29 dezembro 2012

Relatos de um tempo pecaminoso


Em 1998 o Brasil e a América Latina viviam tempos inglórios, manietados por uma crise econômica cíclica, que destroçou primeiro o México, em 1994, depois o Brasil em 1999 e em seguida, a Argentina, em 2001. Ouvia-se falar regularmente na presença do FMI, gerenciando as economias da região com suas políticas de ajustes financeiros e de cortes sociais. 

O quadro político apresentava perspectivas pouco estimulantes, além da apatia nas mobilizações populares. De um modo geral, os governos se alinhavam ao consenso de Washington: FHC no Brasil, Menem na Argentina, Carlos Salinas no México, Fujimori no Peru. Se a população sofria com as diretrizes neoliberais, os bancos e as corporações multinacionais desfrutavam da décadas mais lucrativa para seus negócios, no continente. Os blocos regionais existentes estavam fragilizados e mostravam-se incapazes de oferecer caminhos econômicos alternativos, e nunca na história a ideia de integração regional esteve tão em baixa.

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De lá para cá, ou seja, menos de quinze anos, a ordem neoliberal caiu por terra no continente, novos governos populares assumiram e desenvolveram um importante processo de políticas sociais, o que levou à queda da pobreza no continente em 17% entre 1990-2010 (Cepal). Mais além, reordenaram-se os mecanismos de integração regional, com o surgimento da UNASUR (União das Nações Sul-Americanas) e CELAC, (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), órgãos que se tornaram em fóruns essenciais nos debates regionais.

A superação econômica dos países latino-americanos tem sido visível, e neste ritmo de integração e desenvolvimento social, é possível deixarmos para trás os fantasmas produzidos pelo pesadelo neoliberal dos anos 1990. 

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Como estamos em tempos de retrospectivas, tomo a liberdade de fazer a minha, contextualizando o cenário social, político e econômico de 1998, a partir de anotações pessoais preservadas. Creio que valha a pena confrontarmos os indicadores da situação do Brasil em que vivíamos e do que vivemos hoje. Peço desculpas pelas passagens exacerbadas de meu ponto de vista, e chamo atenção para algumas antecipações acertadas, ainda que não desenvolvidas. 

Seja como for, entendo ser possível captar um pouco do clima vigente, o comportamento de um governo com projetos distintos do atual, aqui e ali os dados ruins da economia, o desconforto confundindo-se com um silêncio apático da sociedade, minhas suspeitas sobre os procedimentos mídia hegemônica, em um ano de eleições, a apresentar os fatos com extremada cautela - bem ao contrário do que ocorre hoje. 

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É preocupante ouvirmos algumas daquelas vozes consensuais retomarem o folego, reordenando a empáfia do discurso neoliberal, fracassado, se tomarmos o ponto de vista do investimento social. Ressurgem com promessas que já eram promessas naqueles anos, e que, sabemos, tiveram um efeito trágico para a população. 

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Quinta/sexta-feira, 3/4 de setembro de 1998

Será preciso aferir o comportamento da mídia nestes 30 dias que precedem as eleições presidenciais. Por que digo isso? A tal da turbulência neoliberal nunca esteve tão ameaçadora para as nossas bandas como agora. O país tem tido uma forte sangria de suas reservas e o colapso iminente da economia russa desencadeou o efeito dominó nos pobres países emergentes, entenda-se aqui, países da América Latina. O jogo sórdido das migrações dos capitais especulativos deixam-nos ao sabor de uma maré devastadora. Não dá, nesta altura da brincadeira, nem para dizer "bem feito, FHC!", porque se o navio emborcar, será um Titanic em proporções ainda mais dramáticas. O desemprego do país gira na casa dos 8%, e na Grande São Paulo, é de quase 20%, ou seja, mais de um milhão e seiscentas mil pessoas jogadas na rua da amargura. Enquanto isso nossa balança comercial continua no vermelho, sem dar mostras de recuperação, o que indica nossa incompetência em ampliar as exportações e, o que é pior, uma farra permitida nas importações, c'est à dire, prosseguem as entradas de bens supérfluos para preservar o humor das classes dominantes. Se nossas exportações estão de certo modo cerceadas pelo câmbio artificial e supervalorizado, prejudicando a competitividade dos preços de nossos produtos lá fora, o que dizer da falta de um plano de arrocho nessas importações escabrosas? Se prosseguirmos na análise econômica, terminaremos por desvendar o fato em sua totalidade, qual seja, as limitações dessa equipe econômica, que gosta de brincar em manter a estabilidade da moeda a um custo social insuportável. (...)

(...) Veremos então o comportamento dessa mídia estranha, que em maio, quando Lula chegou a um empate técnico com FHC, 'trabalhou' uma orquestração em que apontava Lula como o caos e FHC como a única alternativa para o país. À medida que os índices voltaram a dar folga ao candidato oficial, o teor da 'torcida' arrefeceu, quem sabe para dar às eleições um ar de imparcialidade. Até há uma semana FHC, os governistas, a Globo, o Estadão, o povo e até parte das oposições davam a fatura mais ou menos liquidada no primeiro turno. Aí surge o agravamento da crise e joga o paciente de volta à UTI; nova jogatina (já que estamos em tempos de jogatinas) com a opinião pública e verifica-se uma queda do cidadão presidente e uma subida de Lula e Ciro. Nada de mais, mas o suficiente para abrir o jogo novamente. Outra vez espera-se a migração dos economistas velhacos e dos empresários elitistas para os veículos de comunicação para, aliando-se ao espírito da 'lei e da ordem', satanizar em nova onda de diatribes o vermelho das oposições, tentando recuperar a imagem de um governo tão sério e honesto com a moeda quanto cruel com a causa social. (...)

(...) Se tenho minha preferência por um sistema político antagônico ao que anda vigendo, decerto que para vê-lo com chances de se estabelecer, só posso torcer ou exercer algum modo de pressão para que o sistema que está aí caia de podre. Portanto, nenhuma incoerência: fui, sou e serei frontalmente opositor a esse feixe desconectado de ideias que se dá a alcunha de neoliberalismo. Nada, a não ser algumas cabeças equivocadas dos países centrais (as 'neo-metrópoles') podem sustentar tamanho disparate parido do oportunismo de um capitalismo doentio. Quem tem a ganhar com tamanha crise econômica? O despontar do terceiro milênio pode trazer em seu bojo surpresas até há pouco insuspeitas, no âmbito político-econômico... Quem viver, verá.

(...)
E a quem serve esse modelo nefasto? De outra parte, quais os desígnios do mundo comprometido com o cassino neoliberal? Os EUA não podem continuar esfregando as mãos de satisfação pelos resultados até aqui de sua economia: logo será o tempo em que entrarão arrastados nesse furacão e sua parte lhes será cobrada. Voltando ao mundo, eu nunca soube de apostadores que terminassem bem em sua neurose obsessiva. Se jogam hoje, jogarão bem amanhã, e não só por uma necessidade de recuperar o perdido, mas por compulsão. Ao ver na TV as imagens da loucura desenfreada dos operadores de bolsa, seu ritmo alucinante em busca de compradores, a sandice sem fim dos gritos histriônicos e da correria exasperante, não posso aquietar-me em minha poltrona (e em meu sossego de final de noite) ao refletir sobre os fins programados para essa jogata. Eles estão aí, perceptíveis por qualquer imbecil, um mergulho num buraco sem fundo. Queda alucinante, dolorosa, sem o anteparo de quem quer que seja. Tal como as massas de operadores de bolsa - que criam aquelas ondas tenebrosas de seres humanos indo nervosamente de um lado ao outro (...) forma-se a correria da desesperança. Como acreditar num sistema econômico que tem como base o salve-se quem puder e o foda-se o resto? Como acreditar num sistema econômico que urge da especulação (como meio) para amenizar as chagas financeiras? Como acreditar num sistema que despreza o outro, desprezando o amor e estimulando a concorrência rapinante? (...)



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