As palavras que refazem e retomam percursos, diluem-se no contar histórias, e permanecem sob o silêncio dos dias e das noites, à espera de serem ditas, ao sabor do céu que se transmuta, ora cinzento e cheio de nuvens, ora cheio de estrelas, inchadas de tanta noite, a nos desvelar as narrativas de um mundo não mais presente, e ainda assim ardente em seu tempo impreciso.
Sobrepõem-se os sentimentos inquietos em vida, condescendentes na morte. Palavras que prescindem de corpos, que singram pelos espaços aquietados, evocadas, nas ruas, nas casas, nas tumbas. As almas sussurram por preces, os sepultos repassam as vidas e as mortes, a narrativa onisciente encaminha as verdades dos fatos.
Comala é um mundo convulsionado pelas palavras. E de olhares, que definem os gestos suspensos pelas recordações. E sobre o amor, de que desejo tanto falar, não há sinal neste mundo inóspito e doloroso. Há o movimento de Pedro Páramo, senhor de seus desmandos, que compele Susana San Juan a viver consigo, na estância Media Luna.
De sua parte, amou-a tanto que passou o resto de seus anos arriado numa cadeirinha de cipó, olhando o caminho por onde a tinham levado para o cemitério. Susanita, viúva, com vagas lembranças da infância vivida junto a Páramo, para deixar a presença sufocante de seu pai, escolhe ir para Media Luna, vou ter de ir pra lá para morrer.
De sua parte, amou-a tanto que passou o resto de seus anos arriado numa cadeirinha de cipó, olhando o caminho por onde a tinham levado para o cemitério. Susanita, viúva, com vagas lembranças da infância vivida junto a Páramo, para deixar a presença sufocante de seu pai, escolhe ir para Media Luna, vou ter de ir pra lá para morrer.
E haverá uma, uma única referência, de solene beleza, sobre o mar. O mar em sua volúpia, em suas carícias envolventes.
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"(...) Mas qual era o mundo de Susana San Juan? Esta foi uma das coisas que Pedro Páramo nunca chegou a saber.
'Meu corpo se sentia bem no calor da areia. Tinha os olhos fechados, os braços abertos, as pernas estendidas para a brisa do mar. E o mar ali na frente, distante, mal deixando uns restos de espuma nos meus pés com o subir da maré...'
(...) ... Era cedo. O mar corria e descia em ondas. Desprendia-se da sua espuma e ia embora, limpo, com a sua água verde, em ondas silenciosas.
- No mar eu só sei tomar banho nua - disse a ele. E ele foi comigo no primeiro dia, nu também, fosforescente ao sair do mar. Não havia gaivotas, só esses tucanos de bico grande que grunhem como se roncassem e que depois que sai o sol desaparecem. Ele foi comigo no primeiro dia e se sentiu só, apesar de eu estar ali.
- É como se você fosse um tucano, mais um entre todos - disse a mim. - Gosto mais de você durante a noite, quando estamos os dois no mesmo travesseiro, debaixo dos lençóis, no escuro.
E foi-se embora.
Eu voltei. Voltaria sempre. O mar molha os meus tornozelos e vai embora; molha os meus joelhos, as minhas coxas; rodeia a minha cintura com o seu braço suave, dá a volta sobre os meus seios, abraça-se ao meu pescoço; aperta-me os ombros. Então me fundo com ele, inteira. Entrego-me a ele no seu quebrar forte, na sua posse suave, sem deixar sobras."
(Pedro Páramo, de Juan Rulfo - tradução de Eliane Zagury)
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