02 agosto 2009

Esforço pueril



A princípio meu olhar se perde diante da multidão, um bloco visualmente organizado que se desloca inercialmente numa velocidade constante, um estranho corpo coletivo constituído por porções individuais cujas sombras se estendem no solo, vindas dos diversos becos e ruas adjacentes, que se amontoam o tempo suficiente para ensejar a dispersão. A massa constituída é multiforme, essencialmente fragmentária, ora densa, ora esvaziada, porém sempre cativa. Posso acompanhar seu movimento para leste e observá-la se afunilar como sendo a saída de um funil, delimitando os contornos dessa multidão líquida, que um pouco mais além se desprende para a liberdade da praça, de onde cada indivíduo toma seus diferentes destinos.
Pois o que me interessa é esse trecho, o caminho forçoso de centenas de esfalfados. Esforço mundano, completamente pueril, se me permitem dizer... Estou dois andares acima dessa massa que se renova diariamente e ainda assim preserva suas características intrínsecas de massa. Assisto a tudo, dia após dia, manhã após manhã, tomando tranqüilamente meu café com bolinhos, envolto em meu robe de chambre, sem pressa para absolutamente nada. Após investir na ampliação da janela, passei a ter uma sala mais arejada e o mais importante, uma visão privilegiada desse fluxo humano que, por longas duas horas, parece não se exaurir. Das seis e meia até às oito e meia, impreterivelmente, lá está o que chamo de fermentação do demônio, esse deslocamento insano que surge do nada e extingue-se em nome da sobrevivência, ou seja, por nada. Indivíduos que se transformam irrefletidamente em coletivo para, após um tempo que não passa de uns parcos minutos, tornarem a ser indivíduos. Nenhum ganho ou nenhuma perda nessa transformação, apenas um processo de aglutinação que se forma, que escorre e de maneira macia e comportada se fragmenta. Um processo que me diverte. O relógio me desperta às seis, num salto ponho-me de pé, preparo o desjejum, acomodo-me diante da janela e fico a assistir, sentado em minha confortável poltrona. Às vezes resolvo escolher um desditoso qualquer para acompanhá-lo em seu percurso. Aguço a atenção, um mero ponto na paisagem que aos poucos vai tomando vulto, ganhando mais contorno humano, até ele cruzar bem diante de minha janela. Sou, então, capaz de ver seu rosto, analisar suas feições, sentir sua respiração, imaginar seus pensamentos desafortunados, intuir sobre sua personalidade. Não sofro por ligar-me tão intimamente ao infeliz, mas a essa altura deixo de divertir-me, pois sou capaz de, vez ou outra, identificar-me no meio da multidão.

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