26 dezembro 2019

Sartre no cinema

Capa de Filosofia Ciência e Vida, número 156


A sair nestes dias na revista Filosofia Ciência e Vida um longo artigo meu sobre dois temas que me fascinaram há vinte anos e que se complementaram em minha pesquisa de mestrado, Sartre e Luiz Sérgio Person. O título, Sartre no Cinema: uma aplicação da fenomenologia sartreana no filme São Paulo Sociedade Anônima. Meu esforço puro e simples foi discutir o filme de Person sob a luz da fenomenologia sartreana. Ainda hoje penso que a proposta ousada não foi devidamente explorada, seja do ponto de vista cinematográfico - deixei de lado diversas e importantes questões teóricas a serem analisadas - quanto do ponto de vista filosófico - poderia ter aprofundado alguns conceitos existenciais que utilizei. 

No começo do texto publicado comento sobre os papéis avulsos encontrados em meus arquivos, páginas e mais páginas de anotações das minhas leituras teóricas. Embora metodologicamente tenha encontrado um caminho sustentável, faltou me debruçar sobre tanto material recolhido e organizá-lo na pesquisa. Acerca de interpretações sobre Sartre, são mais de vinte laudas datilografadas, envolvendo Roquentin e Carlos, personagens de A Náusea São Paulo... respectivamente; o espaço urbano, no caso São Paulo e a linguagem cinematográfica. Havia muito mais, de autores diversos, registros que acabaram abandonados ou subutilizados. 

De todo modo, o artigo publicado na revista, consegue dar uma boa ideia sobre a discussão. O texto se baseia em um capítulo de minha tese, com alguns acréscimos introdutórios. Fiz uma boa revisão, que eliminou certas fragilidades da argumentação e organizei um pouco mais o contexto urbano em que o filme se dá, a São Paulo em transformação no final dos anos 1950 e princípios de 1960, que coincide com o golpe de Estado de 1964. Também corrijo a análise das personagens principais, Luciana, Hilda, Ana, Arturo, além de Carlos, o fio condutor da narrativa fílmica, dando-lhes mais profundidade psicológica e social.

Abaixo um trecho do artigo.

(...)
No meio de tantos fatos políticos que há tempos sacodem a vida brasileira, acabei me envolvendo com uma pesquisa para a elaboração de um texto que me foi solicitado por uma revista eletrônica. Decidi, então, retomar a leitura sartreana sobre o intelectual moderno e sua responsabilidade social. Seria essa a fronteira a ser desbravada, aspectos como a necessidade de ruptura com a falsa universalidade de sua compreensão burguesa de mundo. A princípio, enveredei pela leitura do opúsculo Em Defesa dos Intelectuais, de 1965, e avancei na conferência Função do Intelectual. Busquei uma relação com a farsa dos analistas contemporâneos, ditos intelectuais, que forjam análises e métodos particularistas, em defesa de seus interesses corporativos, e que são apresentados como posturas universalistas. São os falsos intelectuais, como dirá Sartre, antes de tudo, uns vendidos.

Todavia ao aprofundar as leituras, os documentos que passei a manusear modificaram completamente o objeto do tema pesquisado. Sabia que dispunha de arquivos das minhas pesquisas de mestrado e para eles me dirigi. Para minha agradável surpresa, encontrei uma pasta verde nomeada Projeto São Paulo Sociedade Anônima e em seu interior, revolvi um mundo! Súbito retomei contato com anotações densas, que realizei a partir de diversos textos de fenomenologia e existencialismo, como por exemplo os apontamentos de toda a primeira parte do livro de Paulo Perdigão, Existência e Liberdade, onde ele faz uma análise muito didática de O Ser e o Nada. As anotações preenchiam um caderninho, e havia muito mais. 

         Folheei um denso fichamento da obra mestra de Sartre, O Ser e o Nada. Registros valiosos cujos conceitos destacados certamente foram por mim incorporados na prática cotidiana dos últimos quinze anos, conceitos como a má-fé, transcendência, o homem sincero, temporalidade, reflexão - "Mas a reflexão pura continua a descobrir a temporalidade apenas em sua não-substancialidade originária; em sua negação de ser Em-si, descobre os possíveis enquanto possíveis, suavizados pela liberdade do Para-si, revela o presente como transcendente e, se o passado lhe aparece como Em-si, ainda é sobre o fundamento da presença"... - desdobrando as distinções do Para-si e do Em-si.

Dentre outros apontamentos menores, retomei as anotações de As Ideias de Sartre, de Arthur Danto, que se bem me recordo, ajudaram bastante como guia para adentrar o pensamento da filosofia sartreana. Juntamente com as definições de vergonha, o absurdo, angústia, desenvolvi, já tendo em vista a minha dissertação, uma aproximação com Carlos, personagem principal de São Paulo Sociedade Anônima, fio narrativo do drama existencial em que consiste a obra fílmica realizada pelo cineasta Luiz Sérgio Person, de 1965.

No mesmo caderno de anotações, as ricas descrições de A Náusea, onde aí sim relacionei diretamente as personagens centrais do romance e do filme, Roquentin e Carlos. Destaquei, por exemplo, o conceito da temporalidade, no primeiro caso, "Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia"... - e no segundo caso, "Carlos não encontra nada no passado e o futuro o assusta. O problema é que faz do presente uma transição entre essas temporalidades - passado e futuro - sem interferir, sem decidir-se por uma atitude que contemple o seu estado de espírito, seu desejo e a sua falta"...

O reencontro com esses documentos escritos me animou a organizar o presente artigo, aprofundando-me no prazer do reencontro da filosofia com o cinema, permitindo-me uma breve aplicação de conceitos e experimentações da fenomenologia sartreana a um dos mais belos filmes brasileiros.
(...)


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