31 dezembro 2019

Um novo ano

Carybé, Compadre de Ogum - boteco


Na passagem de ano penso em Paulo Freire, porque é urgente e indispensável lembrá-lo neste momento de nossa vida cívica, em sua compreensão de esperança como ato transformador, a esperança que nos possibilita "aprender, ensinar, inquietar, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos a nossa alegria".

Um ótimo 2020, de muita paz, saúde e realizações transformadoras!!



28 dezembro 2019

A procissão dos tolos


Relógio sem tempo, Pueyrredón, 2008


Convivi na minha infância com seres humanos que me pareciam complexos e distintos. Frequentavam a agência bancária que meu pai gerenciava imprimindo seus conceitos intuitivos de gestão. Descobriria rapidamente que ambas as realidades eram falsas: aqueles clientes estavam longe de se constituir em gente complexa e distinta, e meu pai jamais teve a liberdade para aplicar suas qualidades inatas de gestor.

Quanto aos clientes, eram adultos, masculinos, que se apresentavam em trajes formais – terno e gravata como sugeria o figurino da época – e alguns exalavam um desagradável olor com seus perfumes baratos. Pude acompanhar essa espécie de procissão diária sem restrições, por ser uma criança que gostava de ficar no cercadinho da gerência, próximo à mesa em que meu pai recebia essa gente.

Mostravam-se na maioria das vezes simpáticos nos gestos e palavras, mas no fundo tinham comportamentos fugidios, muito semelhantes em seus interesses, a busca pelo naco de empréstimo que os aguardava no período do “milagre econômico”. Pequenos e médios empresários, comerciantes da região, profissionais liberais, gente que ao adentrar a agência se amesquinhava nos mesmos propósitos, no mesmo ritual que conferiam os valores de cada demanda.

Tudo muito corriqueiro, profundamente cansativo para o olhar de uma criança. O que se tinha na mesa de negociações era um pedido relativamente simplório, atendido no mais das vezes, o agradecimento pegajoso, o dinheiro na conta e no final do ano, o agradecimento em forma de presentes natalinos, que enchiam a nossa sala. Meu pai se submetia às cansativas consequências de uma vida pautada pelo dinheiro.

Penso que foi o grande momento dos bancos neste país, crescimento vertiginoso acobertado por uma política econômica que estimulava o financiamento do que fosse a juros baixos. De um lado, a soberba ingênua de um comportamento empresarial que dava seus primeiros passos, amparado por uma falsa impressão de um capitalismo inovador e idealizador, sonhos e desejos que sucumbiriam de maneira abrumadora poucos anos mais tarde, na esteira das crises do petróleo.

No plano pessoal, o momento exigiu um esforço hercúleo em sintonizar o equilíbrio do corpo sob a voracidade das demandas insaciáveis do mercado financeiro em plena expansão. Foram dez anos cheios, de 1964 a 1974, muito dinheiro, muitos afagos, muita expectativa e a profunda destruição do caráter. Depois, o lento esvaziamento dos empréstimos privados, o recuo dos índices mágicos do crescimento econômico, o robustecimento das garras que hoje aprisionam e esfacelam o indivíduo em nome da ideologia neoliberal.

Nada resta daqueles tempos presumidamente áureos, e a falsa ingenuidade transformou-se em imbecilidade. Da procissão dos tolos com suas artimanhas fúteis, não sobrou poeira. Hoje, olho para bem perto e vejo meu pobre pai refletindo os fragmentos desse tempo a partir de números desconexos, construindo dia após dia compromissos imaginários que se dissolvem no ar, como se o corpo não conseguisse se desvencilhar das mazelas que o dinheiro fomenta.



26 dezembro 2019

Sartre no cinema

Capa de Filosofia Ciência e Vida, número 156


A sair nestes dias na revista Filosofia Ciência e Vida um longo artigo meu sobre dois temas que me fascinaram há vinte anos e que se complementaram em minha pesquisa de mestrado, Sartre e Luiz Sérgio Person. O título, Sartre no Cinema: uma aplicação da fenomenologia sartreana no filme São Paulo Sociedade Anônima. Meu esforço puro e simples foi discutir o filme de Person sob a luz da fenomenologia sartreana. Ainda hoje penso que a proposta ousada não foi devidamente explorada, seja do ponto de vista cinematográfico - deixei de lado diversas e importantes questões teóricas a serem analisadas - quanto do ponto de vista filosófico - poderia ter aprofundado alguns conceitos existenciais que utilizei. 

No começo do texto publicado comento sobre os papéis avulsos encontrados em meus arquivos, páginas e mais páginas de anotações das minhas leituras teóricas. Embora metodologicamente tenha encontrado um caminho sustentável, faltou me debruçar sobre tanto material recolhido e organizá-lo na pesquisa. Acerca de interpretações sobre Sartre, são mais de vinte laudas datilografadas, envolvendo Roquentin e Carlos, personagens de A Náusea São Paulo... respectivamente; o espaço urbano, no caso São Paulo e a linguagem cinematográfica. Havia muito mais, de autores diversos, registros que acabaram abandonados ou subutilizados. 

De todo modo, o artigo publicado na revista, consegue dar uma boa ideia sobre a discussão. O texto se baseia em um capítulo de minha tese, com alguns acréscimos introdutórios. Fiz uma boa revisão, que eliminou certas fragilidades da argumentação e organizei um pouco mais o contexto urbano em que o filme se dá, a São Paulo em transformação no final dos anos 1950 e princípios de 1960, que coincide com o golpe de Estado de 1964. Também corrijo a análise das personagens principais, Luciana, Hilda, Ana, Arturo, além de Carlos, o fio condutor da narrativa fílmica, dando-lhes mais profundidade psicológica e social.

Abaixo um trecho do artigo.

(...)
No meio de tantos fatos políticos que há tempos sacodem a vida brasileira, acabei me envolvendo com uma pesquisa para a elaboração de um texto que me foi solicitado por uma revista eletrônica. Decidi, então, retomar a leitura sartreana sobre o intelectual moderno e sua responsabilidade social. Seria essa a fronteira a ser desbravada, aspectos como a necessidade de ruptura com a falsa universalidade de sua compreensão burguesa de mundo. A princípio, enveredei pela leitura do opúsculo Em Defesa dos Intelectuais, de 1965, e avancei na conferência Função do Intelectual. Busquei uma relação com a farsa dos analistas contemporâneos, ditos intelectuais, que forjam análises e métodos particularistas, em defesa de seus interesses corporativos, e que são apresentados como posturas universalistas. São os falsos intelectuais, como dirá Sartre, antes de tudo, uns vendidos.

Todavia ao aprofundar as leituras, os documentos que passei a manusear modificaram completamente o objeto do tema pesquisado. Sabia que dispunha de arquivos das minhas pesquisas de mestrado e para eles me dirigi. Para minha agradável surpresa, encontrei uma pasta verde nomeada Projeto São Paulo Sociedade Anônima e em seu interior, revolvi um mundo! Súbito retomei contato com anotações densas, que realizei a partir de diversos textos de fenomenologia e existencialismo, como por exemplo os apontamentos de toda a primeira parte do livro de Paulo Perdigão, Existência e Liberdade, onde ele faz uma análise muito didática de O Ser e o Nada. As anotações preenchiam um caderninho, e havia muito mais. 

         Folheei um denso fichamento da obra mestra de Sartre, O Ser e o Nada. Registros valiosos cujos conceitos destacados certamente foram por mim incorporados na prática cotidiana dos últimos quinze anos, conceitos como a má-fé, transcendência, o homem sincero, temporalidade, reflexão - "Mas a reflexão pura continua a descobrir a temporalidade apenas em sua não-substancialidade originária; em sua negação de ser Em-si, descobre os possíveis enquanto possíveis, suavizados pela liberdade do Para-si, revela o presente como transcendente e, se o passado lhe aparece como Em-si, ainda é sobre o fundamento da presença"... - desdobrando as distinções do Para-si e do Em-si.

Dentre outros apontamentos menores, retomei as anotações de As Ideias de Sartre, de Arthur Danto, que se bem me recordo, ajudaram bastante como guia para adentrar o pensamento da filosofia sartreana. Juntamente com as definições de vergonha, o absurdo, angústia, desenvolvi, já tendo em vista a minha dissertação, uma aproximação com Carlos, personagem principal de São Paulo Sociedade Anônima, fio narrativo do drama existencial em que consiste a obra fílmica realizada pelo cineasta Luiz Sérgio Person, de 1965.

No mesmo caderno de anotações, as ricas descrições de A Náusea, onde aí sim relacionei diretamente as personagens centrais do romance e do filme, Roquentin e Carlos. Destaquei, por exemplo, o conceito da temporalidade, no primeiro caso, "Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia"... - e no segundo caso, "Carlos não encontra nada no passado e o futuro o assusta. O problema é que faz do presente uma transição entre essas temporalidades - passado e futuro - sem interferir, sem decidir-se por uma atitude que contemple o seu estado de espírito, seu desejo e a sua falta"...

O reencontro com esses documentos escritos me animou a organizar o presente artigo, aprofundando-me no prazer do reencontro da filosofia com o cinema, permitindo-me uma breve aplicação de conceitos e experimentações da fenomenologia sartreana a um dos mais belos filmes brasileiros.
(...)


18 dezembro 2019

A volta do peronismo

Plaza del Congreso, 2013


A vitória dos Fernández na Argentina - Alberto e Cristina - trouxe um punhado de esperança na retomada das políticas de bem-estar social, interrompendo com um governo que consistiu em uma aliança entre diversas frações do capital (1). Todos os índices sociais foram fortemente atingidos, são mais argentinos desempregados, mais argentinos empobrecidos, forte aumento das tarifas dos serviços públicos (gás, eletricidade, água, transporte), inflação redobrada, queda na produção industrial, menos investimentos na cadeia produtiva, novo ciclo de endividamento externo, no que culminou em um rotundo fracasso da política econômica. 

O que impressiona é que Macri obteve 40% dos votos válidos, ainda que a terra-arrasada de seu governo tenha atingido indistintamente todas as classes, das mais miseráveis às mais privilegiadas. O fracasso completo manteve um discurso fantasioso que conseguiu, pelo menos no photochart das eleições, convencer uma substanciosa parcela da população. Nem os fabulosos empréstimos contraídos junto ao FMI, no final de seu governo, impôs a Macri as consequências da negociação com cara de negociata. Menos mal que na legislação eleitoral argentina basta atingir 45 dos votos válidos para haver um vencedor, sem a necessidade de balotage

Curioso rever uma pesquisa feita junto a 2.000 pessoas pela Celag em junho de 2019, cerca de cinco meses antes da eleição presidencial, quando Alberto Fernández já consolidava 46,2% das intenções de voto. O que chama atenção é que, naquele momento, Macri somava meros 21,3% das preferências e Lavagna, 1,9%. Somados "outros" e "não sabe/não respondeu", o índice alcançava impressionantes 30%. Desse contingente, Alberto conseguiu agregar apenas 2% enquanto Macri praticamente dobrou seu universo de votantes!

Ainda assim, a derrota macrista foi contundente, quase dez por cento, além da perda dos governos na maioria das províncias para o peronismo, incluindo a estratégica Buenos Aires. Venceu na pequena Jujuy, fronteira com a Bolívia, e em Mendoza, onde a vitória foi de um macrismo sem Macri. O peronismo com Alberto e Cristina Fernández terá um panorama político favorável para governar à sua feição e paulatinamente desarmar as armadilhas neoliberais da economia, recuperando o papel do Estado em sua função reguladora do crescimento e distribuição de renda. 

(1) BASUALDO, Eduardo. Endeudar y fugar - un análisis de la historia económica argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2017, p. 190.

(Atualização em 07.11.2021)


07 dezembro 2019

Uma vez em Marrakech


praça Djema el Fna

Chegamos pelo final da tarde, o sol se punha e seu tom alaranjado se confundia com a coloração argilosa das muralhas, a uns duzentos metros da estação rodoviária. Mal iniciamos a caminhada no sentido dos portões da medina, um jovem nos abordou oferecendo-se para nos conduzir a um alojamento. Pedi em francês que fosse barato e no centro, ele entendeu e pediu para segui-lo, serpenteando pelos suqs, passando por toda sorte de pequenas tendas e lojas, onde se comerciava de tudo. Os espaços se alargavam e se estreitavam, cruzávamos homens e mulheres em djelabas, crianças, desocupados nos cafés ou conversando nos espaços públicos, o jovem não se detinha, caminhava célere e nós atrás, com as pesadas mochilas nas costas. 

Por fim desembocamos em uma ampla praça esvaziada, atravessando-a no mesmo ritmo até um hotel discreto e de aparência simpática. que ao fim e ao cabo atendia as expectativas para uma ou duas noites. Pagamos nosso condutor, preenchemos os formulários para a estadia e subimos ao quartinho do segundo andar, em cujo pequeno terraço tive tempo de desfrutar a beleza do por do sol. Antecipamo-nos em uma ou duas horas a chegada dos demais companheiros de viagem, com os quais compartilhamos uma bela mesa no jantar. Ao que me recordo, no dia seguinte uma parte iria até Ouarzazate, na entrada do deserto, outra parte ficaria em Marrakech, não havia pressa para deixar a bela cidade marroquina. 

É dessa época meu contato com o maravilhoso relato de Canetti, Vozes de Marrakech, embora confesse ser muito provável não ter lido todas as narrativas. Tratava-se de uma tradução precária, que não ajudou a leitura. Levei quase vinte anos para ter em mãos a preciosa versão da Cosac e Naify, quando por fim pude realizar com muito gosto toda a leitura. E percebi que meus parcos dois dias na cidade não foram suficientes para me deleitar com pelo menos uma parte das surpresas que Canetti vivenciou trinta anos antes de mim. Por isso desejo muito retornar. Trata-se de uma cidade dos sonhos, com toda sua pobreza e exuberância. O encanto está nas pessoas, nos sinais de mistério da cultura, na profusão de seu mercado, nas cores que se revelam ao pôr do sol. 


A partir da esquerda, Marcelo, eu e Flávio, com crianças, 1989 



27 novembro 2019

Concorrência generalizada


Monumento ponte Laguno - Caracas, 2009


Não estamos em tempo de silêncio, embora parcelas do poder instituído entendam que sim e pressionem para que assim seja, submetendo populações à violência da economia e dos aparatos de segurança. Não é tempo para silenciar, repito. As hostes mais retrógradas propõem as amarras da ignorância e o ato brusco da intolerância, submetendo-nos a todos a um modelo que nos conduz à miserabilidade tão duramente superada nos últimos 15 anos. 

Retoma-se a possibilidade de um novo AI-5, cruel, insidioso como o original, para silenciar, para condenar, para eliminar a democracia. Mal retomamos uma geração de normalidade constitucional para uns delinquentes políticos, amparados pelo sistema financeiro, ameaçarem de morte as delicadas conquistas da cidadania. A naturalização da ideia desse ato, já em plena marcha, confunde em vez de explicar, banalizando o que deveria ser definitivamente rechaçado.

Estamos à deriva, como que reféns em um grande navio negreiro, onde todos pagarão com trabalho e péssimas condições de vida, para que os donos do negócio possam lucrar. Somos instigados a almejar a migalha do outro, em um processo denominado de competição, onde as regras são retiradas a cada momento para valorizar o empenho de cada um. O mundo neoliberal torna-se um grande octógono de UFC, onde a vitória sangrenta não passa de conquista efêmera, ameaçada no combate seguinte. 

Lei da selva, onde se sobrevive o mais capaz, e a isso se dá o nome de meritocracia. Silenciados e sob a paz de Cristo, avançamos como os trabalhadores do filme Metrópolis, para viver e sucumbir nos imensos porões das empresas. O silêncio também como parte da nova ordem normativa, que junto com a neo-escravização do trabalhador, expolia e assassina sem que haja repercussão. O silêncio dos organismos internacionais, da mídia corporativa, dos governos democráticos, que sempre atuaram contra a violência social e que insistem em nada ver. Os três macaquinhos, não veem, não ouvem, não falam.

Não é tempo de calar e as manifestações no Chile, na Bolívia, na Colômbia são conduzidas pelas massas que os donos do negócio quiseram transformar em reféns à deriva. O capitalismo de reféns, que difunde a violência, o medo, o ódio pelas mãos de deus e do diabo aprendeu suas técnicas na compreensão dos efeitos simbólicos de atos realizados por tiranias e por fundamentalistas. O incidente de Gleiwitz, realizado sob bandeira falsa, deu aos nazistas a oportunidade de atacar a Polônia sem qualquer constrangimento. A explosão da violência tirânica para subjugar uma nação foi a técnica aperfeiçoada pelo capitalismo para ser empregada com cinismo e dissimulação. 

Mas também não deixo de relacionar a sordidez dos planos de destruição para a expansão de uma nova ordem, e nesse caso não deixo de relacionar a brutalidade - muito bem assimilada pelos donos do poder - da ação fundamentalista dos talibãs ao destruir os budas de Bamiyam. A serviço dos pequenos tiranos espalhados pelo mundo, deve-se implantar a ferro e fogo o novo capitalismo de que Dardot e Laval comentam, profundamente ligado à construção política de uma finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada. E como profetizam os neopentecostais, para essa obra "deus é fiel".



06 novembro 2019

Pour Jerusa



O texto a seguir foi apresentado na 3a. Feira de Literatura da PUCSP (Flipuc-2019), em homenagem a Jerusa Pires Ferreira. O livro digital, que reúne apresentações de outros participantes, está disponível no site da EDUC (https://www.pucsp.br/educ/ebooks).

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Quero agradecer à organização da FliPUC, ao querido Lucio Agra pela oportunidade de participar desta mesa, Cultura das Bordas, na companhia dos professores Bernadette Lira e Valdir Baptista, a quem cumprimento.

Obrigado a todos pela presença.

Perguntei-me durante dias o que poderia trazer aqui como fala, que pudesse de algum modo reverenciar a memória de nossa querida Jerusa, pois não tive a honra de ser seu aluno.

Também não fui seu orientando, ou antes, diria, fui um quase-orientando. Quando eu ainda dava os primeiros passos para a definição do objeto de minha pesquisa de doutorado, sob orientação da professora Maura Veras, das Ciências Sociais, solicitei à Jerusa um encontro com a esperança de que ela pudesse me sugerir ideias para minhas dúvidas sobre a oralidade da poesia das periferias urbanas.

Não fiz anotações, lamentavelmente recordo-me muito pouco de nossa conversa, que ocorreu em um pequeno e simpático café aqui das cercanias. Uma conversa abundante, rica em aportes e narrativas, e que ao final, já na saída, ela me olhou fixamente e disse, “você compreendeu, aqui está a sua pesquisa”.

Mais do que sugerir um caminho, Jerusa me forneceu uma rica e generosa planificação, calcada em referenciais teórico-metodológicos, um novo mundo, do qual me utilizei de uma pequena e inebriante parcela chamada Paul Zumthor. Não foi pouco, pois a partir da leitura de Introdução à poesia oral, pude compreender o rito performático da declamação de Navio Negreiro, realizada pelo poeta Helber, em meio ao caminhar por entre as mesas de expectadores em profundo silêncio extático, como se fosse um navio tumbeiro.

Mas perdemos por um tempo o contato e a chance de novas conversas. Passaram-se os anos, defendi minha tese sociológica e poucos meses mais tarde, tive a oportunidade de comparecer no lançamento do livro A Cultura das Bordas, e em meu exemplar Jerusa escreveu uma dedicatória, “esperando que as bordas nos aproxime mais”.

A partir de então de fato estivemos mais próximos, participando dos encontros promovidos pelo Centro de Oralidade, assistindo suas palestras, visitando-a na companhia da querida Mônica em sua deliciosa casa na rua Bahia.

Porém, ficou gravado em mim uma incompletude da qual a vida não se incumbirá de resolver: como teria sido se eu me desse conta de que minha pesquisa estava ali, ao sabor de sua orientação?

O que posso fazer é o que faço nestes anos, aqui a ali um breve esforço para imaginar como poderia completar o irremediavelmente faltante. Se encontrei a voz sociológica da poética periférica, como seria compreendê-la tendo a oralidade e a gestualidade como suporte maior da sua comunicação? Ou mais além, depreender algo da força xamânica que a inspirava, tal como Jerusa descreveu em sua experiência com os tchuvaches?

Ou como ela explica ao falar das populações siberianas, “o verbo xamanizar como dando conta do acesso a patamares inacessíveis aos não iniciados, falando-se em educação dos xamãs pelos espíritos e associando-se a ela poderes especiais”. O que é a performance dos saraus dos fundões de nossa metrópole senão um ritual xamânico dotado de força e encanto muito especiais?

Meus encontros com jovens poetas das periferias e a racionalidade antropológica muitas vezes nos deixavam em claros impasses comunicacionais, como pertencentes a mundos diferentes, onde a chave só poderia estar na entrega espiritual, ou ainda como profetiza Jerusa em Silêncio e Clamor, no “tempo/espaço sujeito a outras escalas, ao qual o xamanismo confiou a sua memória”. Como Jerusa me escreve em sua dedicatória, referindo-se a Guenádi Aigui, “este poeta do Volga fala por nós todos”.

Não pude vagar pelo encanto de seus olhos a esse respeito e assim perder-me alguma de suas descrições contemplativas, introduzindo-me ao cerne deste texto cultural, das práticas do oral e do corpo, que me abririam novas portas a respeito das culturas periféricas/das bordas.

No que tange propriamente à literatura marginal, e Jerusa via as bordas como algo à margem, organizei minha pesquisa para conceituá-la sociologicamente de acordo com um sentido de resistência. Somente mais tarde desvelei o sentido de Geneviève Bollème, trazida por Jerusa, “a literatura popular como receita contra algo, discurso mágico para afastar a morte, o medo, a miséria, e que instaura um outro mundo (...) para domar e conquistar aquele em que se vive”.

Como teriam sido nossas conversas a esse propósito?

Também o sertão me marcou de modo indelével nos relatos e nas performances dos jovens poetas das periferias, como representação das vicissitudes urbanas. Por alguma razão, havia a magia do sentir atávico, da dor longeva, mas também do sonho e da esperança o sertão de Antonio Conselheiro, Gláuber Rocha e de Elomar. Ouvi-los em sua oralidade era sentir de alguma forma a origem das veias abertas de um Nordeste profundo, da injustiça, da violência e da miséria reproduzida no cangaço e em sua repressão.

Haveria aí uma relação direta com as paixões e as lutas do romance de cordel de Antonio Silvino, apresentados por Jerusa: “Peito a peito. Luta insana/ que cenas indescritíveis/ indignas da espécie humana!/ foram seis horas terríveis”. Eram 51 bandidos contra 120 soldados enfurecidos.

Imagem de luta e insubmissão que se sintoniza com as palavras de Graciliano, “o que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados”. Nada mais apropriado para nossos dias!

Mas retomo o fluxo de minhas imaginadas orientações com Jerusa e com os temas que não pude compartilhar. Deus e o Diabo que atravessa Bacurau e irrompe com a literatura de cordel. Sobre seus poetas, é interessante acompanhar a análise de Jerusa, “Pode-se falar da memória, da grande força de um discurso comum, uma espécie de reconhecimento de temas e até de uma certa unidade do imaginário que tem a ver com o Brasil profundo, se se puder considerá-lo como um todo. Pode-se dizer, também que ela consegue revelar anseios e compensações, expectativas de grupos não privilegiados ou subalternos e que termina sempre por expressar a condição de vida das classes populares, suas vicissitudes, suas formas de anúncio e de denúncia”.

Como não enxergar aí o poeta que declama nos saraus periféricos? A memória que processa nossa mestiçagem, o barroco que desponta como o instrumento ideal para forjarmos nossas lendas, sonhos, visões memoráveis, a expressar os signos de nosso destino.

E também como não considerar por nossa querida senhora barroca toda a dimensão e complexidade da cultura das bordas, ao narrar o insólito cotidiano comum de toda uma Latinoamérica, em diálogo com o real maravilhoso de Carpentier, imaginário que emerge dos signos de nossa história e de nossas culturas populares?

O maravilhoso insólito, encontrado cotidianamente no estado bruto, latente, em nosso continente, fundamentado na cosmogonia barroca, o barroquismo americano que se constitui com a miscigenação, a consciência de ser outra coisa, de ser uma coisa nova, de ser uma simbiose, eis o que somos, eis o que depreendemos das agruras e das belezas desgarradas do sertão jerusiano e projetadas por todo um continente barroco, imerso em sua pulsão telúrica.

Do diálogo entre a tradição oral do Livro de São Cipriano e as classes populares, é possível compreender o deslizar fabuloso que integra a visão de mundo das camadas populares, ao recriar seu mundo mágico de perene esperança. A utopia contida nos versos poéticos é a pura sabedoria popular, veiculada em uma poética oral, oriunda das experimentações míticas, e das negações vividas a cada dia.

Toda essa gama de leituras e discussões em suspenso seriam algumas das possibilidades de nossas conversas. No que me diz respeito, teria antecipado em anos a compreensão da cultura das bordas. O problema é que não conto mais com o diálogo apaixonado de Jerusa.

Desse modo, tanto quanto me foi possível imaginar o que seria minha aproximação com a generosidade confabular e genuinamente barroca de Jerusa, expresso à melhor maneira retrotópica e ucrônica minha apaixonada homenagem a esta inesquecível amiga e pesquisadora.

Muito obrigado.


30 outubro 2019

As derrotas do malfadado neoliberalismo

foto: Susana Hidalgo

Estalou o que parecia impossível, uma imensa revolta popular no Chile, basicamente em decorrência das condições indignas de vida sob o sistema neoliberal implantado desde a derrubada de Allende. Ainda hoje se observam manifestações nas ruas, com barreiras, cacerolaços, monturos de chamas, fumaça e corpos de carabineros buscando reprimir com jatos d'água e bombas de gás lacrimogêneo. Os manifestantes - e o que se percebe pelos vídeos são na maioria jovens - circulam pelas avenidas sem se deixar encurralar;.se fazem presentes aqui e ali e evitam os choques frontais. As ruas estão com aquela aparência desolada, o comércio fechado, um tapete de pedras nas vias públicas e marcas de destruição por toda parte, referências típicas da agitação insurrecional. 

Fica evidente que o grau de repressão, embora forte, não se compara com os tempos brutais e assassinos de Pinochet, tempos em que havia uma cobertura completa do Departamento de Estado e da CIA para os piores atos de violência. Piñera e seu governo encontram-se numa sutil armadilha, que os aprisiona a cada movimento mais brusco. As ofertas de negociação bem como a demissão de todo o ministério parecem não ter arrefecido a indignação popular, consequência direta de um torniquete que não parou de apertar desde os tempos do governo militar. Assim, um doloroso impasse prossegue e se manifesta vivo nas ruas, sem que se tenha qualquer expectativa de um final que aponte para uma resolução superficial dos problemas. É sem dúvida um momento crucial para a governança neoliberal, um xeque ameaçador como nunca se viu antes.

A questão: como é possível retomar a normalidade da vida cotidiana? Quais lideranças dos movimentos callejeros serão aceitas como representantes da insurreição? Quais pautas serão discutidas? Não está claro que o movimento esteja próximo do esgotamento, há uma força orgânica que surpreende, por certo com forte participação de amplos segmentos da sociedade. Pelas imagens, é possível depreender que Piñera e seu governo terão de ceder muito para alcançar uma governabilidade sustentável. Dentro do processo democrático estabelecido desde 1990, Piñera está de mãos amarradas, não poderá agir com a truculência que vitimou mais de 3.000 mortes e desaparecimentos. Já são reconhecidas 20 na contagem oficial (mais de 40 na contagem dos manifestantes) e a tensão tende a aumentar com o passar dos dias.

Comento mais tarde a vitória peronista na Argentina.


10 outubro 2019

Nenhum sinal de vida

O punctum: os rostos bondosos do entourage de Allende 

Em um governo marcado por absoluta ausência de um projeto de nação e norteado pelas questões mais desprezíveis de preconceito, não causa estranheza sua passagem que, à parte sua volúpia destrutiva, consiste do ponto de vista propositivo, em um caminhar inodoro, insípido e incolor. Afora os primeiros meses, quando o esforço era deglutir o triste engodo de sua existência, aos poucos tomamos consciência de sua impossibilidade ontológica, o que significa no futuro, tal como ocorre hoje na Argentina, a reorganização popular sob completa fragilidade.

Como se trata de um governo sem cacoete para governar, mas apenas para cumprir ordens técnicas emanadas de uma hegemonia econômica instalada para controlar e espoliar riquezas, a inércia de seu prolongamento artificial será nosso grande drama. De minha parte e dos que me cercam, buscamos alternativas nas práticas culturais, no conhecimento do processo histórico, sempre com o objetivo de superar os momentos cinzentos e aprofundar a compreensão do mundo ao redor. Eu e Mônica vamos assim avançando em nosso texto sobre Allende e a Unidade Popular, um estudo imerso em descobertas fascinantes, que nos proporciona mais coragem e determinação para superar nossas próprias debilidades políticas.

(atualizado em 26.09.2020)


20 setembro 2019

Desconstruir muros



Símbolo poderoso da participação popular nos rumos políticos de uma nação, a queda do Muro de Berlim completa 30 anos em 2019 e inspira o Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) a realizar o seminário "(Des)construir muros: processos democráticos desde 1989" no Rio de Janeiro, nos dias 29 e 30 de setembro, no Museu de Arte do Rio.
O marco histórico serve como ponto de partida para se refletir sobre a ideia de democracia na contemporaneidade, com destaque para o aprofundamento das polarizações no Brasil, na Alemanha e no mundo, e o papel da sociedade civil na desconstrução de muros e nos processos democráticos. Nessa perspectiva, o seminário se organiza em três eixos temáticos:
1- Polarizações e retrocesso democrático,
2 - As tecnologias de comunicação nos processos democráticos,
3 - O Muro e sua produção simbólica: pontos de atrito.

Veja aqui o programa do seminário.
Reuniremos ex-bolsistas do DAAD e pesquisadores brasileiros e alemães das Ciências Sociais, Ciências Políticas, Comunicação Social, História, Filosofia, Direito, Geografia, Artes e áreas afins para uma série de palestras e debates.
O primeiro dia (29/09) será aberto com uma contextualização histórica para criar uma base sólida para as discussões. No segundo dia, os participantes se dividirão em três grupos de trabalho para aprofundar as questões de cada eixo temático e o resultado será apresentado como encerramento do seminário.
Inscrições abertas


Importante: as vagas são limitadas. Ex-bolsistas do DAAD receberam um convite para a inscrição por e-mail. Se você não recebeu o convite ou não é ex-bolsista, faça seu cadastro para solicitar inscrição neste link (informando nome completo e e-mail)


O evento, destinado a ex-bolsistas do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), também receberá estudantes e pesquisadores brasileiros interessados na temática proposta. No entanto, essas vagas são limitadas. Por isso, se você não é ex-bolsista, pedimos a gentileza de que, após a inscrição, aguarde a confirmação de sua participação.
Também no caso de ex-bolsistas, caso o número máximo de participantes seja atingido, o(a) interessado(a) entrará numa lista de espera, sendo chamado(a) mediante desistência.
A inscrição pressupõe que a participação esteja confirmada. Em caso de desistência, pedimos a gentileza de nos comunicar até 19/09 por meio do e-mail eventos@daadbrasil.com.br. Assim, poderemos destinar a vaga a alguém da fila de espera e garantir o bom aproveitamento dos nossos recursos.
Entre os palestrantes, estão pesquisadores do Brasil e da Alemanha:
  • Profa. Dra. Andrea Ribeiro Hoffmann (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
  • Prof. Dr. Fábio Vasconcellos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
  • Profa. Dra. Jeanette Hofmann (Universidade Livre de Berlim e Weizenbaum-Institut für die vernetzte Gesellschaft / Instituto Weizenbaum para a Sociedade Conectada)
  • Prof. Dr. Lucio Rennó (Universidade de Brasília)
  • Prof. Dr. Luís Edmundo de Souza Moraes (Coordenador do Núcleo de Estudos da Política - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
  • Prof. Dr. Marco Antonio Bin (Pontifícia Universidade Católica São Paulo)
  • Prof. Dr. Sebastian Thies (Universidade Eberhard Karls Tübingen)
  • Profa. Dra. Thamy Pogrebinschi (Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung / Centro de Pesquisa de Ciências Sociais Berlim e Professora Colaboradora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ)
Serviço:
Data: 29 e 30 de setembro de 2019
Local: Museu de Arte do Rio (MAR)
Praça Mauá, 5 - Centro, Rio de Janeiro
Programação: www.daad.org.br/desconstruirmuros



11 setembro 2019

Conversa para boi dormir

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A conversa mole, o sonambulismo aconchegante

Em meio ao incêndio que toma conta da civilização brasileira, que passa pela brutal restrição das verbas de financiamento na educação, passa pela censura artística e alcança o fogo literal na floresta amazônica, nada mais anacrônico do que topar com os infindáveis debates esportivos na televisão. 

A loucura destruidora do atual (des)governo desmonta o substrato da nossa vida cotidiana, mas a velha discussão futebolística com os mesmos ingredientes de sempre, as jogadas polêmicas e a eloquência dos palpites não perdem o espaço midiático e segue confinando o pobre povo brasileiro à sucessão infindável de argumentos sobre temas absolutamente descartáveis, que ao fim e ao cabo nada acrescentam à razão crítica para a compreensão da realidade em que vivemos.

Dotados de um padrão que promove o rodízio de emoções calcadas na exploração dos acontecimentos que se repete a cada rodada - o enaltecimento dos bem-sucedidos e a crucificação dos fracassados - a roda da fortuna não cessa de girar em torno dos debates espetaculosos, que se apresentam como um imenso floco de algodão doce, tão atraentes quanto dissipáveis à primeira degustação. 


O mais interessante é que por duas horas ou mais os atores conseguem produzir da bolha futebolística um complexo universo paralelo, carregado de especulações, para ao final sobrar o vazio do resto da noite. Nada se define ou se explica porque assim deve ser, a bolha deve permanecer como o fundamento da vida, no afã de torná-lo um produto indispensável.

Esses atores são capacitados para isolar as discussões futebolísticas do futebol, sem integrá-las ao contexto social, econômico e político, como se o esporte mais apaixonante do país pudesse permanecer segregado aos quatro lados do campo. O fake da natureza dos debates alimenta a bolha das especulações fugidias das análises e nenhum deles, sejam jornalistas, ex-jogadores ou convidados outros, ousam atravessar a sinfonia de análises fragmentadas, trazendo algum elemento mais crítico que remeta à realidade social. 


Nenhuma referência mínima que seja às boas referências literárias do esporte que contemple o negro, o homossexualismo, a violência, a pobreza, dentre outras. Nada. Apenas o chafurdar na mesma lama de sempre, onde o mais audaz dos comentários é descartado no momento seguinte ao final de cada programa.

-o-

Ontem eu e Mônica tivemos uma demonstração da bestial percepção de mundo do eleitorado desse sujeito que nos desgoverna. Refiro-me ao eleitorado que votou nele e persiste em adorá-lo como mito. Trata-se de uma ignorância abismal e cansativa. No fundo, carregam uma profunda e confusa amargura e não fazem ideia o que seja sofrer com isso, pois a transformam em ódio ao outro, ao outro diferente, e se satisfazem com isso. Para esse tipo de gente, não existe a dinâmica do processo histórico, não existe a construção social com base no conhecimento científico.

Em suma, teremos de retomar a democracia na marra, contornando essas pessoas que persistem na intolerância. As representações sociais democráticas devem assumir o enfrentamento político. Assistir politicamente o desmonte do país é que não dá.


(atualização do texto, 07.10.2019)



21 agosto 2019

600a. postagem



E o blog Chá nas Montanhas alcança sua seiscentésima postagem, um pouco antes de comemorar onze anos ininterruptos de publicações. Jamais imaginei lá no início que chegaria tão longe. As dificuldades de se postar regularmente são superadas pelo prazer e quase necessidade de publicar as impressões pessoais a respeito do mundo que nos cerca, dos acontecimentos sociais e dos eventos pessoais, das lembranças recuperadas, do futuro como perspectiva imediata. A vivência cotidiana não cessa de alimentar a alma e o fígado, quase que solicitando algum tipo de análise. 

Descrever os fatos a partir de minha compreensão de mundo tem sido um exercício indispensável, por muitas vezes este espaço foi o canal solitário de minha voz, de como absorvia os golpes políticos, de como exultava as conquistas pessoais ou coletivas. Também foi aqui que pude comemorar a memória de pessoas e circunstâncias muito especiais, que dizem respeito a minha maneira de ser no mundo. 

Esses anos foram de transformação pessoal, de aprendizado social, de paixão e de desprezo, e o que poderia se tornar uma prática paralela ao desenvolvimento formal e acadêmico, muitas vezes mostrou-se um canal exposições exaltadas em nome de um princípio, de formas inacabadas de insurgência política. 

Lembro que bem no comecinho constava no subtítulo do blog um convite para me acompanhar no desfrute do chá nas montanhas e um visitante casual indagou, de modo polido, como seria possível algum degustar um chá numa mesa diante de exposições tão pouco amistosas? Foi o sinal para buscar uma elaboração mais propositiva, ainda que preservando o argumento contundente. 

Com o passar do tempo foi possível desenvolver um estilo e dessa maneira, espero ter despertado o desejo pela reflexão, sem omitir a indignação. Por vezes precisei retomar o texto para equilibrar a força assertiva da narrativa, que parecia perder a mão sensível, mas de modo geral foi possível manter o vigor original das palavras. 

Escrever "ao vivo", ao sabor dos fatos, sempre me pareceu o mais desafiador dos exercícios desta escritura. E assim, na expectativa de construir modos de ver e de pensar, pude avançar tanto e seguir com o compromisso de pautar minhas percepções, dando vazão a sentimentos tão distintos quanto genuínos. 

Que possamos seguir por aqui, juntos, por muito mais tempo, caro leitor.


19 agosto 2019

O rumo civilizatório

Ainda não estamos aptos a realizá-lo 


A Argentina começa a desgarrar-se, quatro anos depois, do flagelo que lhe foi imposto ao eleger o governo Macri. Na semana passada a vantagem nas PASO da oposição peronista parece ter sido decisiva para que, em outubro, seja sacramentado seu retorno ao poder. Mas a que preço isso ocorrerá? A desgovernada gestão macrista, cuja política econômica foi subsidiada por pesados empréstimos do FMI e do Banco Mundial, trará sérios problemas para a o saneamento do Estado e para a retomada do crescimento sustentável. As minas de efeito retardado foram semeadas e quem pagará será a sociedade argentina como um todo, conforme se viu com a disparada do dólar logo no dia seguinte às eleições primárias. 

Por aqui, o ex-capitão celerado dispara contra a oposição peronista, divulgando o terror, sem medir as consequências, de que a Argentina se tornará a nova Venezuela. Assim, estamos com a democracia no continente emparedada por lawfare jurídico e por bravatas de falsos profetas, cerceada desde sempre pelo poder dos conglomerados e instituições financeiras. Ainda pagaremos o pedágio de três anos até que uma nova onda democrática varra o país e condene o desgoverno que começa a nos flagelar. Serão muitas perdas, muitos atos insidiosos, muita verborragia política até que possamos reencontrar o rumo civilizatório, sin pena ni olvido.