A
matéria dos textos de Dino Buzzati é o sentimento grave que envolve a dolorosa
reflexão sobre a vida, as certezas e os dilemas que de algum modo descrevem a
caminhada do ser humano. Este seria o resumo mais objetivo (se é que é possível
fazê-lo) de sua obra. A nostalgia do passado, a expectativa do presente, a
projeção de uma esperança, suas personagens se movem em torno dessa
perspectiva, e que se abre para um conjunto riquíssimo de situações alegóricas.
Buzzati alterna o elemento fabular de suas narrativas com os percalços da realidade, mescla os aspectos insondáveis do mistério com movimentos ponderados, que conduzem suas personagens para seus destinos, e o leitor as suas conclusões. Giuseppe Corte entra no hospital crente de que tratará uma indisposição qualquer, e aos poucos se depara com o inesperado e cada vez mais próximo espectro da morte (sobre o conto Sete andares); há também os relatos fantásticos, como quando a personagem (narrado em primeira pessoa) encomenda uma jaqueta com um alfaiate e, surpresa, dia após dia encontra nos bolsos somas crescentes de dinheiro, subtraídos de outros lugares e que, ao serem gastas, geram uma sucessão de infortúnios... (sobre o conto A jaqueta enfeitiçada); ou então o filho do rei, que ao decidir explorar o reino de seu pai, cavalga rumo aos seus confins, enviando um a um, sete mensageiros para relatar as novidades ao pai. Aqui, o tempo desempenha um papel preponderante, pois diante das dimensões infindáveis do reino, os encontros com os mensageiros se tornam cada vez mais e mais escassos (sobre o conto Os sete mensageiros). E o que dizer do soldado Giovanni, que retorna à casa da mãe após anos de ausência, apenas para se despedir, já que tem um compromisso com seu acompanhante, a morte (sobre o conto O casaco)...
Gostaria de me deter um pouco em sua obra máxima, seu romance O deserto dos tártaros. E transcrever uma passagem, onde ouso intervir, apenas com o intuito de localizar o leitor na história. Ela que nos mostra uma das inúmeras 'reflexões sentimentais', um dos momentos de soturna elegia que transborda o questionamento íntimo, e que somos convidados a partilhar. O trecho descreve a lembrança de um passado já ultrapassado (não por seu anacronismo, mas pela dinâmica da vida), que se distancia na igual medida em que o autor desvela - não sem a beleza característica de estilo - o desdobramento inevitável da existência humana.
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Após
dois dias de cavalgada solitária, o tenente Giovanni Drogo recém chegou ao
forte Bastiani, em um lugar indefinido, “o vale tortuoso sem plantas
nem verdes, aqueles precipícios a pique e, finalmente, aquele triângulo de
desolada planície que as rochas à frente não conseguiam esconder”. Quanto
tempo permaneceria servindo ali, junto a homens que não guarda nenhuma identidade,
em uma fortaleza encravada em algum ponto no deserto dos tártaros, um
território isolado, inóspito? O major Matti, que o recebera, dera-lhe as
opções, partir de imediato, o que para Drogo teria sido a melhor solução, ou
então aguardar por quatro meses, até a próxima avaliação médica, quando poderia
enfim solicitar baixa para um outro setor militar.
Os dias se passaram e Drogo se dá conta das suas funções, como era
de se esperar. As noites dilatam-se longamente, passadas em meio a pensamentos
que repercutem imagens e sons de lembranças longínquas. Na noite em que
realizou a guarda com sua tropa, permaneceu acordado. Conforme o experiente
sargento Tronk, seria uma atitude bem vista pelos comandados. Em seu quarto,
estirou-se por breves instantes na cama, protegido da iluminação dos lampiões,
deparando mais uma com vez a “irreparável fuga do tempo”.
Recordou a primeira juventude, despreocupado com os amigos,
brincando sob os olhares benevolentes dos adultos, esses que apontam os
desafios no horizonte, para em algum momento no futuro. “Falta muito? Não, basta
atravessar aquele rio lá longe no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou
já não se chegou por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta
casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim
e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante e se
retoma despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera
confiante e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece
não ter mais vontade de desaparecer no poente”.
Mas nessa estrada, onde o tempo indica que “um dia deverá inevitavelmente acabar”,
as coisas mudaram, as nuvens se amontoam precipitadas e o regresso não é mais
possível. Drogo, em seu transe entorpecido, “olhará a sua volta incrédulo;
depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas
antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro. Ouvirá a
batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão
figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto
caminho falta, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem qualquer bondade e
alegria".
Drogo adormece; vê mais uma vez os amigos a se perderem de vista. “Ele sonha e sorri. São as
últimas vezes que chegarão até ele, na noite, as suaves imagens de um mundo
completamente feliz. Ai, se pudesse ver a si próprio, como estará um dia, lá
onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e
uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um
fio de erva, tudo assim, desde um tempo imemorável”. (...)
(Tradução dos trechos destacados de O deserto dos tártaros: Aurora Bernardini e Homero de Andrade)
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