05 outubro 2018

O Estado de exceção e suas consequências



No ótimo livro de Paula Beiguelman, O Pingo de Azeite: a Instauração da Ditadura, acompanhamos como se dá a exigência das forças armadas para que o Congresso autorize o processo ao deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seu discurso Lisístrata aludindo ao exército. O Congresso, marcadamente constituído por deputados arenistas, pró-governo, deliberaria em votação sobre a questão, sob forte pressão do regime. Assim descreve a autora sobre os fatos ocorridos em 12 de dezembro de 1969:

"O ambiente no país era de franca contestação ao regime (...) E então, no dia 12 de dezembro, a Câmara dos Deputados fazia sua histórica votação, recusando a licença para processar o deputado. Era uma votação pelo estado de direito e em defesa da instituição parlamentar, e contra o ministro da Justiça e os extremados, partidários do endurecimento, condenado aliás pelos setores mais expressivos das forças armadas".

O resultado foi o ato institucional mais violento da ditadura, o AI-5. O que parece interessante realçar aqui são dois aspectos: 1) Os deputados votaram alinhados aos anseios populares e 2) Os deputados não aceitaram as fortes pressões do regime e votaram soberanos, mesmo sabendo que desencadeariam a ira de Hades.

A plena vigência do autoritarismo militar tratou de eliminar os traços da representação cívica no parlamento (1) e, pior, a instauração de um poder suscetível às vantagens pessoais (2). A presença avassaladora da repressão nos dez anos subsequentes restabeleceu a arbitrariedade e a intolerância peculiares da casa grande, cujas raízes profundas negam, estas sim, nosso desenvolvimento como sociedade livre, soberana e justa.

Há também a interessante pesquisa de Felipe Recondo, Tanques e Togas - o STF e a ditadura militar, que descreve momentos de difícil convívio entre a ordem constitucional estabelecida pelas leis e a voracidade da ordem militar instaurada, que de modo crescente destroçou o estado democrático de direito, culminando com o pleno estado de exceção marcado pelo AI-5. No livro, Recondo avança cronologicamente para além desse lamentável episódio, descrevendo as circunstâncias da renúncia de um ministro do STF, Adaucto Cardoso, em razão das "realidades inelutáveis", conjuntura que acolhia o decreto-lei sobre a censura prévia.

Há também o episódio da cassação de três ministros "rebeldes" indicados antes do golpe militar, cassação aliás cobrada em editorial do jornal O Estado de São Paulo, "a Justiça tem de começar pelo alto, apanhando em suas malhas os que assumiram a repugnante tarefa de trair o país, corrompendo e desvirtuando a peça-mestra do Estado (...)". Os mesmos arautos patronais que, sobrevivendo ao longo das décadas, persistem em seus posicionamentos golpistas, em nome da adequação à nova ordem estabelecida.

Esses embates ocorriam à revelia do conhecimento público, nos corredores e salas do poder. Embates soturnos ainda que vigorosos, marcados por parte dos magistrados de um profundo respeito ao exercício de suas funções. Uma sensibilidade nas palavras e atitudes que, definitivamente, foram engolidos pela truculência dos gestos ditatoriais. Como externou o ditador de plantão, Costa e Silva, "(...) vamos tomar (...) algumas medidas para sanar uma das maiores omissões da revolução de 1964, que foi justamente a de ter considerado intangível o STF (...)". 

Assim, em janeiro de 1969, mês seguinte ao AI-5, foram cassados Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal "por suas ideias antirrevolucionárias e contrarrevolucionárias", sabe-se lá o que isso significasse. Eram movimentos cuidadosos dentro de uma jaula, para não despertar as feras famintas. 

O que me chama a atenção na leitura do texto de Recondo é o esforço que os ministros, por mais conservadores que fossem, como Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, procuravam exercer seus mandatos com a compostura exigida pelo cargo, ainda que submetidos aos atropelos casuísticos proporcionados pela dança das feras. Conforme Recondo, "durante a ditadura militar, as competências do Supremo foram progressivamente suprimidas. (...) Pouco lhe restou, pouca disposição havia para ativismos e pouco interesse existia sobre seu funcionamento". 


O problema maior estava no Estado de exceção que forcejou o poder judiciário a servir, e que, como ocorreu com toda a sociedade civil, o enquadrou sem pudor.


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