Salvador Allende não existiu |
O texto abaixo foi publicado pouco antes de se completar 50 anos do golpe cívico-militar no Chile, na revista digital chilena, Anfibia. Foi escrito por Alvaro Bisama e divulgado por um querido amigo chileno em sua rede social. Trata-se de um relato que retoma o universo paralelo criado pelo negacionismo, que rechaça, dentre outros absurdos, que houve golpe contra as instituições e contra os cidadãos chilenos. A sucessão de negações, longe de nos convencer da existência de uma outra realidade, apenas confirma os fatos históricos e, consequentemente, evidencia a tragédia que se abateu no Chile.
O espírito negacionista dessa gente, antes calada, viceja animadamente pelo espaço público, arrogando verdades e exigindo desculpas. Por certo não irá se abalar com esse discurso comunista. Mas uma coisa ficará colada em suas testas, o ridículo de assumirem o que assumem, e de proclamarem a burrice como um estilo de vida e um modo de pensar. E não resta outra alternativa senão prosseguirmos na denúncia desse ridículo e dessa burrice, que como sabemos, são as marca do caráter abjeto.
O texto original é por demais longo, tem duas laudas e meia em espaço simples. Tomei a liberdade de traduzir uma parcela importante, o início, parte do miolo e o fim, retirando trechos específicos sobre a realidade chilena. Desse modo, consigo publicar a versão em português ainda no mês de setembro, mas depois do aniversário da morte de Neruda, referência do meu propósito inicial para concluir a tradução, que ocorreu em 23 de setembro. Ao final, transcrevo o endereço da revista para quem quiser conhecer o artigo completo.
NÃO ACONTECEU
por Alvaro Bisama
Não aconteceu. Não ocorreu. Foi uma invenção. Não houve golpe de estado. A Armada não se sublevou. O Exército não foi golpista ou traidor. Menos Carabineiros. Não houve Dina, nem CNI. Não teve presos políticos, nem ataques, nem militares posicionados na esquina. Não mataram a Victor Jara. Não o torturaram. O que se passou com ele foi uma mentira a mais, os inimigos do Chile nunca se detêm. Ninguém bombardeou La Moneda. Caiu sozinha. Os aviões apenas faziam acrobacias sobre Santiago. Os tanques não rodearam nenhum edifício. Ninguém disparou nem encheu de balaços os muros do centro. Não mataram a Orlando Letelier, nem a Carlos Prats. Um invento. (...) Ninguém morreu na tortura. Ninguém agonizou nos calabouços. Ninguém usou corvos. Nenhum corpo foi quebrado, mutilado, cortado. São contos, farsas, inventos. Ninguém proscreveu os partidos políticos. Ninguém perseguiu aos socialistas, aos comunistas, o MIR e o MAPU. Não houve exilados. (...) Ninguém revisou e censurou os textos escolares e as bibliotecas. Não se queimaram livros. Os militares não disseram que faziam fogo com eles para aquecer as mãos. Ninguém inundou os colégios e escolas com álbuns de figurinhas da Guerra do Pacífico, com ilustrações de sangue da batalha de Concepción, das façanhas de nossos valentes soldados. Não houve civis que colaboraram. Não houve sapos ou delatores. Ninguém ficou feliz ao denunciar o vizinho ou ao colega. (...) Ninguém teve que ver como o acento sibilino de Pinochet era celebrado como uma épica nacional, nem aguentar seu tom que encobria o desprezo, toda essa brutalidade disfarçada. Ninguém identificou esse acento com o terror. (...)
Nada aconteceu. No Chile coisa alguma ocorre. A história muda por puro desejo ou vontade. O passado não é um feito senão uma ficção criada por capricho, uma calúnia que se repete até que se torne verdade, um pensamento mágico que reescreve a realidade. Aí, o golpe de 1973 foi uma mentira, não existiu, é algo que impede que o pobre povo chileno se una. Recordar o golpe é uma baixeza, uma podridão, um ato de violência e uma celebração do falso, uma demonstração do ódio antes que da justiça ou da memória. No calendário esse dia deve ser apagado. Os chilenos não foram exterminados como ratos. As vítimas deveriam pedir perdão aos algozes. Os torturados, a seus torturadores. Os fantasmas dos corpos insepultos, a seus assassinos. Toda a história do Chile não é mais que uma lenda urbana. Não houve ditadura. Não foi uma ditadura. Não durou 17 anos. Nunca aconteceu nada.
Artigo publicado originalmente em espanhol, pela revista digital Anfíbia, e encontrado no endereço: https://www.revistaanfibia.cl/no-
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