No ótimo livro de Paula
Beiguelman, O
Pingo de Azeite: a Instauração da Ditadura, acompanhamos como se dá a
exigência das forças armadas para que o Congresso autorize o processo ao
deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seu discurso Lisístrata aludindo
ao exército. O Congresso, marcadamente constituído por deputados arenistas,
pró-governo, deliberaria em votação sobre a questão, sob forte pressão do
regime. Assim descreve a autora sobre os fatos ocorridos em 12 de dezembro de
1969:
"O ambiente no país
era de franca contestação ao regime (...) E então, no dia 12 de dezembro, a
Câmara dos Deputados fazia sua histórica votação, recusando a licença para
processar o deputado. Era uma votação pelo estado de direito e em defesa da
instituição parlamentar, e contra o ministro da Justiça e os extremados,
partidários do endurecimento, condenado aliás pelos setores mais expressivos
das forças armadas".
O resultado foi o ato
institucional mais violento da ditadura, o AI-5. O que parece interessante
realçar aqui são dois aspectos: 1) Os deputados votaram alinhados aos anseios
populares e 2) Os deputados não aceitaram as fortes pressões do regime e
votaram soberanos, mesmo sabendo que desencadeariam a ira de Hades.
A plena vigência do
autoritarismo militar tratou de eliminar os traços da representação cívica no
parlamento (1) e, pior, a instauração de um poder suscetível às vantagens
pessoais (2). A presença avassaladora da repressão nos dez anos subsequentes
restabeleceu a arbitrariedade e a intolerância peculiares da casa grande, cujas
raízes profundas negam, estas sim, nosso desenvolvimento como sociedade livre,
soberana e justa.
Há também a interessante
pesquisa de Felipe Recondo, Tanques e Togas - o STF e a ditadura
militar, que descreve momentos de difícil convívio entre a ordem
constitucional estabelecida pelas leis e a voracidade da ordem militar
instaurada, que de modo crescente destroçou o estado democrático de direito,
culminando com o pleno estado de exceção marcado pelo AI-5. No livro, Recondo
avança cronologicamente para além desse lamentável episódio, descrevendo as
circunstâncias da renúncia de um ministro do STF, Adaucto Cardoso, em razão das
"realidades inelutáveis", conjuntura que acolhia o decreto-lei sobre
a censura prévia.
Há também o episódio da
cassação de três ministros "rebeldes" indicados antes do golpe
militar, cassação aliás cobrada em editorial do jornal O Estado de São Paulo,
"a Justiça tem de começar pelo alto, apanhando em suas malhas os que
assumiram a repugnante tarefa de trair o país, corrompendo e desvirtuando a
peça-mestra do Estado (...)". Os mesmos arautos patronais que,
sobrevivendo ao longo das décadas, persistem em seus posicionamentos golpistas,
em nome da adequação à nova ordem estabelecida.
Esses embates ocorriam à
revelia do conhecimento público, nos corredores e salas do poder. Embates
soturnos ainda que vigorosos, marcados por parte dos magistrados de um profundo
respeito ao exercício de suas funções. Uma sensibilidade nas palavras e
atitudes que, definitivamente, foram engolidos pela truculência dos gestos
ditatoriais. Como externou o ditador de plantão, Costa e Silva, "(...)
vamos tomar (...) algumas medidas para sanar uma das maiores omissões da
revolução de 1964, que foi justamente a de ter considerado intangível o STF
(...)".
Assim, em janeiro de 1969,
mês seguinte ao AI-5, foram cassados Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor
Nunes Leal "por suas ideias antirrevolucionárias e
contrarrevolucionárias", sabe-se lá o que isso significasse. Eram
movimentos cuidadosos dentro de uma jaula, para não despertar as feras famintas.
O que me chama a atenção na leitura do texto de Recondo é o esforço que os ministros, por mais conservadores que fossem, como Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, procuravam exercer seus mandatos com a compostura exigida pelo cargo, ainda que submetidos aos atropelos casuísticos proporcionados pela dança das feras. Conforme Recondo, "durante a ditadura militar, as competências do Supremo foram progressivamente suprimidas. (...) Pouco lhe restou, pouca disposição havia para ativismos e pouco interesse existia sobre seu funcionamento".
O problema maior estava no Estado de exceção que forcejou o poder judiciário a servir, e que, como ocorreu com toda a sociedade civil, o enquadrou sem pudor.
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