástico (...) manifiesta un escándalo, una rajadura, una irrupción insólita, casi insoportable en el mundo real (...)'. O frio não se manifesta em sua intensidade esperada, neste inverno portenho. É possível caminhar com leveza, agradavelmente tomado por reflexões incertas em meio à multidão que circula no anoitecer do sábado. Havíamos estudado Roger Caillois há um ano, no grupo de estudos, e sua leitura sobre uma sociologia dos jogos. Nesta pequena obra que perscruto avidamente, sinto a fluidez característica de seu argumento, a beleza de como aporta o tema, servirá de embasamento teórico-metodológico para o texto que preparo, ainda em fase de pesquisa bibliográfica, uma relação entre os fantásticos das narrativas midiáticas e o fantástico maravilhoso da narrativa latino-americana. 

Até alcançar o Florida Garden, diversas alternativas se abrem e se oferecem para mim, convidando-me serenamente a adentrá-las. Corrientes, Córdoba, Santa Fé, cada uma oferecendo destinações distintas, entre outros cafés e livrarias. Meu primeiro problema está em utilizar meu cartão de crédito, problema que irá me acompanhar até o final da estadia. De posse de pouco dinheiro en efectivo, cuido com os gastos. Não será desta vez que terei meu chapéu de feltro, ou uma jaqueta forrada para o inverno. Serão consumidos, em suma, meramente os ingredientes que faziam o slogan do governo socialista de Allende, vino y empanadas.

Os livros, as refeições, as roupas, o custo de um modo geral está elevado. Um prato com um bom contra-filé con papas está em 85 pesos; um bom livro, por exemplo, sobre as entrevistas da Garganta, uma revista muito popular por aqui, está 200 pesos; o café do Florida, com seus saborosos petit-fours, 25 e as deliciosas empanadas do La Americana, 14 cada; o modelo de sapatos da ESE que tanto aprecio, 690 pesos. Barato ainda está o transporte, 5 pesos para o metrô, 16 pesos a bandeirada do táxi. O problema está no câmbio que se faz. Nos lugares oficiais, um real vale 3 pesos no máximo; em alguns postos mais conhecidos, como nas Galerias Pacífico, não vale mais do que 2,3 pesos. Já no câmbio negro das ruas, se consegue 3,8 pesos. Nos jornais não se vê mais a cotação da moeda argentina em relação a outras, pelo simples motivo de que há uma inflação elevada em curso. Viajei com meros 600 reais, o que me sustentará pelos cinco dias na cidade, mas não me permitirá pagar as despesas do hotel, o que é um problema a ser resolvido.

A estada cobre três dos cinco dias de discussões sociológicas, nas Jornadas de Sociologia da UBA, e assim, cumprir adequadamente minha missão em Buenos Aires. Porém, por conta dos transtornos causados pela não-liberação de meus cartões, dedico-me apenas a uma mesa-redonda na noite da segunda-feira, e à seção da mesa 2 em que fiz minha apresentação, na terça pela manhã. Ainda assim muito proveitoso, mais uma vez surpreso com a clareza da discussão epistemológica-metodológica em cada trabalho, presente em cada arguição das comentadoras. 

Em razão do final do semestre letivo, não consego me dedicar à preparação de um texto consistente ao meu gosto. Realizo o necessário para assegurar minha participação, ao encaminhar um trabalho no último prazo, em uma primeira versão. Proponho uma continuidade de minhas investigações do doutorado, agora estudando o acesso e a importância das redes sociais nas periferias paulistanas. O título, A Periferia Digital, mobilização e cidadania nas margens sociais em São Paulo, e pode ser lida na página do evento, aqui.

Vagueio minimamente por caminhos e lugares que aprecio, como também descobri outros, como a própria Faculdade de Ciências Sociais. Mas frequentemente, no lugar da costumeira flanêrie, me vejo percorrendo ansiosamente o espaço público, na busca por respostas ao acesso monetário que jamais viria. Termino por visitar mais casas financeiras do que cafés, com o comprometimento da reflexão sociológica. 

Na segunda-feira participo de uma mesa-redonda, Diálogos entre saberes y pensamiento crítico en América Latina, com professores da casa e convidados, seis ao todo, e mais uma plateia de dez ou quinze pessoas. Sempre esse frescor latino-americano no pensamento e na palavra da sociologia argentina, já tinha sentido este prazer nas Jornadas de 2013 e no curso sobre Pierre Bourdieu, em 2012. A necessidade de se abordar o complexo panorama de Nuestra Pátria, de incluir as diversidades presentes, de configurar o sul não apenas geográfico, mas também epistêmico. 

Acompanho com deleite o argumento visceral de professores da minha geração, firmes em um propósito que se realiza a cada encontro como aquele, generosos em suas proposições, em seu entusiasmo por novos paradigmas de atuação nas Ciências Sociais, insatisfeitos com a mera aplicação da teoria. Falam de uma investigação participante, de um saber que se constrói na ação, nesse sentido deslocando-se ao encontro de seus alunos, das pessoas das ruas, da sociedade de modo geral, repondo novas utopias pelo caminho. Gosto dessa urgência, desses caminhos que designam aportes de um Mariátegui ou Prebisch, que educam e aprendem ao mesmo tempo, o investigador em posição de escuta. 

Nora Garita, da Costa Rica, aprofunda o sentido de uma ciência social mais de acordo com seu tempo, diz sobre a importância de repensarmos todas as categorias em que trabalhamos, e muito importante, romper com a maneira eurocêntrica de fazer (e pensar) ciência social. Deixa bem claro que nossa língua ibérica, e consequentemente nosso pensamento, nunca estarão contemplados devidamente nas base de dados que avaliam a qualidade e o ineditismo da pesquisa, saibamos lidar com isso e seguir em frente. E Alejandro Horowitz nos brindou com uma fala contundente sobre o drama grego, a operação de saque explícito levada a cabo pela bancocracia global! E reiterou a importância da produção de conhecimento como instrumento político para a ação, pois afinal das contas, para quem estão trabalhando os intelectuais e os acadêmicos?

A Grécia que não deixa de aparecer na televisão, com direito a trechos de falas do primeiro ministro Tsipras. Como também o tempo todo, a situação político-econômica da Argentina de hoje, pelas boas ou estrambólicas interpretações. Noto que por mais que o cidadão comum discorde dos rumos do governo kirchnerista, sua crítica não sobrepõe a necessidade de uma consciência crítica em relação aos desígnios do país. Em outras palavras, não abandona com argumentos levianos o compromisso político com a nação. Claro que não me refiro aqui à nata da burguesia de Barrio Norte ou Palermo, ou dos representantes ruralistas, essa gente não se difere ideologicamente em qualquer parte da América Latina, seus pensamentos e sentimentos se vinculam desde sempre aos ideais e aos prazeres de Miami. Falo, repito, do cidadão comum, esse que encontro no espaço público, que sofre com os problemas, que se zanga ou apoia o oficialismo, e daí, mais do que as divergências, surgem as narrativas, caudalosas, deleitosas.

Com Labarba, tive meu primeiro e provavelmente o último encontro. Nos cruzamos em frente à praça do Congresso, eu saía do hotel, ele caminhava na calçada da Yrigoyen, tudo muito casual. Tomou a iniciativa de fazer um comentário sobre esses imigrantes que não querem trabalho. Atravessamos a rua e por alguma razão, optei por ouvi-lo, apenas ouvi-lo, até onde poderia ir, em sua crítica ou em seu preconceito. Ficamos parados na esquina, ele vestindo um garboso sobretudo e o pescoço envolto em um cachecol. Havia certa crueldade em sua indignação, uma suave convicção de que aqueles imigrantes (víamos alguns pedintes con rasgos bolivianos...) eram diferentes dos imigrantes de outros tempos. Os italianos como meu pai, vieram para trabalhar duro... dizia e até aí o discurso não prometia nada, mas aos poucos, derivou do social para o particular, para a ambiência de Gênova, a terra de seus ancestrais, e mostrou curiosidade com meu apellido Bin, muito pouco italiano... Contou como assistia seu avô sangrar um porco, contou o que significou a loucura econômica dos tempos de Menem, contou... 

Sua voz mantinha um compasso amistoso, ainda que em um tom aristocrático, expressando o desejo de falar, a fala como posse impositiva do argumento, trazida como a expressão do habitus de sua classe social. Perguntei-lhe a idade, meu derradeiro e distante interesse pelo homem que surgira do nada, e que retomaria o caminho, altivo, por entre os imigrantes.