28 dezembro 2019

A procissão dos tolos


Relógio sem tempo, Pueyrredón, 2008


Convivi na minha infância com seres humanos que me pareciam complexos e distintos. Frequentavam a agência bancária que meu pai gerenciava imprimindo seus conceitos intuitivos de gestão. Descobriria rapidamente que ambas as realidades eram falsas: aqueles clientes estavam longe de se constituir em gente complexa e distinta, e meu pai jamais teve a liberdade para aplicar suas qualidades inatas de gestor.

Quanto aos clientes, eram adultos, masculinos, que se apresentavam em trajes formais – terno e gravata como sugeria o figurino da época – e alguns exalavam um desagradável olor com seus perfumes baratos. Pude acompanhar essa espécie de procissão diária sem restrições, por ser uma criança que gostava de ficar no cercadinho da gerência, próximo à mesa em que meu pai recebia essa gente.

Mostravam-se na maioria das vezes simpáticos nos gestos e palavras, mas no fundo tinham comportamentos fugidios, muito semelhantes em seus interesses, a busca pelo naco de empréstimo que os aguardava no período do “milagre econômico”. Pequenos e médios empresários, comerciantes da região, profissionais liberais, gente que ao adentrar a agência se amesquinhava nos mesmos propósitos, no mesmo ritual que conferiam os valores de cada demanda.

Tudo muito corriqueiro, profundamente cansativo para o olhar de uma criança. O que se tinha na mesa de negociações era um pedido relativamente simplório, atendido no mais das vezes, o agradecimento pegajoso, o dinheiro na conta e no final do ano, o agradecimento em forma de presentes natalinos, que enchiam a nossa sala. Meu pai se submetia às cansativas consequências de uma vida pautada pelo dinheiro.

Penso que foi o grande momento dos bancos neste país, crescimento vertiginoso acobertado por uma política econômica que estimulava o financiamento do que fosse a juros baixos. De um lado, a soberba ingênua de um comportamento empresarial que dava seus primeiros passos, amparado por uma falsa impressão de um capitalismo inovador e idealizador, sonhos e desejos que sucumbiriam de maneira abrumadora poucos anos mais tarde, na esteira das crises do petróleo.

No plano pessoal, o momento exigiu um esforço hercúleo em sintonizar o equilíbrio do corpo sob a voracidade das demandas insaciáveis do mercado financeiro em plena expansão. Foram dez anos cheios, de 1964 a 1974, muito dinheiro, muitos afagos, muita expectativa e a profunda destruição do caráter. Depois, o lento esvaziamento dos empréstimos privados, o recuo dos índices mágicos do crescimento econômico, o robustecimento das garras que hoje aprisionam e esfacelam o indivíduo em nome da ideologia neoliberal.

Nada resta daqueles tempos presumidamente áureos, e a falsa ingenuidade transformou-se em imbecilidade. Da procissão dos tolos com suas artimanhas fúteis, não sobrou poeira. Hoje, olho para bem perto e vejo meu pobre pai refletindo os fragmentos desse tempo a partir de números desconexos, construindo dia após dia compromissos imaginários que se dissolvem no ar, como se o corpo não conseguisse se desvencilhar das mazelas que o dinheiro fomenta.



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