08 dezembro 2015

A nossa negritude



E tive uma experiência que mobilizou meu imaginário de tal forma, que por momentos acreditava estar diante de sucessivas etapas da memória coletiva e histórica de nosso país, algo sem um recorte específico, tudo no plano das emoções e de um apanhado mental que envolve os conhecimentos acumulados sobre a nossa cultura. 

Claro que estava sugestionado pela ótima leitura do texto do Alberto da Costa e Silva, mais um sobre a formação do Brasil, População e Sociedade. Enquanto avançava no texto, via o Brasil metonímico diante de mim, pequenos grupos de jovens reunidos em torno de seus murmúrios, discutindo as questões sobre Euclides da Cunha, Paulo Freire, Caio Prado Jr...

Por momentos, não era apenas o bulício das falas e as reflexões sobre as hipóteses sociais, políticas e culturais que construíam, mas a naturalidade das consultas entre os grupos, movidos por dúvidas, não interferi, optei por observar e imaginar os matizes variados, os jogos das cores e das origens, a miscelânea das ocupações profissionais, as esperanças por voos imprecisos, os anseios por consolidar novas realizações.

Ali estava o corre das ruas no Rio colonial, as vozes dos mercados e das casas, escravos de pé no chão, ex-escravos na viração, calça comprida e camisa de algodão rústico, carregadores, pedreiros, sapateiros (havia muitos), bem como amas de leite, vendedoras ambulantes, as falas de variadas origens africanas, mas que no final prevalecia o português "para o entendimento entre si - uma África já crioulizada, abrasileirada", as mulheres brancas já não mais escondidas no quarto, mas com confiança para frequentar as confeitarias e casas de chá, e as cores dos panos e xales de Cabo Verde, os vestidos pregueados à moda europeia, quizomba divertida e incontrolável, marca de um país que ao contrário da difundida perdição, por suas elites, sempre se reinventa na beleza e dureza de sua diversidade.

Eu vi tudo isso naqueles corpos performáticos, à minha frente, e encerro porque é preciso encerrar, com uma breve descrição do último grupo que deixou a sala, quase à última hora: três jovens negros muito falantes, que perdiam o tempo da prova para inserir lembranças e falas da casa, da mãe e da avó sempre às voltas com os afazeres domésticos, e logo as sonoras risadas, que podiam ser do entretenimento da rua do Brasil Colônia, em alguma casinhola de sopapo, taipa de mão, no breu da noite, à espera do novo dia de labuta intensa... mas logo recobravam a discussão do texto Procissões, Hip Hop e Cosplay, representações da negritude em teatralidades públicas, escrito por mim e Mônica Nunes, no afã de descrever o protagonismo do negro em nossa cultura. 

O que significava aquilo tudo? Sabiam que havia uma sutil continuidade, um deles levanta a mão e se dirige de forma assertiva para mim, "seria legal retomarmos aquele assunto novamente, professor"... E por fim terminam um tanto extasiados pela discussão do tema, entregam a prova ainda conversando entre si, e o mesmo rapaz acrescenta, "professor, quanta coisa importante para pensar...".



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