A situação política na Argentina, que se mostrava tensa e complexa há duas semanas, antes do primeiro turno das eleições, modificou-se completamente. O peronismo, ensanduichado entre duas candidaturas de direita e ameaçado não ir para o segundo turno, logrou afastar uma delas, e agora, habilitado à disputa do balotage, reune todas as chances para vencer a que sobrou. Como se deu o milagre?
O principal adversário, o sinistro Javier Milei, surfou na onda do discurso de mudança até onde pôde. Era o favorito, ganhou as primárias com quase dez pontos sobre Sergio Massa, e bem à frente de Patrícia Bullrich, a candidata do Juntos por el Cambio. Enquanto se mostrava uma surpresa, carreou grandes multidões de jovens, principalmente. Suas aparições na mídia eram dramaticamente engraçadas, mas isso enquanto conseguiu sustentar-se em seu blablabla radical. Bastou o tempo passar e ser testado por seus adversários, para sua verdadeira envergadura se mostrar, e desabou por si só, como um castelo de areia.
Tenta nessa reta final alguma composição com Bullrich e o ardiloso Maurício Macri, que mesmo não tendo reunido cacife para disputar a presidência ou uma vaga no senado, tem seus aficcionados, principalmente na Cidade Autônoma de Buenos Aires, onde seu irmão, Jorge Macri, venceu as eleições. O problema todo é que essa composição, por todos os ataques mútuos anteriores, não se sustenta e não convence. Milei, um leão assustador no primeiro turno, agora não passa mais do que uma triste imagem de um gatinho confuso.
Bullrich não agrega, e nem seu discurso agressivo seria um ponto de contato com Milei. Macri, por fora, mais preocupado em agir por conta própria contra o peronismo, não está em seu melhor momento, seja junto ao eleitorado, seja entre os poderes midiáticos de Clarín e La Nacion. Nessa enorme brecha aberta na direita, Massa consegue reunir os cacos da coligação peronista e de modo hábil, restaura sua força junto sua base eleitoral. Como ministro da Economia, avança nas propostas sociais possíveis, o que tem projetado a imagem de um político sério e atento às dificuldades econômicas da população.
O que poderia ser seu calcanhar de Aquiles, a alta da inflação, não parece ter força suficiente para promover um desgaste letal em sua campanha, e penso, muito em razão da inapetência opositora. Isso confirma uma suspeita minha, desde o golpe em Dilma, e depois com a aparição de Macri, Bolsonaro e agora, Milei: a direita é esse fragmento de falsas promessas com suas bobagens descartáveis, que sozinhas não representam nada como projetos transformadores, como novas ideias (como disse Pedro Aznar, promesas falsas, ideas a medio cocinar, falacias mal vestidas de tecnicismos...), a não ser o empenho aos interesses dos grupos dominantes dessa mesma nação. E quando há um curto-circuito nessas relações perigosas e vaidosas, ou seja, quando os canalhas não se entendem na partilha do botim, renasce a força dos projetos mais abrangentes, mais populares, como aconteceu ano passado com a vitória de Lula, e agora, com a possível vitória de Massa.
Milei e sua trupe dá mostras de afundar na areia movediça que a própria frente política criou, sem forças para se erguer e restabelecer, nesses próximos 20 dias, certamente vítima de suas infindáveis diatribes, que surgem sob retóricas atraentes, culminam como fundamentos vazios e quase sempre produzem indigestão. Demonstra a cada dia o que não é. Ao contrário de seu movimento desequilibrado, aliado às declarações bombásticas e de pouca substância de Bullrich (Ojala que la economia explote antes del (día) 19...), e à futilidade política de Macri, remonta o peronismo kirchnerista, nem tanto de Massa, mas de Cristina, de Kicillof, e tal como diz a letra do começo da marcha, Los muchachos peronistas/ todos unidos triunfaremos/ Y como siempre daremos/ Un grito de corazón: Viva Perón, Viva Perón!
(atualizado em 01.11.2023, às 10h).
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