O texto a seguir foi apresentado na 3a. Feira de Literatura da PUCSP (Flipuc-2019), em homenagem a Jerusa Pires Ferreira. O livro digital, que reúne apresentações de outros participantes, está disponível no site da EDUC (https://www.pucsp.br/educ/ebooks).
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Quero
agradecer à organização da FliPUC, ao querido Lucio Agra pela oportunidade de
participar desta mesa, Cultura das Bordas, na companhia dos professores
Bernadette Lira e Valdir Baptista, a quem cumprimento.
Obrigado a
todos pela presença.
Perguntei-me
durante dias o que poderia trazer aqui como fala, que pudesse de algum modo
reverenciar a memória de nossa querida Jerusa, pois não tive a honra de ser seu
aluno.
Também não
fui seu orientando, ou antes, diria, fui um quase-orientando. Quando eu ainda
dava os primeiros passos para a definição do objeto de minha pesquisa de
doutorado, sob orientação da professora Maura Veras, das Ciências Sociais,
solicitei à Jerusa um encontro com a esperança de que ela pudesse me sugerir
ideias para minhas dúvidas sobre a oralidade da poesia das periferias urbanas.
Não fiz
anotações, lamentavelmente recordo-me muito pouco de nossa conversa, que
ocorreu em um pequeno e simpático café aqui das cercanias. Uma conversa
abundante, rica em aportes e narrativas, e que ao final, já na saída, ela me
olhou fixamente e disse, “você
compreendeu, aqui está a sua pesquisa”.
Mais do que
sugerir um caminho, Jerusa me forneceu uma rica e generosa planificação,
calcada em referenciais teórico-metodológicos, um novo mundo, do qual me
utilizei de uma pequena e inebriante parcela chamada Paul Zumthor. Não foi
pouco, pois a partir da leitura de Introdução à poesia oral, pude compreender o
rito performático da declamação de Navio Negreiro, realizada pelo poeta Helber,
em meio ao caminhar por entre as mesas de expectadores em profundo silêncio
extático, como se fosse um navio tumbeiro.
Mas
perdemos por um tempo o contato e a chance de novas conversas. Passaram-se os
anos, defendi minha tese sociológica e poucos meses mais tarde, tive a
oportunidade de comparecer no lançamento do livro A Cultura das Bordas, e em
meu exemplar Jerusa escreveu uma dedicatória, “esperando que as bordas nos aproxime mais”.
A partir de
então de fato estivemos mais próximos, participando dos encontros promovidos
pelo Centro de Oralidade, assistindo suas palestras, visitando-a na companhia
da querida Mônica em sua deliciosa casa na rua Bahia.
Porém,
ficou gravado em mim uma incompletude da qual a vida não se incumbirá de
resolver: como teria sido se eu me desse conta de que minha pesquisa estava
ali, ao sabor de sua orientação?
O que posso
fazer é o que faço nestes anos, aqui a ali um breve esforço para imaginar como
poderia completar o irremediavelmente faltante. Se encontrei a voz sociológica
da poética periférica, como seria compreendê-la tendo a oralidade e a
gestualidade como suporte maior da sua comunicação? Ou mais além, depreender
algo da força xamânica que a inspirava, tal como Jerusa descreveu em sua
experiência com os tchuvaches?
Ou como ela
explica ao falar das populações siberianas, “o verbo xamanizar como dando conta
do acesso a patamares inacessíveis aos não iniciados, falando-se em educação
dos xamãs pelos espíritos e associando-se a ela poderes especiais”. O que é a
performance dos saraus dos fundões de nossa metrópole senão um ritual xamânico
dotado de força e encanto muito especiais?
Meus
encontros com jovens poetas das periferias e a racionalidade antropológica
muitas vezes nos deixavam em claros impasses comunicacionais, como pertencentes
a mundos diferentes, onde a chave só poderia estar na entrega espiritual, ou
ainda como profetiza Jerusa em Silêncio e Clamor, no “tempo/espaço sujeito a
outras escalas, ao qual o xamanismo confiou a sua memória”. Como Jerusa me
escreve em sua dedicatória, referindo-se a Guenádi Aigui, “este poeta do Volga
fala por nós todos”.
Não pude
vagar pelo encanto de seus olhos a esse respeito e assim perder-me alguma de
suas descrições contemplativas, introduzindo-me ao cerne deste texto cultural,
das práticas do oral e do corpo, que me abririam novas portas a respeito das
culturas periféricas/das bordas.
No que
tange propriamente à literatura marginal, e Jerusa via as bordas como algo à
margem, organizei minha pesquisa para conceituá-la sociologicamente de acordo
com um sentido de resistência. Somente mais tarde desvelei o sentido de
Geneviève Bollème, trazida por Jerusa, “a literatura popular como receita
contra algo, discurso mágico para afastar a morte, o medo, a miséria, e que
instaura um outro mundo (...) para domar e conquistar aquele em que se vive”.
Como teriam
sido nossas conversas a esse propósito?
Também o
sertão me marcou de modo indelével nos relatos e nas performances dos jovens
poetas das periferias, como representação das vicissitudes urbanas. Por alguma
razão, havia a magia do sentir atávico, da dor longeva, mas também do sonho e
da esperança o sertão de Antonio Conselheiro, Gláuber Rocha e de Elomar.
Ouvi-los em sua oralidade era sentir de alguma forma a origem das veias abertas
de um Nordeste profundo, da injustiça, da violência e da miséria reproduzida no
cangaço e em sua repressão.
Haveria aí
uma relação direta com as paixões e as lutas do romance de cordel de Antonio
Silvino, apresentados por Jerusa: “Peito a peito. Luta insana/ que cenas
indescritíveis/ indignas da espécie humana!/ foram seis horas terríveis”. Eram
51 bandidos contra 120 soldados enfurecidos.
Imagem de
luta e insubmissão que se sintoniza com as palavras de Graciliano, “o que nos
consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando
descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados”. Nada mais apropriado para
nossos dias!
Mas retomo
o fluxo de minhas imaginadas orientações com Jerusa e com os temas que não pude
compartilhar. Deus e o Diabo que atravessa Bacurau e irrompe com a literatura
de cordel. Sobre seus poetas, é interessante acompanhar a análise de Jerusa,
“Pode-se falar da memória, da grande força de um discurso comum, uma espécie de
reconhecimento de temas e até de uma certa unidade do imaginário que tem a ver
com o Brasil profundo, se se puder considerá-lo como um todo. Pode-se dizer,
também que ela consegue revelar anseios e compensações, expectativas de grupos
não privilegiados ou subalternos e que termina sempre por expressar a condição
de vida das classes populares, suas vicissitudes, suas formas de anúncio e de
denúncia”.
Como não
enxergar aí o poeta que declama nos saraus periféricos? A memória que processa
nossa mestiçagem, o barroco que desponta como o instrumento ideal para
forjarmos nossas lendas, sonhos, visões memoráveis, a expressar os signos de
nosso destino.
E também
como não considerar por nossa querida senhora barroca toda a dimensão e
complexidade da cultura das bordas, ao narrar o insólito cotidiano comum de
toda uma Latinoamérica, em diálogo com o real maravilhoso de Carpentier, imaginário
que emerge dos signos de nossa história e de nossas culturas populares?
O
maravilhoso insólito, encontrado cotidianamente no estado bruto, latente, em
nosso continente, fundamentado na cosmogonia barroca, o barroquismo americano
que se constitui com a miscigenação, a consciência de ser outra coisa, de ser
uma coisa nova, de ser uma simbiose, eis o que somos, eis o que depreendemos
das agruras e das belezas desgarradas do sertão jerusiano e projetadas por todo
um continente barroco, imerso em sua pulsão telúrica.
Do diálogo
entre a tradição oral do Livro de São Cipriano e as classes populares, é
possível compreender o deslizar fabuloso que integra a visão de mundo das
camadas populares, ao recriar seu mundo mágico de perene esperança. A utopia
contida nos versos poéticos é a pura sabedoria popular, veiculada em uma
poética oral, oriunda das experimentações míticas, e das negações vividas a
cada dia.
Toda essa
gama de leituras e discussões em suspenso seriam algumas das possibilidades de
nossas conversas. No que me diz respeito, teria antecipado em anos a
compreensão da cultura das bordas. O problema é que não conto mais com o
diálogo apaixonado de Jerusa.
Desse modo,
tanto quanto me foi possível imaginar o que seria minha aproximação com a
generosidade confabular e genuinamente barroca de Jerusa, expresso à melhor
maneira retrotópica e ucrônica minha apaixonada homenagem a esta inesquecível
amiga e pesquisadora.
Muito obrigado.