A chuva desabou, por fim, no último dia, na última tarde. Por diversas vezes ela ameaçou, sem se realizar, o que normalmente é bom para um viajante. Tomei o táxi no terminal de ônibus, depois de chegar de Maracay, e segui em direção ao aeroporto. Restava ainda umas quatro horas para o embarque, mas optei por me adiantar, sabendo que encontraria um tráfego pesado, no longo percurso a cumprir. Freddy Hernandez, nome de cantante de salsa, foi o taxista da vez. Sujeito de poucas palavras, tímido, animava-se com poucos temas. Aceitou com breve e delicada resistência minha proposta para a corrida, 120 bolívares. Em Caracas, há uma tabela de custos, de acordo com a corrida, por isso a possibilidade de regatear. Ao lhe falar sobre meu prazer pela salsa, ele sorriu mais abertamente e colocou um CD gravado por ele, que serviu como fundo musical para nossa conversa entrecortada, com poucas revelações.
E assim fomos, em meio ao atravancado tráfego, sob chuva torrencial, ao aeroporto. De súbito, uma pergunta inesperada de sua parte: Que te pareces la Venezuela? Antecipou o que seria minha pergunta, reproduzida pela enésima vez. Achei oportuno que eu começasse, pois em seguida imaginei que seria fácil extrair uma opinião sua, o que não ocorreu. Freddy ficou fechado em copas, mas pelo menos foi um taxista que não atacou o governo.
Avançamos aos bocados por uma ampla via-expressa, transida de carros de todos os tipos, de chatarras ambulantes a modernos utilitários. Com 4 bolívares, uns três reais no câmbio oficial, enche-se um tanque com 40 litros de gasolina, o que explica a profusão de veículos de todas as idades e tipos, circulando pelas ruas o tempo todo. Já estávamos quase uma hora avançando de metro em metro, quando desembocamos na auto-pista, bem mais livre, que conduz ao aeroporto e ao litoral. Ao deixarmos a alça de acesso, surge a impressionante visão do barrio chamado Catia, uma comunidade enorme que se estende encravada nas encostas da montanha.
A medida que se avança pela auto-pista, desvela-se com mais detalhes a carência, a feiúra, as dificuldades dessa comunidade. Antes de se alcançar o túnel que cruza a enorme montanha, a aproximação é contínua, como se a favela se posicionasse para nos tragar, permitindo desvelar a pobreza instalada, os casebres acumulados uns sobre os outros, a ausência de espaços úteis... Lembro-me que ali foi um dos pontos de resistência ao golpe midiático de 2002. Funcionava a TV Catia, comunitária, prestando serviços sociais à comunidade, e suas câmeras ajudaram a registrar as imagens de sublevação popular que reinstalou o poder constitucional. No interessante livro de Renato Rovai sobre o tema, ficamos sabendo que se disseminou uma guerrilha informativa baseada na internet e em celulares, que mobilizou a população naquela ocasião.
Mas volto a Catia, seu olhar denso, brutal, me encara sem piedade. Encara a todos sem piedade. Três ou quatro minutos, até que mergulhamos no túnel, um não-lugar que nesse caso tem a importante função de reter nossa última imagem de Catia por um bom tempo. Começo pelo fim meu (breve) relato venezuelano, um derradeiro olhar a uma comunidade longamente abandonada, e que pouco a pouco é convidada a participar da vida civil.
Cátia, um nome atraente, delicado, que não faz questão de esconder suas vicissitudes; uma dentre tantas outras comunidades pobres que busca transformar-se, abraçando o impulso revolucionário ora instalado no poder.
Cátia, um nome atraente, delicado, que não faz questão de esconder suas vicissitudes; uma dentre tantas outras comunidades pobres que busca transformar-se, abraçando o impulso revolucionário ora instalado no poder.
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