20 julho 2015

Regresso multifacetado


Fachada, calle Montevideo

Um ano e sete meses mais tarde, no mesmo hotel, próximo do Congresso e da estimada calle Callao de tantos percursos...

Encontro em um sebo da avenida de Mayo, após breve consulta, um livrinho de Caillois, Imágenes, Imágenes..., e considerando a pesquisa atual em que me envolvo, e também considerando a pechincha, a primeira de minha estadia na cidade, 40 pesos, o adquiro. É sobre o tema do fantástico, eu o folheio em saltos aleatórios enquanto caminho rumo ao Café Florida Garden. Sobrevêm frases que me convencem do acerto da aquisição, 'Lo fantástico (...) manifiesta un escándalo, una rajadura, una irrupción insólita, casi insoportable en el mundo real (...)'. O frio não se manifesta em sua intensidade esperada, neste inverno portenho. É possível caminhar com leveza, agradavelmente tomado por reflexões incertas em meio à multidão que circula no anoitecer do sábado. Havíamos estudado Roger Caillois há um ano, no grupo de estudos, e sua leitura sobre uma sociologia dos jogos. Nesta pequena obra que perscruto avidamente, sinto a fluidez característica de seu argumento, a beleza de como aporta o tema, servirá de embasamento teórico-metodológico para o texto que preparo, ainda em fase de pesquisa bibliográfica, uma relação entre os fantásticos das narrativas midiáticas e o fantástico maravilhoso da narrativa latino-americana. 

Até alcançar o Florida Garden, diversas alternativas se abrem e se oferecem para mim, convidando-me serenamente a adentrá-las. Corrientes, Córdoba, Santa Fé, cada uma oferecendo destinações distintas, entre outros cafés e livrarias. Meu primeiro problema está em utilizar meu cartão de crédito, problema que irá me acompanhar até o final da estadia. De posse de pouco dinheiro en efectivo, cuido com os gastos. Não será desta vez que terei meu chapéu de feltro, ou uma jaqueta forrada para o inverno. Serão consumidos, em suma, meramente os ingredientes que faziam o slogan do governo socialista de Allende, vino y empanadas.

Os livros, as refeições, as roupas, o custo de um modo geral está elevado. Um prato com um bom contra-filé con papas está em 85 pesos; um bom livro, por exemplo, sobre as entrevistas da Garganta, uma revista muito popular por aqui, está 200 pesos; o café do Florida, com seus saborosos petit-fours, 25 e as deliciosas empanadas do La Americana, 14 cada; o modelo de sapatos da ESE que tanto aprecio, 690 pesos. Barato ainda está o transporte, 5 pesos para o metrô, 16 pesos a bandeirada do táxi. O problema está no câmbio que se faz. Nos lugares oficiais, um real vale 3 pesos no máximo; em alguns postos mais conhecidos, como nas Galerias Pacífico, não vale mais do que 2,3 pesos. Já no câmbio negro das ruas, se consegue 3,8 pesos. Nos jornais não se vê mais a cotação da moeda argentina em relação a outras, pelo simples motivo de que há uma inflação elevada em curso. Viajei com meros 600 reais, o que me sustentará pelos cinco dias na cidade, mas não me permitirá pagar as despesas do hotel, o que é um problema a ser resolvido.

A estada cobre três dos cinco dias de discussões sociológicas, nas Jornadas de Sociologia da UBA, e assim, cumprir adequadamente minha missão em Buenos Aires. Porém, por conta dos transtornos causados pela não-liberação de meus cartões, dedico-me apenas a uma mesa-redonda na noite da segunda-feira, e à seção da mesa 2 em que fiz minha apresentação, na terça pela manhã. Ainda assim muito proveitoso, mais uma vez surpreso com a clareza da discussão epistemológica-metodológica em cada trabalho, presente em cada arguição das comentadoras. 

Em razão do final do semestre letivo, não consego me dedicar à preparação de um texto consistente ao meu gosto. Realizo o necessário para assegurar minha participação, ao encaminhar um trabalho no último prazo, em uma primeira versão. Proponho uma continuidade de minhas investigações do doutorado, agora estudando o acesso e a importância das redes sociais nas periferias paulistanas. O título, A Periferia Digital, mobilização e cidadania nas margens sociais em São Paulo, e pode ser lida na página do evento, aqui.

Vagueio minimamente por caminhos e lugares que aprecio, como também descobri outros, como a própria Faculdade de Ciências Sociais. Mas frequentemente, no lugar da costumeira flanêrie, me vejo percorrendo ansiosamente o espaço público, na busca por respostas ao acesso monetário que jamais viria. Termino por visitar mais casas financeiras do que cafés, com o comprometimento da reflexão sociológica. 

Na segunda-feira participo de uma mesa-redonda, Diálogos entre saberes y pensamiento crítico en América Latina, com professores da casa e convidados, seis ao todo, e mais uma plateia de dez ou quinze pessoas. Sempre esse frescor latino-americano no pensamento e na palavra da sociologia argentina, já tinha sentido este prazer nas Jornadas de 2013 e no curso sobre Pierre Bourdieu, em 2012. A necessidade de se abordar o complexo panorama de Nuestra Pátria, de incluir as diversidades presentes, de configurar o sul não apenas geográfico, mas também epistêmico. 

Acompanho com deleite o argumento visceral de professores da minha geração, firmes em um propósito que se realiza a cada encontro como aquele, generosos em suas proposições, em seu entusiasmo por novos paradigmas de atuação nas Ciências Sociais, insatisfeitos com a mera aplicação da teoria. Falam de uma investigação participante, de um saber que se constrói na ação, nesse sentido deslocando-se ao encontro de seus alunos, das pessoas das ruas, da sociedade de modo geral, repondo novas utopias pelo caminho. Gosto dessa urgência, desses caminhos que designam aportes de um Mariátegui ou Prebisch, que educam e aprendem ao mesmo tempo, o investigador em posição de escuta. 

Nora Garita, da Costa Rica, aprofunda o sentido de uma ciência social mais de acordo com seu tempo, diz sobre a importância de repensarmos todas as categorias em que trabalhamos, e muito importante, romper com a maneira eurocêntrica de fazer (e pensar) ciência social. Deixa bem claro que nossa língua ibérica, e consequentemente nosso pensamento, nunca estarão contemplados devidamente nas base de dados que avaliam a qualidade e o ineditismo da pesquisa, saibamos lidar com isso e seguir em frente. E Alejandro Horowitz nos brindou com uma fala contundente sobre o drama grego, a operação de saque explícito levada a cabo pela bancocracia global! E reiterou a importância da produção de conhecimento como instrumento político para a ação, pois afinal das contas, para quem estão trabalhando os intelectuais e os acadêmicos?

A Grécia que não deixa de aparecer na televisão, com direito a trechos de falas do primeiro ministro Tsipras. Como também o tempo todo, a situação político-econômica da Argentina de hoje, pelas boas ou estrambólicas interpretações. Noto que por mais que o cidadão comum discorde dos rumos do governo kirchnerista, sua crítica não sobrepõe a necessidade de uma consciência crítica em relação aos desígnios do país. Em outras palavras, não abandona com argumentos levianos o compromisso político com a nação. Claro que não me refiro aqui à nata da burguesia de Barrio Norte ou Palermo, ou dos representantes ruralistas, essa gente não se difere ideologicamente em qualquer parte da América Latina, seus pensamentos e sentimentos se vinculam desde sempre aos ideais e aos prazeres de Miami. Falo, repito, do cidadão comum, esse que encontro no espaço público, que sofre com os problemas, que se zanga ou apoia o oficialismo, e daí, mais do que as divergências, surgem as narrativas, caudalosas, deleitosas.

Com Labarba, tive meu primeiro e provavelmente o último encontro. Nos cruzamos em frente à praça do Congresso, eu saía do hotel, ele caminhava na calçada da Yrigoyen, tudo muito casual. Tomou a iniciativa de fazer um comentário sobre esses imigrantes que não querem trabalho. Atravessamos a rua e por alguma razão, optei por ouvi-lo, apenas ouvi-lo, até onde poderia ir, em sua crítica ou em seu preconceito. Ficamos parados na esquina, ele vestindo um garboso sobretudo e o pescoço envolto em um cachecol. Havia certa crueldade em sua indignação, uma suave convicção de que aqueles imigrantes (víamos alguns pedintes con rasgos bolivianos...) eram diferentes dos imigrantes de outros tempos. Os italianos como meu pai, vieram para trabalhar duro... dizia e até aí o discurso não prometia nada, mas aos poucos, derivou do social para o particular, para a ambiência de Gênova, a terra de seus ancestrais, e mostrou curiosidade com meu apellido Bin, muito pouco italiano... Contou como assistia seu avô sangrar um porco, contou o que significou a loucura econômica dos tempos de Menem, contou... 

Sua voz mantinha um compasso amistoso, ainda que em um tom aristocrático, expressando o desejo de falar, a fala como posse impositiva do argumento, trazida como a expressão do habitus de sua classe social. Perguntei-lhe a idade, meu derradeiro e distante interesse pelo homem que surgira do nada, e que retomaria o caminho, altivo, por entre os imigrantes.



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