29 dezembro 2012

Vinícius de Moraes




O MAIS-QUE-PERFEITO


Ah, quem me dera ir-me
Contigo agora
Para um horizonte firme
(Comum, embora...)
Ah, quem me dera ir-me!

Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que não presumes...
Ah, quem me dera amar-te!

Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais: cuidado...
Ah, quem me dera ver-te!

Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...



Relatos de um tempo pecaminoso


Em 1998 o Brasil e a América Latina viviam tempos inglórios, manietados por uma crise econômica cíclica, que destroçou primeiro o México, em 1994, depois o Brasil em 1999 e em seguida, a Argentina, em 2001. Ouvia-se falar regularmente na presença do FMI, gerenciando as economias da região com suas políticas de ajustes financeiros e de cortes sociais. 

O quadro político apresentava perspectivas pouco estimulantes, além da apatia nas mobilizações populares. De um modo geral, os governos se alinhavam ao consenso de Washington: FHC no Brasil, Menem na Argentina, Carlos Salinas no México, Fujimori no Peru. Se a população sofria com as diretrizes neoliberais, os bancos e as corporações multinacionais desfrutavam da décadas mais lucrativa para seus negócios, no continente. Os blocos regionais existentes estavam fragilizados e mostravam-se incapazes de oferecer caminhos econômicos alternativos, e nunca na história a ideia de integração regional esteve tão em baixa.

###

De lá para cá, ou seja, menos de quinze anos, a ordem neoliberal caiu por terra no continente, novos governos populares assumiram e desenvolveram um importante processo de políticas sociais, o que levou à queda da pobreza no continente em 17% entre 1990-2010 (Cepal). Mais além, reordenaram-se os mecanismos de integração regional, com o surgimento da UNASUR (União das Nações Sul-Americanas) e CELAC, (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), órgãos que se tornaram em fóruns essenciais nos debates regionais.

A superação econômica dos países latino-americanos tem sido visível, e neste ritmo de integração e desenvolvimento social, é possível deixarmos para trás os fantasmas produzidos pelo pesadelo neoliberal dos anos 1990. 

###

Como estamos em tempos de retrospectivas, tomo a liberdade de fazer a minha, contextualizando o cenário social, político e econômico de 1998, a partir de anotações pessoais preservadas. Creio que valha a pena confrontarmos os indicadores da situação do Brasil em que vivíamos e do que vivemos hoje. Peço desculpas pelas passagens exacerbadas de meu ponto de vista, e chamo atenção para algumas antecipações acertadas, ainda que não desenvolvidas. 

Seja como for, entendo ser possível captar um pouco do clima vigente, o comportamento de um governo com projetos distintos do atual, aqui e ali os dados ruins da economia, o desconforto confundindo-se com um silêncio apático da sociedade, minhas suspeitas sobre os procedimentos mídia hegemônica, em um ano de eleições, a apresentar os fatos com extremada cautela - bem ao contrário do que ocorre hoje. 

###

É preocupante ouvirmos algumas daquelas vozes consensuais retomarem o folego, reordenando a empáfia do discurso neoliberal, fracassado, se tomarmos o ponto de vista do investimento social. Ressurgem com promessas que já eram promessas naqueles anos, e que, sabemos, tiveram um efeito trágico para a população. 

-0-


Quinta/sexta-feira, 3/4 de setembro de 1998

Será preciso aferir o comportamento da mídia nestes 30 dias que precedem as eleições presidenciais. Por que digo isso? A tal da turbulência neoliberal nunca esteve tão ameaçadora para as nossas bandas como agora. O país tem tido uma forte sangria de suas reservas e o colapso iminente da economia russa desencadeou o efeito dominó nos pobres países emergentes, entenda-se aqui, países da América Latina. O jogo sórdido das migrações dos capitais especulativos deixam-nos ao sabor de uma maré devastadora. Não dá, nesta altura da brincadeira, nem para dizer "bem feito, FHC!", porque se o navio emborcar, será um Titanic em proporções ainda mais dramáticas. O desemprego do país gira na casa dos 8%, e na Grande São Paulo, é de quase 20%, ou seja, mais de um milhão e seiscentas mil pessoas jogadas na rua da amargura. Enquanto isso nossa balança comercial continua no vermelho, sem dar mostras de recuperação, o que indica nossa incompetência em ampliar as exportações e, o que é pior, uma farra permitida nas importações, c'est à dire, prosseguem as entradas de bens supérfluos para preservar o humor das classes dominantes. Se nossas exportações estão de certo modo cerceadas pelo câmbio artificial e supervalorizado, prejudicando a competitividade dos preços de nossos produtos lá fora, o que dizer da falta de um plano de arrocho nessas importações escabrosas? Se prosseguirmos na análise econômica, terminaremos por desvendar o fato em sua totalidade, qual seja, as limitações dessa equipe econômica, que gosta de brincar em manter a estabilidade da moeda a um custo social insuportável. (...)

(...) Veremos então o comportamento dessa mídia estranha, que em maio, quando Lula chegou a um empate técnico com FHC, 'trabalhou' uma orquestração em que apontava Lula como o caos e FHC como a única alternativa para o país. À medida que os índices voltaram a dar folga ao candidato oficial, o teor da 'torcida' arrefeceu, quem sabe para dar às eleições um ar de imparcialidade. Até há uma semana FHC, os governistas, a Globo, o Estadão, o povo e até parte das oposições davam a fatura mais ou menos liquidada no primeiro turno. Aí surge o agravamento da crise e joga o paciente de volta à UTI; nova jogatina (já que estamos em tempos de jogatinas) com a opinião pública e verifica-se uma queda do cidadão presidente e uma subida de Lula e Ciro. Nada de mais, mas o suficiente para abrir o jogo novamente. Outra vez espera-se a migração dos economistas velhacos e dos empresários elitistas para os veículos de comunicação para, aliando-se ao espírito da 'lei e da ordem', satanizar em nova onda de diatribes o vermelho das oposições, tentando recuperar a imagem de um governo tão sério e honesto com a moeda quanto cruel com a causa social. (...)

(...) Se tenho minha preferência por um sistema político antagônico ao que anda vigendo, decerto que para vê-lo com chances de se estabelecer, só posso torcer ou exercer algum modo de pressão para que o sistema que está aí caia de podre. Portanto, nenhuma incoerência: fui, sou e serei frontalmente opositor a esse feixe desconectado de ideias que se dá a alcunha de neoliberalismo. Nada, a não ser algumas cabeças equivocadas dos países centrais (as 'neo-metrópoles') podem sustentar tamanho disparate parido do oportunismo de um capitalismo doentio. Quem tem a ganhar com tamanha crise econômica? O despontar do terceiro milênio pode trazer em seu bojo surpresas até há pouco insuspeitas, no âmbito político-econômico... Quem viver, verá.

(...)
E a quem serve esse modelo nefasto? De outra parte, quais os desígnios do mundo comprometido com o cassino neoliberal? Os EUA não podem continuar esfregando as mãos de satisfação pelos resultados até aqui de sua economia: logo será o tempo em que entrarão arrastados nesse furacão e sua parte lhes será cobrada. Voltando ao mundo, eu nunca soube de apostadores que terminassem bem em sua neurose obsessiva. Se jogam hoje, jogarão bem amanhã, e não só por uma necessidade de recuperar o perdido, mas por compulsão. Ao ver na TV as imagens da loucura desenfreada dos operadores de bolsa, seu ritmo alucinante em busca de compradores, a sandice sem fim dos gritos histriônicos e da correria exasperante, não posso aquietar-me em minha poltrona (e em meu sossego de final de noite) ao refletir sobre os fins programados para essa jogata. Eles estão aí, perceptíveis por qualquer imbecil, um mergulho num buraco sem fundo. Queda alucinante, dolorosa, sem o anteparo de quem quer que seja. Tal como as massas de operadores de bolsa - que criam aquelas ondas tenebrosas de seres humanos indo nervosamente de um lado ao outro (...) forma-se a correria da desesperança. Como acreditar num sistema econômico que tem como base o salve-se quem puder e o foda-se o resto? Como acreditar num sistema econômico que urge da especulação (como meio) para amenizar as chagas financeiras? Como acreditar num sistema que despreza o outro, desprezando o amor e estimulando a concorrência rapinante? (...)



16 dezembro 2012

Susana San Juan e o Mar




As palavras que refazem e retomam percursos, diluem-se no contar histórias, e permanecem sob o silêncio dos dias e das noites, à espera de serem ditas, ao sabor do céu que se transmuta, ora cinzento e cheio de nuvens, ora cheio de estrelas, inchadas de tanta noite, a nos desvelar as narrativas de um mundo não mais presente, e ainda assim ardente em seu tempo impreciso. 

Sobrepõem-se os sentimentos inquietos em vida, condescendentes na morte. Palavras que prescindem de corpos, que singram pelos espaços aquietados, evocadas, nas ruas, nas casas, nas tumbas. As almas sussurram por preces, os sepultos repassam as vidas e as mortes, a narrativa onisciente encaminha as verdades dos fatos.

Comala é um mundo convulsionado pelas palavras. E de olhares, que definem os gestos suspensos pelas recordações. E sobre o amor, de que desejo tanto falar, não há sinal neste mundo inóspito e doloroso. Há o movimento de Pedro Páramo, senhor de seus desmandos, que compele Susana San Juan a viver consigo, na estância Media Luna. 

De sua parte, amou-a tanto que passou o resto de seus anos arriado numa cadeirinha de cipó, olhando o caminho por onde a tinham levado para o cemitério. Susanita, viúva, com vagas lembranças da infância vivida junto a Páramo, para deixar a presença sufocante de seu pai, escolhe ir para Media Luna, vou ter de ir pra lá para morrer. 

E haverá uma, uma única referência, de solene beleza, sobre o mar. O mar em sua volúpia, em suas carícias envolventes.

###

"(...) Mas qual era o mundo de Susana San Juan? Esta foi uma das coisas que Pedro Páramo nunca chegou a saber.

'Meu corpo se sentia bem no calor da areia. Tinha os olhos fechados, os braços abertos, as pernas estendidas para a brisa do mar. E o mar ali na frente, distante, mal deixando uns restos de espuma nos meus pés com o subir da maré...'

(...) ... Era cedo. O mar corria e descia em ondas. Desprendia-se da sua espuma e ia embora, limpo, com a sua água verde, em ondas silenciosas.

- No mar eu só sei tomar banho nua - disse a ele. E ele foi comigo no primeiro dia, nu também, fosforescente ao sair do mar. Não havia gaivotas, só esses tucanos de bico grande que grunhem como se roncassem e que depois que sai o sol desaparecem. Ele foi comigo no primeiro dia e se sentiu só, apesar de eu estar ali.

- É como se você fosse um tucano, mais um entre todos - disse a mim. - Gosto mais de você durante a noite, quando estamos os dois no mesmo travesseiro, debaixo dos lençóis, no escuro.

E foi-se embora.

Eu voltei. Voltaria sempre. O mar molha os meus tornozelos e vai embora; molha os meus joelhos, as minhas coxas; rodeia a minha cintura com o seu braço suave, dá a volta sobre os meus seios, abraça-se ao meu pescoço; aperta-me os ombros. Então me fundo com ele, inteira. Entrego-me a ele no seu quebrar forte, na sua posse suave, sem deixar sobras."  

(Pedro Páramo, de Juan Rulfo - tradução de Eliane Zagury)



02 dezembro 2012

Os jovens e as escrituras periféricas



Destaco abaixo alguns trechos de meu texto mais recente sobre as escrituras das margens, Os Jovens na Produção das Escrituras Periféricas, que deverá compor em 2013 uma coletânea de ensaios, publicados pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro). 

Neste texto, procuro ir além da poesia presencial e performática, explorando o desdobramento dos saraus como encontros multiplicadores de cultura popular, alcançando as diversas plataformas digitais como twitter, blogs, facebook, youtube, expandindo o alcance do discurso contra-hegemônico a partir e para além das periferias latino-americanas.
-0-

" (...) Os poetas performáticos se originam das mais diversas atividades profissionais, e se reúnem nos saraus para proclamar a realidade de seu mundo, para descrever suas angústias existenciais, para condenarem a indiferença a que se consideram submetidos pelos segmentos sociais mais ricos da cidade. É através da prática da escritura que incorporam sua voz ao esforço por maior visibilidade social, deixando explicito o seu propósito. Ao estudar a constituição dos saraus da periferia, procuro entender esse olhar inconformado e resistente, compreendendo-o a partir da sua proposta de mobilização da cultura popular nas periferias. (...)

Para Zumthor, 'O poema, animado pela voz, se identifica ao que faz existir na ordem das percepções, das emoções, da inteligência (...)'. Essa emergência, nos saraus periféricos, concretiza sentimentos, seja a dor cotidiana ou sonhos não realizados, transformados pelas declamações em sequência num manifesto poético, que ilumina o imaginário do público presente. O gesto poético causa um abalo, sem gerar estranhamento: ele eleva a percepção de cada um e de todos, sensibilizando para a opacidade do mundo ao redor, ou numa palavra, a performance modifica o conhecimento de cada um e de todos.

Tal como acontecia no Binho, e continua acontecendo na Cooperifa e nos inúmeros saraus poéticos hoje existentes nas periferias de São Paulo, uma das funções propositivas dos saraus passa pela construção contínua do senso crítico, revelando a ação urgente em comunhão com o lugar, a quebrada. (...) Conhecer o lugar em que se vive torna-se uma condição necessária, uma vez que, ao se falar das carências e envolvê-las em projetos, se constrói a consciência crítica da realidade cotidiana nas periferias. Talvez esse seja o aspecto fundamental, relacionado à questão identitária, a qual comentaremos mais adiante, que perpassa as relações comunais nas quebradas. (...) 

Como todas as práticas culturais desenvolvidas nas periferias, os saraus (periféricos) se inserem no esforço de um trabalho coletivo que instiga um tornar-se, essa busca de uma identidade que contemple seus desígnios, em um mundo líquido. Não resta dúvida de que, nesses tempos pós-modernos, a ideia do comum, a vida em comunidade, solicita renovados posicionamentos de conduta. Em outras palavras, ela perdeu a antiga capacidade de regulação das relações sociais. Isso (conforme Bauman) não impede o anseio por uma coordenação das ações humanas, a constituição de um arranjo social, que abarque formas de vivência mais participativa, mais inclusiva – e assim mais cidadã, nos esquecidos territórios da precariedade.

" (...) Já não é apenas Sérgio Vaz e o grupo Negredo, no Capão Redondo, mas o coletivo Area 23, o Calle 13, disseminando suas letras, suas contestações pelas urbes da América Latina. Se nos encontros face a face, a palavra se reafirma na entonação solene dos versos, nas representações digitais ela se manifesta em ritmo de rap. Se na instância presencial, o poema exprime a identificação com a quebrada, no espaço digital o chamamento ganha os horizontes e contempla os sonhos e os dramas das periferias do mundo. (...)

Ao contrário do que se possa imaginar, as plataformas concorrem para uma exposição mais perene das culturas das quebradas, das villas misérias, dos cantegriles, à proporção que os dispositivos tecnológicos tornam-se universais, de fácil acesso para a população menos favorecida. Em diversos países latino-americanos, já existem programas governamentais de distribuição de computadores portáteis para jovens estudantes, com acompanhamento de softwares educacionais, que permitem o avanço no aprendizado escolar. Jovens que passam a se educar, se informar, e a utilizar o potencial criativo da tecnologia para desenvolver suas habilidades. Permitem-se também ao exercício pleno e livre da comunicação, atuando nas redes sociais e interagindo com outros jovens, de outras localidades. Deixam de ser figurantes para atuarem como protagonistas do imaginário social. Deixam de ser novidade exótica, para pleitear em igualdade de condições, numa sociedade marcada pela diversidade. São vozes cujos brados tornam-se virais, multiplicando sua força e sua mobilização".


20 novembro 2012

Sobre a incapacidade mediana




Costumava destratar com sua vulgaridade proeminente, colocando-se acima do bem e do mal diante dos que considerava seus vassalos. Vendia-se como um intelectual de grandes prodígios, mas havia quem o definisse como uma farsa, uma incômoda e inoportuna farsa. E o impasse persistiu, sem respostas concludentes.

Até que um dia, antes dele escandescer a alma em mais uma diatribe, voilà, entendi o alcance da seu comportamento. Estava ali apenas para zombar do espírito humano, e consequentemente, para dar vazão à incapacidade mediana, algo indispensável nas corporações corrompidas. 

Ao compreender bem esse mecanismo, deixei de temê-lo, de desprezá-lo, de alimentar qualquer vago sentimento por ele. De nada me serviria, além do que, em nada afetaria o seu propósito. A incapacidade mediana, uma vez contratada e estabelecida, viceja sem obstáculos. 

Tornei-me um homem mais confiante. O ar puro das ruas fez-se salutar e convidativo, e uma vez dentro da corporação, entreguei-me ao deleite de apreciá-lo, desairoso, em seus deletérios esforços.



18 novembro 2012

Autour de minuit



estava quase chovendo, quase dormindo

quase domingo

mais um dia

sem asa, sem jeito, sem mim


(par Mônica Rebecca Ferrari Nunes)



América no Pensamento


Alfonso Reyes, homem das letras, integrou um formidável grupo de intelectuais que se constituiu em torno do Ateneu da Juventude, em 1910, responsável por edificar as bases da cultura contemporânea do México. De sua vasta obra, interessam-me seus ensaios sobre a América. 

Os destinos da civilização de nosso continente o preocupam, e de acordo com o belo texto introdutório de José Luis Martinez para a antologia América en el Pensamiento de Alfonso Reyes, fiel à vocação dos grandes mestres americanos, suas meditações "se consagram a explorar o sentido que rege a vida da América, o significado e o caráter da cultura americana".

Contemporâneo de outros pensadores da Latinoamérica como José Enrique Rodó ou Manuel Bomfim, Alfonso Reyes aborda em ensaios como A Última Tule, o imaginário que rondava os europeus no período da descoberta da América, "como para a fatigada Europa (o Novo Mundo) era a terra que podia converter em realidade seus melhores sonhos  utópicos e ainda a fantasia da mitologia e a fábula".  

Para Alfonso Reyes, forjamos uma cultura natural do espírito, que denomina de inteligência americana. Fica a cargo desta inteligência uma tarefa, "essencial não só para que o resto do mundo nos conheça e nos compreenda com facilidade e claridade, mas também para que nós mesmos ganhemos uma consciência mais cabal de nosso ser (...)". 

Não tenho dúvidas de que o pensamento de Reyes contagiou o ânimo de Carlos Fuentes, no desenvolvimento de sua obra recente, La gran novela Latinoamericana. 

Abaixo, um trecho ensaístico de Alfonso Reyes Ochoa.

 

Valor da literatura latino-americana (excerto)


"(...) Há dentre nós uma herança acumulada, impressa nos estratos da alma, que faz até do analfabeto um homem evoluído apenas pela sensibilidade. No modo de dar o bom dia de um castellano viejo, como no de um gaucho argentino ou de um ranchero mexicano; na extensão do continente e na mirada dos nossos deserdados camponeses, ainda que apenas saibam soletrar, há vários séculos de civilização em resumo. Os estrangeiros devem notar que o homem hispano-americano os sopesa e os julga desde quando lhes arremete um olhar.

Temos carecido disso que se chama de técnicas. Somos os primeiros a lamentar e a desejar a correção das deficiências que a fatalidade, e não a inferioridade, nos tem imposto. Mas podemos afirmar com orgulho que até hoje nossos povos só conheceram e praticaram uma técnica, o talento.

Hoje mais ainda. Se para certos valores elevados de nossas letras não se tenha concedido, até hoje, categoria internacional, isso se deve à triste consequência do decaimento político da língua espanhola. Tanto pior para quem os ignora: Ruiz de Alarcón, Sor Juana Inés de la Cruz, Sarmiento, Martí, Darío, Rodó, Lugones, podem ombrear-se em nível com os escritores de qualquer país que tenha merecido a fama universal, as vezes apenas por integrarem a uma literatura da moda. E entre as centenas que deixo de nomear, há obras isoladas que poderia causar inveja a qualquer literatura.

Isso não é tudo. A experiência de nossa cultura tem um valor de porvir, que assume neste instante uma importância única. Chegamos à vida autônoma quando nossa língua (espanhola) não dominava o mundo. Os que se criaram dentro de um universo cultural no auge, ou dentro de uma língua que ainda sustentava a força imperial, viveram limitados dentro desse universo ou dessa cultura. Em contrapartida, nós tivemos de buscar a figura do universo, juntando espécies dispersas em todas as línguas e em todos os países. Somos uma raça de síntese humana. Somos o verdadeiro saldo histórico. Tudo o que o mundo faça amanhã terá que contar com nosso saldo.

(...)

Não nos sentimos inferiores a ninguém, mas seres em pleno gozo de capacidades equivalentes às que se cotizam na praça. E por essa razão, têm sido amargos nossos sofrimentos; por essa razão nos eludem os mestres que nos ensinaram a confiar no bem. Recebemos com os braços abertos, e com a plena consciência de nossos atos, os que se acercam com uma palavra sincera de entendimento, de harmonia e de concórdia. Nosso júbilo é grande quando essa palavra nos chega de gente que fez do respeito humano sua atual bandeira".

(Tradução realizada a partir do texto original, América en el Pensamiento de Alfonso ReyesFondo de Cultura Económica, México, 2012).



31 outubro 2012

Corrientes, a media luz




Corrientes, tres cuatro ocho,
segundo piso, ascensor.
No hay porteros ni vecinos.
Adentro, cocktail y amor.
Pisito que puso Maple:
piano, estera y velador,
un telefón que contesta,
una vitrola que llora
viejos tangos de mi flor
y un gato de porcelana
pa' que no me maulle al amor.

Y todo a media luz
que es un brujo el amor,
a media luz los besos,
a media luz los dos.
Y todo a media luz
crepúsculo interior.
!Que suave terciopelo,
la media luz de amor!
(...)


(Edgardo Donato/Carlos Lenzi, 1925)



09 outubro 2012

Cinelândia


Uma panorâmica noturna da Cinelândia, espaço mágico, de belas reminiscências, destacando o Palácio Pedro Ernesto (Câmara Municipal), o Teatro Municipal, o monumento a Floriano Peixoto, a Biblioteca Nacional, e por fim, o charmoso Amarelinho.


07 outubro 2012

Grandes esperanças


Dia de eleições, possibilidade de mudanças na governança de São Paulo, já mais do que necessária. Expectativa de que Haddad possa romper com a morosidade conservadora, que atravanca os passos de nossa cidade, e permita com que o espírito da renovação possa nos resgatar a todos e proporcionar importantes transformações, sobretudo na educação e cultura.

Na Venezuela, o desejo é que Chávez confirme o favoritismo e prossiga com um projeto de governo voltado para os territórios da precariedade, no esforço coletivo para reduzir as desigualdades sociais. Na verdade, remeto-me a uma pergunta e a uma resposta, extraídas do texto Por qué Chávez? escrito por Jean-Luc Mélenchon e Ignacio de Ramonet: "Por qué Chávez despierta tanto resentimiento en sus adversários? Indudablemente porque, tal como lo hizo Bolívar, ha sabido emancipar a su pueblo de la resignación".

Não tenho dúvida de que o compromisso de se estabelecer o debate político e aprofundar o espírito crítico em uma sociedade em desenvolvimento, requer uma luta obstinada, contra inimigos poderosos e inescrupulosos, alimentados sabe-se lá por que mãos. Já nem falo sobre a sangria desatada no embate contra o cartel midiático, mas é importante destacar o valor estratégico da Venezuela e de suas riquezas minerais, algo que desperta a cobiça do capital forâneo. Os interesses mesquinhos dos grandes negócios corporativos não realizados têm um peso considerável nessa balança, contrapondo-se à promoção da justiça social como ação pública de mobilização da sociedade, sem privilégios. 

Por isso gosto dessa expressão, emancipar um povo da resignação. O conforto de nossa vida moderna pavimenta o caminho da imbecilização coletiva, oferecendo entretenimento e resignação. Um bom idiota pode tornar-se um gerente de marketing e cantar como vencedor. Um professor de filosofia empenha-se durante sua vida para iluminar as ideias que permearam a história social, e termina pregando ao vento. O dinheiro se estabelece como o parâmetro que define o que importa ou não, e haja competitividade.

A angústia da existência torna-se o distúrbio mal resolvido dos vencedores, quando na verdade ela é uma condição inescapável da jornada da vida. Por isso a tola importância, cada vez mais realçada no mundo neoliberal, das infinitas teorias sobre como vencer a partir da moldura, do supérfluo, pautada por vezes na intuição animal, nos moldes de como ser um vendedor pitbull. Normas que apenas aprofundam o compromisso com a individualidade, afastando-nos de quarenta mil anos de construção comunal. 

Creio que, neste ponto, podemos retomar o início da postagem.  
    

16 setembro 2012

Sabra e Chatila


"As forças libanesas de Haddad, com o apoio do exército israelense, entraram em Sabra e Chatila – acampamentos palestinos situados em Beirute ocidental – em 16 de setembro, menos de um mês após a retirada de todos os combatentes palestinos (fedayins) para Tunis e outras localidades árabes, e três meses e meio após o início do cerco imposto a Beirute ocidental por tropas israelenses.

A retirada tanto dos combatentes como dos dirigentes palestinos fazia parte de um acordo patrocinado pelo governo dos EUA, visando a suspensão do bloqueio de Beirute. As forças de interposição da ONU abandonam a cidade dia 13, dez dias antes do prazo estabelecido, e no mesmo dia em que os israelenses e seus aliados entram na parte ocidental.

      Tendo início na quinta-feira, dia 16, o massacre nos dois acampamentos durou até a manhã do sábado, 18 de setembro, quarenta horas ininterruptas. Segundo estimativas de agências internacionais, foram cometidos cerca de 2.000 assassinatos, em uma população de 20.000 palestinos. As vítimas, constituídas em sua maior parte por idosos, mulheres e crianças, estiveram expostas à sanha de Haddad, Hobeika, Sharon... 

       A intenção desta peça é reconstituir o drama vivido por uma hipotética família palestina nos campos de Sabra e Chatila, na noite do dia 17 de setembro. Os nomes das personagens foram escolhidos aleatoriamente, dentre as vítimas deste episódio hediondo". 

(Introdução do texto Chatila, escrito pouco depois da chacina nos acampamentos palestinos, em setembro de 1982).


14 setembro 2012

Los que tienen bosque y agua




Testamento de Otoño
(fragmento)


Al odio le dejaré 
mis herraduras de caballo,
mi camiseta de navío,
mis zapatos de caminante,
mi corazón de carpintero,

todo lo que supe hacer
y lo que me ayudó a sufrir,
lo que tuve de duro y puro,
de indisoluble y emigrante,

para que se aprenda en el mundo
que los que tienen bosque y agua
pueden cortar y navegar,
pueden ir y pueden volver,

pueden padecer y amar,
pueden temer y trabajar,
pueden ser y pueden seguir,
pueden florecer y morir,

pueden ser sencillos y oscuros,
pueden no tener orejas,
pueden aguantar la desdicha,
pueden esperar una flor,

en fin, podemos existir,
aunque no acepten nuestras vidas
unos cuantos hijos de puta.


(Pablo Neruda)



10 setembro 2012

Allende por las calles

Allende faz o que seu sucessor golpista jamais teve coragem:
caminhar pelas ruas com o povo


Gosto desta imagem de Allende, tomada logo após sua vitória. Caminha pelas ruas, acompanhado por uma multidão que deseja estar ao seu lado. Gosto dos sorrisos dos protagonistas, compostos por diversas faixas etárias, provavelmente após ouvir algum chiste do presidente. Gosto dessa leveza de um presidente que, sabendo-se respeitado por seu povo, não titubeia em ganhar as ruas. A foto mostra movimento, nada parecido com estes que adornam campanhas publicitárias, em que o personagem se mostra apressado para mostrar determinação e espírito de vencedor. Não, aqui temos uma caminhada livre, em que as pessoas se aglomeraram da maneira que foi possível, e o fotógrafo teve a felicidade de tomar a distância necessária para registrar o flagrante, plasticamente emocionante.

Não há razão para se colocar a imagem simbólica do La Moneda em chamas, vítima do brutal golpe de estado patrocinado pela CIA. A memória de Allende, para mim, é similar a da foto, um estadista voltado para as necessidades de seu país, dedicado a sanar as desigualdades a partir de um governo socialista humanista, sempre preservando a democracia parlamentar. O golpe de 11 de setembro, embora previsível, o tomou de surpresa. No derradeiro jantar em Tomás Moro (tão apropriada designação!), a residência oficial do presidente, na companhia de alguns ministros e colaboradores, o clima de tensão se instala com chamadas telefônicas indicando a movimentação militar desde Valparaíso. Estava previsto para o dia seguinte um discurso em cadeia nacional, em que Allende faria conhecer, segundo o testemunho de seu assessor espanhol, Joan Garcés, uma proposta para reordenar as instituições do estado por vias democráticas. 

Não houve tempo. Segundo o livro de Patricia Verdugo, Allende - cómo la Casa Blanca provocó su muerte, logo pela manhã de 11 de setembro, o presidente deixou sua residência para alcançar o La Moneda. Os movimentos da comitiva estavam sendo monitorados pelo serviço de inteligência golpista, e ultrapassava os limites do Chile. Segundo as palavras de Patricia, A esa misma hora, en Valparaíso, el teniente coronel Patrick J. Ryan, de la US Navy, se comunicaba con la central en Panamá: "Con el jefe de señales Paul Eppley a cargo de la radio y el teniente Roger Frauenfelder redactando el mensaje, pudimos comunicarnos a las oficinas centrales de la Zona del Canal de Panamá. Se evitó específicamente culquier referencia a la situación en Santiago, ya que cualquier estimación sólo podría haber sido conjetura".

Ainda havia incertezas do lado golpista. Não se sabia exatamente como reagiria o poder popular dos cordones industriales, onde se acreditava que ocorreria uma possível reação ao golpe por parte dos operários, coordenados pelas centrais sindicais. 

Mas aos poucos, ao longo da manhã, o presidente se veria cada vez mais isolado, perdendo todo o apoio militar, inclusive da força de Carabineros, e político. Allende estava isolado, na companhia de sua guarda pessoal, alguns políticos fiéis e suas filhas. Sucederam-se então, as quatro locuções ao povo, o feroz bombardeio começado por volta das 11h, a rendição do palácio e a morte do presidente. Para quem tiver estômago forte, segue aqui, durante uma hora e meia, as ações do comando golpista, comandadas por Pinochet. 

Recentemente terminei um texto acadêmico, não conseguindo me furtar da referência de Allende sobre as grandes alamedas da democracia contida em sua última locução, emitida pela rádio Magallanes. Retomo a imagem acima, uma caminhada pública que emana leveza, já o disse, mas também justiça, paz, desejo de solidariedade. Não há como aceitar que esses anseios, cálidos e serenos anseios, sejam suprimidos pela barbárie golpista.  


03 setembro 2012

As colunas de Hércules

Cortés encontra Montezuma

O grande empreendimento marítimo realizado por Portugal e Espanha, nos séculos XV e XVI culminou com a descoberta do Novo Mundo, ou, nas palavras de Fuentes, sua invenção. Seus formidáveis detalhes são descritos em duas obras que devoro aos poucos, Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, no primeiro caso, a construção europeia de sua utopia para realizar a aventura épica que se consolida no segundo texto. Em ambas as obras, o relato objetivo, bem elaborado, que seduz ao leitor, proporcionando a adesão necessária para avançar longamente na leitura. 

O mundo passa por uma profunda transição científica, que irá afetar as concepções religiosas do cristianismo, e consequentemente, a visão de mundo. A imprensa de Gutemberg e o protestantismo de Lutero irão acentuar essa transição, permitindo que um novo sistema econômico, o capitalismo mercantilista, trate de expandir os horizontes então conhecidos, dando início ao longo processo de constituição do imaginário nacional,  descrito por Benedict Anderson, em seu livro Comunidades Imaginárias.

Poderíamos abordar o tema a partir de inúmeras perspectivas, porém gostaria de retornar às grandes navegações, onde a épica empreende o desvelamento da utopia tão longamente alimentada pelos mitos de diversas civilizações. No horizonte desta utopia, o Paraíso Terrenal, também identificado pelas descrições como as Ilhas Fortunadas, para além das colunas de Hércules, onde se pode desfrutar de uma paisagem de generosa verdura... agrestes pomos e saborosos, que os moradores podem alcançar sem trabalho, esforço ou cansaço... com um clima onde predominam ares bonançosos e salutíferos (Plutarco, apud Holanda).

Em 1519, Cortés desembarca em Vera Cruz, e adentra pelo interior, tomando o caminho de Tenochtitlán. Antes de alcançar o destino, recebe de Montezuma como uma espécie de oferenda a índia Malinche, Malintzin, depois Marina, e como nos descreve Octavio Paz, também conhecida como La Chingada, que, no México, origina um vocábulo ambíguo, carregado de sexualidade, chingón, variando de sentido conforme a entonação.

Segundo Paz nos descreve, "La Chingada é a mãe aberta, violada ou seduzida pela força", e mais adiante, "Ela encarna o aberto, o chingado, em relação aos nossos índios, estóicos, impassíveis, fechados", desenvolvendo a ideia de aberto e fechado, a mãe que se abre para o vilipendiador estrangeiro, o mexicano encerrado em seu isolamento, histórico e pessoal. Na ilustração desta postagem, Cortés encontra Montezuma, vemos o registro do diálogo que irá determinar pouco mais tarde a prisão do Grande Tlatoani do México, o Senhor da Grande Voz, "despojado de seus atributos por um europeu renascentista e por uma mulher que outorgou a língua índia aos espanhóis" (Fuentes).

Cortés, em nome da autocracia do reino espanhol, silencia à força a autocracia indígena, representada por Montezuma. Em 1553 perdemos o direito de conhecermos a nós mesmos, pois um decreto da metrópole impediu de circular nas colônias as histórias da conquista. De algum modo, a narrativa de uma épica da conquista sucumbe juntamente com a utopia da descoberta (ou da invenção) do Novo Mundo. Sem uma voz que relatasse a nossa memória - "recordar o futuro, imaginar o passado", passamos a suprir o vazio de história, escrevendo romances. Para Lezama Lima, será a arte do barroco que proporcionará a afirmação de nossa identidade, ou como em suas palavras, "Vemos que o senhor barroco americano, a quem designamos como o autêntico primeiro instalado no que é nosso, participa, vigia e cuida as duas grandes sínteses que estão em sua raiz, a hispano-incaica e a hispano-negróide". 

Assim, a cosmogonia da Latinoamerica incorpora a rebelião da arte barroca, a mestiçagem de brancos, negros e índios, e o fantástico como a expressão diferenciada de nossa narrativa. Passamos de Carpentier a Borges, de Rubião a Azuela, de Darío a Benedetti, e nos tempos presentes alcançamos as bordas de nossas cidades, a épica do cotidiano conduzida por sonhadores humildes, com sua voz que resiste em não se apagar, e o imaginário a fomentar uma renovada utopia, não muito além das colunas de Hércules.  



16 agosto 2012

Augusto Monterroso



Um traço que observo com prazer nos relatos deste quase desconhecido escritor guatemalteco, é a sutil ironia presente nas breves narrativas, expondo a nu preconceitos, tabus, hipocrisias sociais. No conto Obras Completas, vemos como um consagrado professor utiliza o conhecimento na relação com seus alunos-discípulos; em El Centenario, acompanhamos a história de sucesso e desventura do gigante Orest Hanson; ou em Sinfonia Concluída, um velho organista guatemalteco atravessa o Atlântico para que se reconheça sua descoberta, os movimentos finais da Sinfonia inacabada de Schubert.

É possível encontrar elementos de narrativa fantástica em seus textos, e um bom exemplo é o conto La Cena, onde ele narra um sonho em que Kafka, convidado para um jantar, nunca consegue chegar. Também é autor de dois microcontos, um deles bem conhecido, El Dinosaurio, "Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali"e Fecundidad, "Hoje me sinto bem, um Balzac; estou terminando esta linha"

Abaixo, minha tradução de dois pequenos contos de Monterroso. Espero que desfrutem.


O Eclipse

Quando frei Bartolomeu Arrazola se viu perdido, entendeu que nada poderia salvá-lo. A selva poderosa da Guatemala o havia encarcerado, implacável e definitivamente. Diante de sua ignorância topográfica, sentou-se com tranquilidade, esperando a morte. Quis morrer ali, sem qualquer esperança, isolado, com o pensamento voltado para a Espanha distante, em particular no convento de Los Abrojos, onde Carlos V condescendeu descer de sua magna condição para dizer-lhe que confiava no zelo religioso de seu trabalho redentor.

Ao despertar, encontrou-se rodeado por um grupo de indígenas, com a expressão impassível de quem se dispunha a sacrificá-lo ante um altar, um altar que a Bartolomeu pareceu ser o leito em que descansaria, por fim, de seus temores, de seu destino, de si mesmo. 


Três anos no país tinham lhe conferido um mediano domínio das línguas nativas. Ensaiou algo. Disse algumas palavras que foram compreendidas.


Então lhe floresceu uma ideia, que teve por inspiração seu talento, sua cultura universal e de o árduo conhecimento de Aristóteles. Recordou que para esse dia, se esperava um eclipse total do sol. E se dispôs (em seu íntimo) a valer-se daquele conhecimento para enganar os seus opressores e salvar a vida.


- Se me matais - disse-lhes - posso fazer com que o sol se escureça por completo.


Os indígenas olharam-no fixamente e Bartolomeu captou a incredulidade em seus olhos. Viu que se produziu um pequeno conselho e esperou, confiante, não sem demonstrar certo desdém.


Duas horas depois o coração do frei Bartolomeu Arrazola jorrava o sangue com veemência sobre a pedra de sacrifícios (brilhante, sob a opaca luz de um sol eclipsado), enquanto um dos indígenas recitava sem qualquer inflexão de voz, sem pressa, uma por uma, as infinitas datas em que produziriam eclipses solares e lunares, que os astrônomos da comunidade maia haviam previsto e anotado em seus códices, sem a valiosa ajuda de Aristóteles.




Vaca

Outro dia, quando estava no trem, me ergui feliz sobre minhas duas pernas e comecei a agitar as mãos de alegria e a convidar todos para ver a paisagem e a contemplar o crepúsculo, que estava belíssimo.

As mulheres, as crianças e uns senhores que interromperam a conversa, olhavam surpresos e riam de mim, porém quando sentei-me outra vez, silencioso, não podiam imaginar que eu acabava de ver distanciar-se, lentamente, à margem do caminho, uma vaca morta, mortinha, sem que alguém a tivesse enterrado, nem quem houvesse publicado suas obras completas, ou quem lhe fizesse um emocionado e lamurioso discurso por sua bondade em vida, e por todos os jorrinhos de leite espumante com que contribuiu para que a vida em geral, e o trem em particular, seguissem sua marcha.

(Contos extraídos do livro Cuentos, Alianza Editorial, 2008)



23 julho 2012

Páramo, por Fuentes



Ainda não li Pedro Páramo, de Juan Rulfo, mas estou pronto, ou melhor dizendo, estou ansioso por fazê-lo. Estimula-me a leitura da análise que Fuentes faz da novela, em seu maravilhoso La Gran Novela Latinoamericana
Traduzo abaixo uma pequeno trecho do capítulo, procurando preservar a deliciosa fluência descritiva que abarca a morte, o silêncio, a linguagem, o mito, no espaço vivenciado de Comala.

"O silêncio é rompido pelas vozes que não ouvimos, as vozes mudas do gado mugidor, da vaca ordenhada, da mulher parturiente, da criança que nasce, do volume sem vida que uma mendiga embala em seu xale.

Este silêncio é o da etimologia mesma da palavra mito: mu, diz-nos Erich Kahler, raiz do mito, é a imitação do som elementar, res, estrondo, mugido, sussurrar, murmurar, murmúrio, mutismo. Da mesma raiz provem o verbo grego muein, fechar, fechar os olhos, de onde derivam mistério e mística.

Novela misteriosa, mística, sussurrante, murmurante, mugida e muda, Pedro Páramo concentra assim todas as sonoridades mortas do mito. Mito e Morte: esses são os dois emes que coroam todas as demais antes que as coroe o nome mesmo de México: novela mexicana essencial, insuperada e insuperável, Pedro Páramo se resume no espectro de nosso país: um murmúrio de poeira desde o outro lado do rio da morte.

A novela, como é sabido, chamou-se originalmente Os murmúrios, e Juan Preciado, ao violar radicalmente as normas da sua própria apresentação narrativa para ingressar ao mundo dos mortos de Comala, diz:

- Me mataram os murmúrios.

Matou-o o silêncio. Matou-o o mistério. Matou-o a morte. Matou-o o mito da morte. Juan Preciado ingressa a Comala e, ao fazê-lo, ingressa no mito encarnando o processo lingüístico descrito por Kahler, e que consiste em dar a uma palavra o significado oposto: como o mutus latim, mudo, se transforma em mot francês, palavra, a onomatopéia mu, o som inarticulado, o mugido, se converte em mythos, a definição mesma da palavra.

Pedro Páramo é uma novela extraordinária, entre outras coisas, porque gera a si mesma como novela mítica, da mesma maneira que o mito se gera verbalmente: do mutismo do nada à identificação com a palavra, de mu a mythos e dentro deste processo coletivo que é indispensável à gestação mítica, que nunca é um desenvolvimento individual. O ato, explica Hegel, é a épica. Pedro Páramo, o personagem, é um caráter de epopeia. (...)

(tradução a partir do livro de Carlos Fuentes, La Gran Novela Latinoamericana, Editora Alfaguara, 2011)