Allende
faz o que seu sucessor golpista jamais teve coragem:
caminhar pelas ruas com o povo
Gosto desta imagem
de Allende, tomada logo após sua vitória. Caminha pelas ruas, acompanhado por
uma multidão que deseja estar ao seu lado. Gosto dos sorrisos dos
protagonistas, compostos por diversas faixas etárias, provavelmente após ouvir
algum chiste do presidente. Gosto dessa leveza de um presidente que, sabendo-se
respeitado por seu povo, não titubeia em ganhar as ruas. A foto mostra
movimento, nada parecido com estes que adornam campanhas publicitárias, em que
o personagem se mostra apressado para mostrar determinação e espírito de
vencedor. Não, aqui temos uma caminhada livre, em que as pessoas se aglomeraram
da maneira que foi possível, e o fotógrafo teve a felicidade de tomar a
distância necessária para registrar o flagrante, plasticamente emocionante.
Não há razão para
se colocar a imagem simbólica do La Moneda em chamas, vítima do brutal golpe de
estado patrocinado pela CIA. A memória de Allende, para mim, é similar a da
foto, um estadista voltado para as necessidades de seu país, dedicado a sanar
as desigualdades a partir de um governo socialista humanista, sempre
preservando a democracia parlamentar. O golpe de 11 de setembro, embora
previsível, o tomou de surpresa. No derradeiro jantar em Tomás Moro (tão
apropriada designação!), a residência oficial do presidente, na companhia de
alguns ministros e colaboradores, o clima de tensão se instala com chamadas
telefônicas indicando a movimentação militar desde Valparaíso. Estava previsto
para o dia seguinte um discurso em cadeia nacional, em que Allende faria
conhecer, segundo o testemunho de seu assessor espanhol, Joan Garcés, uma
proposta para reordenar as instituições do estado por vias
democráticas.
Não houve tempo.
Segundo o livro de Patricia Verdugo, Allende - cómo la Casa Blanca
provocó su muerte, logo pela manhã de 11 de setembro, o presidente
deixou sua residência para alcançar o La Moneda. Os movimentos da comitiva
estavam sendo monitorados pelo serviço de inteligência golpista, e ultrapassava
os limites do Chile. Segundo as palavras de Patricia, A esa misma hora,
en Valparaíso, el teniente coronel Patrick J. Ryan, de la US Navy, se
comunicaba con la central en Panamá: "Con el jefe de señales Paul Eppley a
cargo de la radio y el teniente Roger Frauenfelder redactando el mensaje,
pudimos comunicarnos a las oficinas centrales de la Zona del Canal de Panamá.
Se evitó específicamente culquier referencia a la situación en Santiago, ya que
cualquier estimación sólo podría haber sido conjetura".
Ainda havia
incertezas do lado golpista. Não se sabia exatamente como reagiria o poder
popular dos cordones industriales, onde se acreditava que ocorreria
uma possível reação ao golpe por parte dos operários, coordenados pelas
centrais sindicais.
Mas aos poucos, ao
longo da manhã, o presidente se veria cada vez mais isolado, perdendo todo o
apoio militar, inclusive da força de Carabineros, e político. Allende estava
isolado, na companhia de sua guarda pessoal, alguns políticos fiéis e suas
filhas. Sucederam-se então, as quatro locuções ao povo, o feroz bombardeio
começado por volta das 11h, a rendição do palácio e a morte do presidente. Para
quem tiver estômago forte, segue aqui, durante
uma hora e meia, as ações do comando golpista, comandadas por Pinochet.
Recentemente
terminei um texto acadêmico, não conseguindo me furtar da referência de Allende
sobre as grandes alamedas da democracia contida em sua última locução, emitida
pela rádio Magallanes. Retomo a imagem acima, uma caminhada pública que emana
leveza, já o disse, mas também justiça, paz, desejo de solidariedade. Não há
como aceitar que esses anseios, cálidos e serenos anseios, sejam suprimidos
pela barbárie golpista.
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