13 julho 2009

Sobre perdas e ganhos


Se meu avô estivesse vivo, estaria próximo dos cem anos. Não está, morreu logo após fazer 76, uma idade que virou referência para mim. Costumo dizer que quem vive menos que isso, morreu cedo; quem viveu mais, viveu o tempo certo. A coisa é simples assim. Quando nasci, ele tinha 44 anos e as fotos que disponho da época mostram minha avó e minha bisavó comigo, nada da presença dele. Aprendi a compreender esse seu comportamento ao longo da vida, discreto nos movimentos e quase sempre ausente nas manifestações emocionais. Hoje que ele não está mais, sinto falta de um hipotético afago, algo mais duradouro do que os abraços e beijos formais de nossos encontros. E nossos encontros foram muito poucos... Ele se movimentava timidamente em minha direção e me envolvia com um aperto carinhoso, um momento fugidio que expunha toda sua emoção, para no instante seguinte retornar ao seu mundo paralelo, transformando-se apenas em um figurante na casa repleta de gente. Vez ou outra ganhava os netos quando se propunha a descascar laranjas. Laranjas... Rodeado de crianças, mostrava sua destreza com o canivete de modo pacato, com um brilho suave nos olhos...
Acompanhei-o em muitas ocasiões, nas caminhadas silentes de sua casa até a loja de sapatos e com dificuldade me recordo de uma de suas raras visitas a São Paulo, quando veio resolver umas questões trabalhistas. Foi certamente o momento mais longo que permaneci ao seu lado, ainda que sem densidade, não passávamos de dois pontos em trajetórias paralelas. Uma extensa jornada em que a palavra ameaçou, espreitou, mas sucumbiu à frieza dos gestos distanciados. Saímos cedo de casa, tomamos um ônibus urbano e outro intermunicipal até a cidadezinha, na serra da Mantiqueira. Lá chegamos ao final da manhã e quem ele procurava não estava, de modo que ficamos caminhando pelas ruas feito dois cães abandonados, para cima e para baixo, pelas ladeiras desertas do lugarejo.
Quando meu avô achou que havia passado o tempo suficiente, regressamos à sede da loja de sapatos, da qual ele não passava de um vendedor descartável. Tudo o que desejava era encontrar o sujeito que lhe pagaria um dinheiro devido. Lembro-me que recebeu uma promessa de crédito para o mês seguinte. Tomamos o caminho de volta, cada qual com um sentimento definido, eu satisfeito por sair daquele impasse sem sentido, ele desconsolado em suas reflexões inexpugnáveis. Não havia ódio ou rancor, apenas uma desolação mais escavada. A partir dali, sei que a empresa de sapatos afundou irremediavelmente, e nunca recebeu o crédito prometido. Resolveu mudar de negócio, e de sapatos passou a vender doces, uma boulangerie numa cidadezinha condenada ao marasmo... Seus esforços, por mais honestos fossem, não conseguiriam safá-lo de nova decepção.
Nesse meu olhar retrospectivo, vejo que foi um homem incansável, movendo-se atrás das oportunidades e com uma família que não parou de crescer. Em sua juventude, circulou por meio mundo abrindo e fechando negócios, até chegar à cidadezinha condenada ao marasmo, com uma mão na frente e outra atrás. Fundou a rádio da cidade, sendo afastado por pessoas ambiciosas. Essa foi outra dificuldade sua, não via a malícia dos outros abordando-o, fosse a estibordo ou a bombordo. E acabava pelejando não pelos sonhos dourados, mas tão somente pela sobrevivência. Ligo os fatos, um empreendedor perdido em sua ingenuidade (ao menos um formulador de projetos ousados), buscando o sucesso redentor, embora há que se reconhecer, jamais a qualquer preço. Bem postas as coisas, era um idealista, a seu jeito é verdade, e não um negociante. Agarrou-se, por fim, ao plano que consumiria a segunda metade de sua vida: recuperar a rádio na cidadezinha condenada ao marasmo. Foram quarenta anos de luta inglória, que terminaram sem despertar a menor compaixão, dentro ou fora da família. Foi como se tivesse empreendido uma derradeira luta em exasperante câmara lenta, um Quixote ainda mais alucinado, sem a salvaguarda de um Sancho, sem conseguir mobilizar quem quer que fosse ao seu redor. Seus minguados recursos foram parar nas mãos de um advogado obscuro, que um belo dia desapareceu com a escriturária do cartório.
Da ilusão para o desespero soturno foi um doloroso passo e foi esse estágio que me marcou: era comum, nos últimos anos, vê-lo entretido nas questões mais comezinhas da casa, descascando frutas para o almoço, limpando objetos elétricos, moendo café, fazendo anotações sobre os preços dos alimentos, sempre com a atenção dispersa em seus pensamentos, que se tornaram mais e mais herméticos. De outra parte, poucas pessoas se deram tão mal na vida profissional e tão bem na vida familiar. Ou seja, é lícito dizer que nenhum desses problemas afetou o desenvolvimento do caráter de seus filhos - meus tios e minha mãe. Mais do que isso, tornaram-se pessoas amáveis, afortunadas, donos de um contagiante senso de humor, instrutivo para todos os momentos de desalento, cordiais, apaixonantes. Em suma, de alguma forma meu avô construiu um lar em que não faltou educação, carinho e proteção, permitindo a seus filhos crescerem como seres humanos dignos, respeitados e bem-sucedidos.
Em um mês de maio, em viagem à Europa, enviei um postal a ele e a minha avó, que já viviam solitários: É muito bom conhecer novos lugares, mas estar longe bate uma saudade imensa da nossa terra e das pessoas queridas... Amo vocês! Um ano mais tarde, ele faleceria em decorrência das seqüelas de um derrame. Dias depois, eu recebia de volta o postal, como resgate de um espólio indesejado. Minha mãe relata que ele teve consciência da morte se aproximar, deitado em seu leito hospitalar, de ora em vez lançando um olhar através da vidraça da UTI, talvez exprimindo todas as incertezas acumuladas na vida. O silêncio envolvendo seus últimos movimentos foi absoluto e a luta resultante, a mais inglória de todas.
.
.

Nenhum comentário: